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Berta Ribeiro, museus e valorização da cultura dos povos indígenas

Pesquisadora dedicou a vida à valorização e preservação das culturas indígenas brasileiras

 

Foi mergulhada entre artesanatos e histórias, em um ambiente repleto de saberes, múltiplas culturas e costumes diferentes dos seus que Berta Ribeiro encontrou uma de suas maiores conexões com o Brasil. Judia e nascida na Romênia em tempos de antissemitismo, chegou no país ainda criança, em 1932, acompanhada do pai e da irmã, em uma tentativa de fugir da perseguição. Quinze anos depois, separada à força da família e sozinha, conheceu e casou-se com o antropólogo Darcy Ribeiro, com quem estabeleceria uma parceria vitalícia. Juntos, desbravaram fronteiras ainda inexploradas do rico patrimônio indígena, contribuindo para a formação de coleções, documentos, livros, associações, museus e pessoas. Berta Ribeiro dedicou sua vida a amplificar a voz das populações que estudou, defendendo a valorização e a preservação de suas culturas. Hoje, 27 anos após seu falecimento, é um símbolo da luta pelo reconhecimento dos povos originários e respeito pela natureza, cujas contribuições perduram e se renovam através das décadas.

O primeiro contato de Berta Ribeiro com populações indígenas ocorreu durante visitas dirigidas aos Kaingang, no sul do Brasil. Embora a intenção primária tenha sido acompanhar os trabalhos do marido, ao mesmo tempo em que coletava dados etnográficos e contribuía para as pesquisas de Darcy Ribeiro, Berta Ribeiro começou a desenvolver suas próprias visões e interesses sobre a realidade vivida por esses povos. As viagens continuaram em aldeias no Mato Grosso, no Maranhão e no Alto e Médio rio Xingu, permitindo que, cada vez mais, encontrasse um jeito próprio de estudar as populações indígenas. “Os interesses de Berta e Darcy eram diferentes”, explica a historiadora Bianca França, especialista em Etnologia e Antropologia que tem se dedicado a estudar e divulgar a contribuição de Berta Ribeiro para a cultura indígena. A pesquisadora, que dirigiu e produziu o documentário “Para Berta, com amor” destaca que, enquanto Darcy buscava formular uma espécie de “lei geral” para explicar a formação do povo brasileiro, Berta Ribeiro tinha uma preocupação maior com a cultura material e a arte visual dos indígenas, além de um trabalho muito voltado, inicialmente, para taxonomias, catálogos e levantamentos.

 

“O trabalho de Berta Ribeiro já reconhecia os direitos dos povos indígenas como proprietários intelectuais de suas expressões culturais tradicionais e dos saberes compartilhados.”

 

Em diferentes épocas, as viagens de Berta Ribeiro rumaram aos povos Tukanos e Desanos, na região do Alto Rio Negro. No final da década de 1970, a pesquisadora investigava o cotidiano da aldeia Pari-Cachoeira, em São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas, quando Carlos Tukano, Cacique da Tribo Maracanã e presidente do Conselho Estadual dos Direitos Indígenas do Estado do Rio de Janeiro no Contexto Urbano vinculado ao Governo do Estado do Rio de Janeiro, se deparou com seu trabalho pela primeira vez. “Eu ainda era muito novo, mas me lembro que ela estava fazendo pesquisas sobre grafismos e a vida dos povos indígenas lá do Alto Rio Negro”, recorda. Anos depois, Carlos Tukano, que também é representante dos povos indígenas que vivem em contextos urbanos no Conselho Estadual dos Direitos Indígenas do Rio de Janeiro (CEDIND), veria de perto alguns dos resultados dessas visitas expostos no Museu Nacional dos Povos Indígenas (antigo Museu do Índio), criado por Darcy Ribeiro nos anos 1950.

