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Quase todo o Brasil cabe em uma foto

Berta Ribeiro lançou um olhar inovador para as populações indígenas brasileiras, dedicou-se incansavelmente à ciência e à divulgação científica e continua a inspirar muitas pessoas.

 

Esse ano comemoramos o centenário de Berta Ribeiro, um nome muito menos conhecido na intelectualidade brasileira do que Darcy Ribeiro, com quem foi casada por 25 anos. Sua contribuição para o campo da antropologia brasileira, no entanto, é fundamental até os dias de hoje.

Natural da Romênia e de família judia, Berta migra para o Brasil em 1932, com apenas 8 anos, fugindo da perseguição antissemita e anticomunista. Aqui, a família continua a sofrer forte repressão devido ao seu envolvimento com o Partido Comunista, tensão que culmina na extradição de seus familiares em 1936. Sem nenhum parente no Brasil, passa a ser tutelada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) que a abriga em casas de famílias da comunidade judaica brasileira.

Berta entra na carreira acadêmica por intermédio de Darcy Ribeiro, a quem conhece em eventos do Partido Comunista em 1946. O campo da antropologia/etnologia lhe é apresentado em 1947, quando acompanha Darcy em sua pesquisa de campo sobre os indígenas Kadiwéu, que residiam no pantanal mato-grossense.

No período em que os dois foram casados (1948-1974), Berta Ribeiro colaborou com as pesquisas de Darcy Ribeiro sobre diversos aspectos da  cultura indígena. Juntos visitaram as tribos dos Kadiwéu, Guarani Kaiowá, Terena e Ofaié-Xavantes, do sul do Mato Grosso. Também estiveram entre os Ka’apor no Maranhão e em tribos do Alto e Médio Rio Xingu, como os Yawalapiti, os Kaiabi, os Juruna, os Araweté e os Asurini. Após a separação, Berta Ribeiro consegue dedicar-se integralmente à sua própria carreira, desenvolvendo metodologias próprias de trabalho e concentrando-se nos assuntos que mais a interessavam. Nesse período de sua carreira, a pesquisadora visita diversas vezes as tribos Tukano e Desana na região do Alto Rio Negro.

 

“A grande importância do trabalho da Berta Ribeiro para a antropologia contemporânea é o fato de ela realmente ter escutado os povos indígenas com quem ela trabalhou e dado o devido valor às  suas cosmologias. Ela colocou isso de maneira muito ética e muito bonita em suas etnografias.”

 

Enquanto antropólogos como Darcy Ribeiro buscavam tratados totalizantes, perseguindo leis gerais sobre o papel do indígena na sociedade, Berta Ribeiro optou por uma abordagem mais etnográfica, vivendo períodos com os indígenas, registrando e classificando as suas manifestações artísticas e técnicas. Essa diferença de olhares talvez possa estar relacionado com a trajetória de vida de Berta, que em muitos momentos sofreu com a incompreensão cultural: foi perseguida por ser judia em seu país de origem, precisou viver como refugiada em um país estrangeiro e era uma mulher buscando uma carreira profissional em uma área dominada por homens. André Demarchi, antropólogo e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT) comenta a conexão entre a vida e a obra de Berta Ribeiro: “essa trajetória influenciou não só o olhar dela para os povos indígenas, mas a própria escolha pela antropologia, que é uma ciência que volta seu olhar para o outro, de uma posição descentralizada. Essas características a fizeram uma pessoa diferente, que olha e se coloca no mundo de maneira diferente”.

 

A cultura material indígena

Berta Ribeiro dedicou-se muito ao estudo da cultura material indígena. Alguns dos seus estudos sobre o assunto são “Bases para uma classificação dos adornos plumários dos índios do Brasil” (1957) e “Arte plumária dos índios Ka’apor” (1957), que publicou em parceria com Darcy Ribeiro. Já em sua tese de doutorado “A Civilização da Palha: a arte do trançado dos índios do Brasil” (1980), defendida pela Universidade de São Paulo (USP), dedica-se à arte da cestaria dos indígenas do Alto Xingu e do Rio Negro.

