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Mais quente, mais desigual

Impactos econômicos das mudanças climáticas geram perdas na renda e aprofundam desigualdades

 

Assim como os efeitos das mudanças climáticas são uma realidade, as perdas econômicas resultantes do aumento da temperatura do planeta também já podem ser mensuradas. O estudo “Comprometimento econômico das mudanças climáticas”, do Instituto Potsdam sobre o Impacto Climático, com sede na Alemanha, publicado na revista Nature em abril deste ano, apontou prejuízos de cerca de R$ 300 milhões em todo o mundo por conta das mudanças climáticas. Segundo os pesquisadores, por conta das emissões de gases do efeito estufa feitas até aqui e que já geraram uma mudança no clima do planeta, o PIB global deve ter uma refração de cerca de 19% até 2049.

Isto significa que mesmo que haja uma interrupção nas emissões, haverá perdas na renda das pessoas em todas as regiões do mundo, sendo que elas serão maiores no Sul da Ásia, na África e no Brasil, regiões que historicamente contribuíram menos com as emissões de gases do efeito estufa. “Uma das características mais fortes e óbvias do aquecimento global é que ele é profundamente injusto. Quem causou o problema, os países mais ricos e desenvolvidos, estão mais preparados para os impactos da mudança do clima. Ele é injusto na causa e nos efeitos”, pontua o matemático e economista Sergio Margulis, professor da PUC-RJ, e pesquisador do Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS). No livro “Mudanças do clima: tudo o que você queria e não queria saber” (2020), Sergio Margulis destaca que, entre 1998 e 2017, desastres climáticos e geofísicos (como enchentes, tempestades, secas e ondas de calor) resultaram em 1,3 milhão de mortes e mais de 4,4 bilhões de feridos, desabrigados, ou necessitados de assistência de emergência. “As perdas econômicas resultantes desses desastres tiveram um peso muito maior nos países mais pobres. Elas foram de US$ 1,4 trilhão nos países ricos, representando ‘apenas’ 0,4% do seu PIB, enquanto nos países pobres, embora o custo tenha sido menor (US$ 21 bilhões), representaram 1,8% do PIB”, afirmou.

 

“Uma das características mais fortes e óbvias do aquecimento global é que ele é profundamente injusto. Ele é injusto na causa e nos efeitos.”

 

No caso brasileiro, o Nordeste, que concentra a população mais pobre do país, é provavelmente a região mais sensível ao aquecimento global. Ainda de acordo com Sergio Margulis, as simulações apontam que no semiárido nordestino as mudanças climáticas, além de aumentarem a temperatura, deverão prolongar a duração dos períodos mais secos. “Isso poderá impossibilitar a vida nessas regiões, causando doenças, mortes, sofrimento, e altos custos por conta de migrações e/ou necessidade de maior assistência a essas localidades e populações”. Segundo o pesquisador, além do Nordeste brasileiro, países inteiros e grandes regiões sofrerão com esse problema – notadamente a África Meridional, a bacia do Mediterrâneo, o corredor seco na América Central, o oeste dos Estados Unidos e o oeste da Cordilheira dos Andes. (Figura 1)


Figura 1. Os danos econômicos causados ​​pelas alterações climáticas por região subnacional e componente climático. Os tons em vermelho indicam perdas e em azul, ganhos. Brasil está entre os mais afetados.
(Fonte: “The economic commitment of climate change”, 2024. https://www.nature.com/articles/s41586-024-07219-0. Reprodução)

 

A disparidade das perdas econômicas, que afetam em maior grau os países mais pobres, já tinha sido apontada em um relatório publicado em 2023, pouco antes da Conferência do Clima da ONU (COP28) em Dubai. Elaborado pelo Centro de Ciência e Política de Mudança Climática Gerard J. Mangone, nos Estados Unidos, o estudo apontou perdas econômicas de US$ 1,5 trilhão em todo o mundo, destacando que o Produto Interno Bruto (PIB) de países de baixa renda, com economia fortemente dependente da agricultura e os países tropicais já expressam estas perdas.

 

Muita chuva, pouca chuva

Segundo dados do Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), é a primeira vez que a estiagem afeta intensamente todas as regiões do país, configurando a pior seca da história. As consequências desse contexto também são superlativas. O número de focos de incêndio detectados este ano já é maior do que o de 2023. Desde o início do mês de agosto várias cidades do interior de São Paulo sofrem queimadas e com fumaça e fuligem que encobre as cidades. No campo, cerca de 3.800 propriedades rurais foram afetadas com prejuízos que ultrapassam R$ 1 bilhão, segundo a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado (SAA). A pecuária, o cultivo de cana-de-açúcar, de frutas e de seringueiras e a apicultura foram os setores que mais tiveram perdas. (Figura 2)