 

Um escritório, duas paixões

Longe do campo e dentro de seu escritório em Copacabana, Berta Ribeiro se preocupava em registrar, de forma sistemática, detalhada e organizada, as observações feitas durante as visitas a campo. A máquina de escrever foi sua companheira durante a redação de dezenas de artigos, cartas, documentos e livros. Entre eles, em 1978, a pesquisadora datilografou, revisou e reescreveu o texto do livro “Antes o Mundo Não Existia” que fora escrito pelos nativos Desanos Firmiano Lana e Luiz Lana, pai e filho, para retratar a mitologia de seu povo. Carlos Tukano lembra que a contribuição de Berta Ribeiro foi essencial para que essa obra se materializasse e ganhasse as proporções que tem hoje, com uma tiragem de cinco mil exemplares na primeira edição e duas novas levas lançadas em 1995 e em 2019. (Figura 1)


Figura 1. Berta Ribeiro e sua fiel companheira, a máquina de escrever
(Foto: Fundação Darcy Ribeiro. Reprodução)

 

Ao abrir mão de ter seu nome estampado na capa de “Antes o Mundo Não Existia”, Berta Ribeiro deixou ainda mais clara a forma com que via e desempenhava o seu trabalho. “O trabalho de Berta Ribeiro já reconhecia os direitos dos povos indígenas como proprietários intelectuais de suas expressões culturais tradicionais e dos saberes compartilhados a partir do estudo de cestarias, da arte plumária e de grafismos que integram essas expressões e não se separam da biodiversidade mais conservada do planeta, que são os territórios indígenas”, aponta Fernanda Kaingáng, Diretora do Museu Nacional dos Povos Indígenas.

A vontade de disseminar o conhecimento obtido nas visitas a campo e ampliar o alcance das vozes nativas persistiu por toda a vida e, em 1995, deu origem a seu último livro: “Os Índios das Águas Pretas”. Composta por mais de 260 páginas, a obra retrata a vida social e econômica dos povos Desanos, com capítulos sobre os costumes sociais, as práticas adotadas para a agricultura, as visões de mundo e tecnologias empregadas na rotina dos nativos dessa região. Como em muitas de suas publicações, Berta Ribeiro desejava trazer à tona o patrimônio cultural imaterial indígena, além de destacar a riqueza de suas tradições para a preservação ecológica. “O patrimônio [indígena] não é em ouro, não é em prata, não é em edifícios, não é em templos… É em sabedoria!”, disse, em entrevista em 1988 durante a 40ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

 

Coleções sobre o patrimônio indígena

Bianca França recorda que um de seus primeiros contatos com Berta Ribeiro foi através do “Dicionário do Artesanato Indígena”, escrito por Berta Ribeiro e publicado em 1988. A pesquisadora conheceu a obra em meados de 2014, quando começou a trabalhar no Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional. “Eu era estagiária, ainda estava na graduação em História na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Na época, realizava um trabalho com objetos de cultura material dos indígenas Ticuna do Alto Solimões, do Amazonas, e, por conta desse levantamento sobre coleções do Setor de Etnologia, consultava muito o ‘Dicionário do Artesanato’”, explica.

Além do legado escrito para as próximas gerações, foi nesse mesmo Museu que Berta Ribeiro atuou como Naturalista e pesquisadora no Setor de Etnologia a partir de 1953. A contratação se deu logo após sua formatura em História e Geografia na antiga Universidade do Distrito Federal, atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e rendeu frutos que contribuíram para o desenvolvimento e a organização do acervo. “Por exemplo, ela fez um dos primeiros modelos de fichas catalográficas de objetos do Setor e participou do Seminário Internacional sobre Curare e Substâncias Curarizantes, em 1957, o que contribuiu para a exposição de curarizantes no Museu”, destaca Bianca França.

 

“Berta Ribeiro era uma visionária, uma mulher à frente do seu tempo, cujo trabalho consiste em um legado valioso para a memória, a valorização, a salvaguarda e a promoção do patrimônio cultural dos povos indígenas do Brasil.”

 

Após um período de exílio no exterior e um hiato de 18 anos em sua carreira, Berta Ribeiro retornou ao Setor de Etnologia do Museu Nacional em 1977, em um projeto chamado Corpus Etnográfico do Alto Xingu, no qual se preocupava em abordar os aspectos tecnológicos do estudo da cultura material indígena e suas possíveis implicações ecológicas. “Nesse projeto, Berta Ribeiro contribuiu com a catalogação dos objetos xinguanos do Setor, a formação de novas coleções, publicações, dentre outras contribuições”, acrescenta a pesquisadora Bianca França.