A pesquisadora registrava os artefatos que encontrava, observando as diferenças de confecção e de significado atribuído a eles entre as diferentes etnias que visitou. Ela estava interessada em como esses artefatos contribuíram para adaptação dos indígenas ao território, em sua formação identitária e na organização social dessas tribos, partindo do específico para o geral. “A grande importância do trabalho da Berta Ribeiro para a antropologia contemporânea é o fato de ela realmente ter escutado os povos indígenas com quem ela trabalhou e dado o devido valor às  suas cosmologias. Ela colocou isso de maneira muito ética e muito bonita em suas etnografias. Você percebe essa delicadeza com o conhecimento ancestral indígena e como eles são importantes para compreender os conflitos que aqueles povos estão vivendo. Quando Berta vai estudar os grafismos feitos na cestaria do povo Kaiabi, percebe que aquele elemento registrado na cestaria remete a um ser mitológico que tem toda uma relação com a organização social do povo Kaiabi. É por aí que coloco a ideia de que Berta Ribeiro é uma antropóloga do futuro: ela anteviu no trabalho algumas questões que só foram desenvolvidas décadas depois na antropologia brasileira”, explica André Demarchi.

Berta Ribeiro coletava esses artefatos indígenas e formava coleções que passaram a constituir os acervos do Museu Nacional e do Museus dos Povos Indígenas, antigo Museu do Índio, instituições as quais trabalhou. Essas coleções visavam não somente a preservação da cultura material indígena, como a sua divulgação para o público geral. Ela acreditava que os museus, assim como outros canais de divulgação científica, eram importantes aliados na luta pela democratização do conhecimento. “Berta Ribeiro foi uma militante da divulgação científica quando essa atividade ainda não tinha esse reconhecimento. A aproximação do público amplo com a produção de conhecimento se faz de diversas formas: vídeos, textos, intervenções, exposições. E se utilizou de todos esses recursos”, afirma Maria Elizabeth Brêa Monteiro, diretora técnica da Fundação Darcy Ribeiro.

 

“Berta Ribeiro foi uma militante da divulgação científica quando essa atividade ainda não tinha esse reconhecimento.”

 

Maria Elizabeth Monteiro elenca alguns dos formatos em que Berta Ribeiro trabalhou para disseminar os saberes indígenas: “Durante anos, Berta Ribeiro foi uma assídua colaboradora de revistas de grande circulação como a revista Ciência Hoje e a Ciência Hoje das Crianças, ou a National Geographic. Sua produção audiovisual também é importante e cito o filme de animação Gain Pañan – a origem da pupunheira realizado a partir dos desenhos de Feliciano Lana. Há também os vídeos etnográficos de suas pesquisas no Parque do Xingu junto aos Asurini e aos Araweté. As exposições concebidas por Berta sempre procuravam transmitir informações técnicas resultantes de uma atividade de pesquisa e também uma interlocução com o público visitante utilizando uma linguagem acessível. Mesmo sua produção de natureza mais acadêmica tinha por objetivo a democratização do conhecimento ao colocar à disposição ferramentas para pesquisas diversas. Um exemplo é o Dicionário do Artesanato Indígena, publicado em 1988, que contribuiu para sanar a falta de padronização terminológica”.

 

Os indígenas como ecólogos

Berta Ribeiro se interessava também pelos conhecimentos dos indígenas sobre o meio ambiente (plantas medicinais, fibras naturais, produção de alimentos, etc.) e atuava em colaboração com membros das tribos que visitava para divulgar esses saberes. Em 1991 ela publicou o artigo “Ao Vencedor, as Batatas”, demonstrando que muitos conhecimentos que temos hoje sobre plantas e cultivos vegetais é proveniente dos saberes dos indígenas. A antropóloga Tatiana de Lourdes Massaro esclarece que esse interesse de Berta Ribeiro não era uma preocupação comum dos pesquisadores de sua época, tornando-se pauta apenas muito tempo depois: “A caça, por exemplo, que envolve diretamente os animais (e não as plantas) e, por sua vez, é bastante ligada à esfera masculina, se constituía como uma temática fundamental e central na etnologia, e foi bastante estudada por antropólogos homens, ao menos dos anos de 1980 em diante. Nessa mesma década, Berta Ribeiro defendeu sua tese, mostrando a centralidade do ‘vegetal’ para os povos indígenas. Os indígenas, como Berta Ribeiro mostrou, privilegiam o vegetal em detrimento do animal em diversos âmbitos, como os alimentos, as canoas, a construção das casas, a cestaria, os artefatos, formando o que essa antropóloga caracterizará como ‘civilização vegetal’ ou ‘civilização da palha’. Hoje, a chamada ‘virada vegetal’ vem propondo entender e pensar sobre os vegetais”.