Figura 2. Cidade de São Paulo teve pior qualidade do ar do mundo em setembro
(Foto. Paulo Pinto/ Agência Brasil. Reprodução)

 

Já no Rio Grande do Sul, mais de 200 mil propriedades rurais foram afetadas pelas enchentes, segundo relatório de perdas elaborado pelo governo daquele estado, com perdas significativas nas culturas de soja e arroz e na produção de carne. Para evitar aumento de preço em um produto que é base da alimentação brasileira, o governo federal importou arroz. A Portos RS, empresa que faz a gestão dos principais terminais do Rio Grande do Sul, estimou despesas de mais de R$ 850 milhões com a limpeza, manutenção de balanças, consertos e dragagem de todos os canais do sistema hidro portuário do Rio Grande do Sul.

Na Região Norte, por exemplo, a seca impacta a navegabilidade dos rios, podendo gerar interrupções no transporte de grãos e de minérios e aumentando os custos do frete rodoviário, o que, por sua vez, deve ser sentido no preço final de alguns produtos, por exemplo, aquelas fabricados na Zona Franca de Manaus. Antes disso, consumidores de todo país pagarão mais caro pela energia elétrica com a adoção da bandeira vermelha devido à previsão de chuvas abaixo da média no segundo semestre e ao acionamento de usinas termelétrica, que produz uma energia mais cara do que a produzida nas hidrelétricas. “De maneira geral, haverá um efeito inflacionário advindo destes fenômenos porque toda adaptação e mitigação requer investimentos que não estavam previstos. A tendência geral é de aumento de preços, alguns muito localizados, outros nem tanto”, explica Sergio Margulis.

 

Mudança climática, mudança geográfica

Mas não só os eventos climáticos extremos impactam a economia. O fato é que já vivemos um regime climático diferente, com aumento da temperatura, ondas de calor e precipitação mais intensa. Considerando a importância da agricultura no PIB brasileiro, a relação entre o clima e a produção agrícola tem sido alvo de pesquisa, algumas delas transformadas em políticas públicas do governo federal. É o caso do Zoneamento Agrícola de Riscos Climáticos (Zarc), que conta com pesquisadores da Embrapa e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Desde 1996, a ferramenta auxilia na identificação das melhores regiões, cultivares, variedades e períodos de semeadura, com menores riscos e perdas. Segundo as simulações do Zarc, a elevação da temperatura provocará um “deslocamento” e redução de áreas de cultivo de culturas importantes no agronegócio brasileiro como o feijão, soja e café. “Na prática, você aumenta o risco de produção nas áreas atuais, forçando um deslocamento para áreas mais frias”, afirma Jurandir Zullo, pesquisador do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri), da Unicamp.

 

“Já é um consenso que o clima está no centro de um megaproblema econômico. Assistimos uma série de desastres com prejuízos materiais e mortes, mas nada muda. Estamos em uma trajetória muito preocupante. O que falta acontecer para causar uma mudança?”

 

Na análise para a cultura do feijão em Minas Gerais, segundo maior produtor do país, depois do Paraná, se a temperatura sair do patamar atual para mais 5,8 ºC, conforme projeção do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, 2001), foi estimada uma diminuição da área apta para o cultivo em mais de 90% em relação às condições atuais. Neste cenário, dados de 2008 apontavam uma redução de cerca de R$ 360 milhões nas receitas oriundas da atividade para o Estado de Minas Gerais, considerando apenas o setor agrícola, ou seja, sem colocar na conta os demais elos da cadeia produtiva. Já a soja, poderia ter cerca de 40% de redução nas áreas para seu cultivo no Brasil, se a temperatura do ar aumentasse em 3 ºC. Ainda conforme as simulações do Zarc (2008), “quanto maior a temperatura, maior será o deslocamento da cultura do café em direção ao sul do País. Considerando os resultados de um cenário com aumento de 1,0 ºC e a redução das áreas cultivadas com café nos estados de Minas Gerais, Paraná e São Paulo, o impacto econômico previsto é estimado em US$ 375 milhões por ano, equivalentes à redução de 4 milhões de sacas de café/ano”. Em seu livro, Sergio Margulis aponta ainda que o aquecimento global deve levar a perdas na produção brasileira de alimentos que podem chegar a R$ 14 bilhões em 2070. (Figura 3)


Figura 3. Impacto do aumento da temperatura para o cultivo da soja no Brasil, considerando diferentes cenários de mudanças climáticas globais.
(Fonte: Embrapa/ Reprodução)

 