A antropóloga dizia que os indígenas eram ecólogos naturais e seus conhecimentos precisavam ser melhor compreendidos e divulgados. Para isso, trabalhava em parceria com os indígenas, em uma prática que depois foi chamada de “antropologia compartilhada”. André Demarchi ressalta o pioneirismo de Berta Ribeiro nessa área: “Ela tem essa ideia de produzir com os indígenas, criar alianças. Isso é a antropologia compartilhada: quando a gente se desfaz dessa ideia antiga e eticamente questionável de que os povos indígenas seriam meros objetos. Berta Ribeiro sempre foi contra essa ideia, ela sempre tratou os povos como aliados, como parceiros na produção do conhecimento. Se você for pensar nesses novos projetos que estão acontecendo nas Universidade brasileiras em que mestres e mestras das comunidades indígenas ministram disciplinas nas universidades… esses projetos têm uma dívida com a proposta de antropologia compartilhada iniciada por Berta Ribeiro”.

 

“Berta Ribeiro sempre tratou os povos como aliados, como parceiros na produção do conhecimento.”

 

Ela ainda foi responsável por viabilizar o primeiro livro de autoria indígena do Brasil. O livro “Antes o mundo não existia: a mitologia heroica dos índios Desana”  (1980) apresenta os mitos dessa tribo. A pesquisadora datilografou, revisou e produziu os mitos que foram ilustrados e narrados pelos indígenas Desana Umusin Pârõmuru (Feliciano Arantes Lana) e seu filho Tõlãmũ Kêríri (Luiz Gomes Lana). Os direitos autorais da obra foram inteiramente cedidos aos dois indígenas. Maria Elizabeth Brêa Monteiro lembra ainda que a colaboração de Berta Ribeiro com os indígenas resultou na publicação de outros trabalhos: “Ela reconhece e divide a autoria de trabalhos acadêmicos, somente possíveis graças à escuta e à valorização do conhecimento tradicional dos povos com os quais trabalhou. O grande exemplo desse pioneirismo foi o livro ‘Antes o mundo não existia’. Os Desana, povo da região do rio Negro, no Amazonas, desempenharam um papel de destaque na trajetória de Berta Ribeiro e uma parceria muito produtiva. Com eles, Berta Ribeiro também escreveu ‘Chuvas e Constelações: calendário econômico dos indígenas Desana e Etno-ictiologia Desana’”.

 

Um vestido a serviço da divulgação científica

Quando falamos em Berta Ribeiro, a primeira imagem que nos vem à mente é a foto da pesquisadora entre os indígenas Kadiwéu, em 1948, durante o trabalho de campo que marcou a sua entrada na antropologia. (Figura 1)


Figura 1. Berta Ribeiro entre os indígenas Kadiwéu, em 1948.
(Foto: Fundação Darcy Ribeiro. Reprodução)

 

A foto é emblemática. Não só pelas pessoas que estão ali registradas, mas devido à maneira que estão dispostas e como o dispositivo as registrou. Berta está em um posicionamento de destaque, em primeiro plano e centralizada. Os indígenas  Kadiwéu estão atrás da pesquisadora, nos cantos da imagem. Berta, no entanto, está desfocada. O foco da imagem está nos indígenas, de modo que podemos ver suas expressões e traços com nitidez. O vestido que Berta Ribeiro utiliza é todo estampado, produzindo um contraste em relação aos torsos nus dos indígenas. Todos esses elementos contribuem para que esse vestido viva tão intensamente no imaginário comum quando se fala de Berta.

Berta foi homenageada com uma releitura desse vestido por duas vezes nesses últimos anos. A primeira ocorreu em 2019, com 15 peças confeccionadas por uma estilista e a segunda, neste ano, pelas mãos de estudantes do ensino público.