Publicado em 2006, o “Relatório Stern”, um dos primeiros estudos sobre os efeitos das alterações climáticas na economia mundial, apontou que um investimento de apenas 1% do PIB mundial se poderia evitar uma retração de 20% no mesmo PIB, ou seja, os custos para evitar as mudanças climáticas, reduzindo as emissões dos gases do efeito estufa, são menores do que os custos advindos dos efeitos da mudança do clima. “Já é um consenso que o clima está no centro de um megaproblema econômico. Assistimos uma série de desastres com prejuízos materiais e mortes, mas nada muda. Estamos em uma trajetória muito preocupante. O que falta acontecer para causar uma mudança?”, questiona Sergio Margulis. “Enquanto a desigualdade de renda aumenta e uma minoria vai ficando cada vez mais rica, o aquecimento global é diferente, porque ninguém ganha com ele. Todos perdem, apesar de existirem os que ainda ganham com as emissões. Empurrar o mais para frente possível a decisão de eliminar emissões, criando uma espécie de sobrevida das condições atuais nos levará, como vimos, à beira do precipício”, alerta.

Mais do que alarmar sobre os prejuízos e perdas que teremos com as mudanças climáticas, as projeções dos danos econômicos são fundamentais para informar o debate público sobre mitigação, adaptação e, sobretudo, sobre a justiça climática. Um debate que deve incluir governos, bancos centrais e empresas no sentido de uma nova economia.

 

Uma nova economia?

Em dezembro de 2023, o governo federal apresentou o Plano de Transformação Ecológica (PTE), durante a COP28, em Dubai. Liderado pelo Ministério da Fazenda, o Plano tem justamente o objetivo de mudar os paradigmas econômicos em prol da sustentabilidade a partir de seis eixos: finanças sustentáveis, adensamento tecnológico, bioeconomia e sistemas agroalimentares, transição energética, economia circular e nova infraestrutura verde e adaptação. O governo prevê investimentos entre US$ 130 e 160 milhões por ano, boa parte em infraestrutura em ações como urbanização de favelas para prevenção de riscos de desastres, drenagem urbana e contenção de encostas para prevenção de deslizamentos e inundações. Outro eixo de destaque é o da transição energética, que inclui medidas como o aumento da mistura obrigatória de biodiesel em diesel, chegando a 15% em 2026 e o estímulo do uso dos combustíveis sustentáveis, como o SAF, sigla para combustível sustentável de aviação.

Para Ademar Romeiro, professor do Instituto de Economia da Unicamp, o PTE se apresenta como uma macroeconomia ecológica de bom senso, com boas propostas. “No entanto, é urgente modificar a matriz energética baseada nos combustíveis fósseis e isso só vai acontecer quando as fontes de energia alternativas forem, de fato, competitivas”, afirma. “E, como propôs Ignacy Sachs, o Brasil tem vocação para se tornar a ‘civilização da biomassa’, por meio do etanol, do hidrogênio verde e de outras fontes renováveis. Resta saber se o governo terá as condições de implementar o Plano”, pontua.

 

“O Brasil tem vocação para se tornar a ‘civilização da biomassa’, por meio do etanol, do hidrogênio verde e de outras fontes renováveis. Resta saber se o governo terá as condições de implementar o Plano.”

 

Como atual presidente do G20, principal fórum de cooperação econômica internacional, o Brasil estabeleceu a Força-tarefa para Mobilização Global contra a Mudança do Clima. O objetivo é envolver governos, instituições financeiras e organismos internacionais para catalisar o alinhamento macroeconômico e financeiro global no sentido de implementar os objetivos da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e do Acordo de Paris. O balanço das reuniões do grupo, que aconteceram ao longo deste ano, serão levados para a Cúpula do G20, que acontece em novembro, no Rio de Janeiro. O G20 reúne os líderes dos 19 países que compõe o Grupo e que representam cerca de 85% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, mais de 75% do comércio mundial e cerca de dois terços da população mundial.

Para Luiz Marques, historiador e professor aposentado da Unicamp, o descrescimento econômico não é mais um debate entre economistas, é uma certeza. Autor do livro vencedor do Prêmio Jabuti “Capitalismo e colapso ambiental” (Editora da Unicamp, 2015), o pesquisador afirma: “as únicas alternativas reais são: decrescer catastroficamente por imposição do clima, da aniquilação da biodiversidade e da intoxicação químico-industrial dos organismos, ou decrescer a partir de um modo pacífico e com justiça social. A escolha ainda é nossa”.

 

Capa. Mudanças climáticas impactam economia e causam efeito inflacionário devido a investimentos com adaptação e mitigação
(Foto: Reprodução)
Patricia Mariuzzo

Patricia Mariuzzo

Patrícia Mariuzzo é divulgadora de ciência e coordenadora de comunicação do projeto HIDS Unicamp (Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável).
Patrícia Mariuzzo é divulgadora de ciência e coordenadora de comunicação do projeto HIDS Unicamp (Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável).
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