A primeira homenagem ocorreu dentro da programação do evento “Selvagem: ciclo de estudos sobre a vida”, sediado no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e mediado pelo pensador e escritor indígena Ailton Krenak. A estilista Flavia Aranha, cuja linha de roupas tem a proposta de utilizar-se de fibras naturais e pigmentos extraídos de biomas brasileiros, confeccionou vestidos para toda a equipe organizadora do evento e a convidada filósofa, professora e artesã Cristine Takuá. As peças foram feitas com algodão, urucum, pau-brasil e acácia-negra. Tatiana Massaro acredita que a moda sustentável proposta pela estilista se relaciona de maneira direta com a pesquisa e a luta de Berta: “A moda sustentável vem sendo bastante baseada em conhecimentos tradicionais, em plantas prioritariamente orgânicas e na busca para que seu ciclo de vida comece e termine na terra, nutrindo o solo. Tramas como essas guardam elementos comuns, como a própria relação com as plantas, o fazer manual, os conhecimentos envolvidos, os enlaces que podem resultar em cestarias e tecidos. O vestido que homenageia Berta Ribeiro permite, de certa forma, tornar tangível um leque de relações”.

Os alunos que homenagearam Berta esse ano são estudantes do ensino infantil (5o e 6o anos) do Espaço de Desenvolvimento Infantil José Araújo, localizado no Alto da Boa Vista (RJ). A ideia da homenagem surgiu quando a professora Patrícia Braga assistiu ao documentário “Para Berta, com amor”, realizado pela pesquisadora Bianca França como um desdobramento de sua tese de doutorado sobre a vida e a obra da antropóloga.

Patrícia Braga exibiu o documentário para as crianças de maneira adaptada a suas capacidades (pausando para explicar, acelerando, voltando) e em seguida propôs uma série de atividades sobre o conteúdo, entre elas, uma instalação artística e um recital de dança. A instalação artística, intitulada “Quase todo o Brasil cabe em uma foto”, promoveu uma releitura da icônica foto de Berta Ribeiro entre os indígenas Kadiwéu. Na nova versão, foi reservado um espaço ao lado da pesquisadora, onde os alunos podiam se ver refletidos. Um dos objetivos da atividade era introduzir as crianças ao pensamento científico: “As crianças teorizam e criam hipóteses o tempo inteiro, é muito importante fomentar a ciência. Temos mesmo que levantar essa bandeira, trazer o letramento científico para a rede pública. Elas precisam saber que existe a profissão de cientista porque precisamos de muitos cientistas para o país avançar. Viva as mulheres na ciência. Viva a ciência na educação infantil”, afirma Patrícia Braga. (Figura 2)


Figura 2. Alunos do Espaço de Desenvolvimento Infantil José Araújo, localizado no Alto da Boa Vista (RJ), e suas criações após assistirem o Documentário “Para Berta, com amor”
(Foto: Espaço de Desenvolvimento Infantil José Araújo. Divulgação)

 

Já no recital de dança, cuja trilha sonora foi pot-pourri de músicas indígenas brasileiras, as crianças puderam expressar a partir da linguagem corporal a luta da pesquisadora pela causa indígena. Patrícia Braga acredita que as linguagens artísticas são uma excelente maneira de aproximar os alunos dos conteúdos trabalhados em sala de aula: “Na educação infantil a leitura de mundo acontece não só através da escrita. Acontece por meio dos sentidos, da ressignificação do corpo, através das experiências, das brincadeiras e das linguagens artísticas, como música, dança, literatura, cinema, porque a arte nos atravessa, a arte nos valida ao olhar do outro”. (Figura 3)


Figura 3. Produção de arte dos alunos do Espaço de Desenvolvimento Infantil José Araújo a partir do documentário “Para Berta, com amor”
(Foto: Espaço de Desenvolvimento Infantil José Araújo. Divulgação)

 

Da mesma maneira que Berta buscou validar as populações indígenas ao olhar do outro por meio da sua arte e cultura, a arte também surge como um importante aliado no processo de divulgação de suas ideias e lutas para uma nova geração. (Figura 4)


Figura 3. Recital de dança dos alunos do Espaço de Desenvolvimento Infantil José Araújo em homenagem à Berta Ribeiro
(Foto: Espaço de Desenvolvimento Infantil José Araújo. Divulgação)

 

 

Capa. Berta Ribeiro inovou pesquisas sobre os saberes, a arte, a materialidade, as técnicas e a tecnologia dos povos indígenas brasileiros.
(Foto: Fundação Darcy Ribeiro. Reprodução)
Paula Gomes

Paula Gomes

Paula Gomes é escritora, doutora em cinema e especialista em divulgação científica.
Paula Gomes é escritora, doutora em cinema e especialista em divulgação científica.
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