Durante a década de 1980, Berta Ribeiro também formou coleções para o Museu Paraense Emílio Goeldi e para o Museu Nacional dos Povos Indígenas, onde foi chefe da Museologia. Nesse período, soma uma contribuição de 26 peças dos indígenas Araweté do Pará e 44 objetos dos indígenas Asurini do Xingu. “Hoje, temos um Museu criado para combater o preconceito contra os povos indígenas, que foi precursor na formação acadêmica de antropólogos e abriga um acervo etnográfico composto por 21 mil objetos ou expressões culturais tradicionais de 193 povos indígenas dos seis biomas, (…) que é fruto do trabalho e do comprometimento de muitas pessoas e, em especial, de Berta Ribeiro, a partir de sua relação de respeito com os povos indígenas”, celebra Fernanda Kaingáng em referência ao antigo Museu do Índio.

 

Antropologia e ensino

Dentro e fora dos museus, Berta Ribeiro também atuou como professora e formadora de pessoas. Ministrou disciplinas como “Arte Indígena no Brasil” e “Cultura Material e Arte Étnica”, além de ter orientado diversos alunos nos temas de sua especialidade. Junto a Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão, teve papel importante na constituição do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), no Distrito Federal. Atuou na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Universidade de Campina Grande (UFCG), na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), na Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso Brasil) e compartilhou sua trajetória por meio de incontáveis eventos. “Seu trabalho é uma inspiração para gerações no contexto da Antropologia, da Etnologia e da Museologia Social”, diz Fernanda Kaingáng.

Além de trabalhos de pesquisa, ensino e extensão, Berta Ribeiro também teve participação importante na própria institucionalização da área de Antropologia no Brasil. Renato Athias, antropólogo e colega de Berta Ribeiro, recorda, no documentário Para Berta, com Amor, a trajetória da pesquisadora na fundação da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). “Foi em 1955 (…). Ela organizava as minutas, organizava os textos e participava efetivamente das discussões”, comenta, destacando que a área ainda era estudada por poucos pesquisadores no Brasil.

 

Influência na política

Carlos Tukano reforça que a atuação de Berta Ribeiro foi fundamental para direcionar o olhar de pesquisadores e tomadores de decisões para as populações originárias. “Ninguém conhecia as questões indígenas na época, só chamavam de ‘índio atrasado’, ‘sem cultura’, ‘economicamente pobre’…” explica. “Então, a visão que ela trouxe para as metrópoles, para as grandes cidades, mudou um pouco a visão sobre os povos indígenas e começaram a chegar pesquisadores e historiadores nas áreas indígenas”, complementa.

Para Fernanda Kaingáng, o trabalho da antropóloga influenciou, inclusive, a criação de políticas importantes e ainda vigentes. “Hoje, o Brasil possui uma vasta legislação que está na base das políticas públicas de preservação e promoção da diversidade cultural dos povos indígenas do Brasil, como arte, ciência e tecnologias profundamente interligadas com os territórios e respeito às formas de vida que integram nossas formas de viver e de ver o mundo”, diz.

 

“O trabalho dela traz importantes diálogos até mesmo com questões contemporâneas, como o debate sobre o papel do indígena na preservação do meio-ambiente, o papel dos museus como ferramentas pedagógicas e político-polêmicas, e a necessidade de nós, cientistas, levarmos nossas pesquisas em linguagem compreensível às massas.”

 

A Lei 11.645/2008, por exemplo, tornou obrigatório o ensino da história e das culturas indígenas e afro-brasileiras nas escolas públicas. A legislação foi implementada em 2008 e traz como base princípios já defendidos por Berta Ribeiro no final do século XX, como a inclusão e a diversidade cultural. “Berta Ribeiro era uma visionária, uma mulher à frente do seu tempo, cujo trabalho consiste em um legado valioso para a memória, a valorização, a salvaguarda e a promoção do patrimônio cultural dos povos indígenas do Brasil”, reforça Fernanda Kaingáng. Para a Diretora do Museu Nacional dos Povos Indígenas, as sementes plantadas pelo trabalho de Berta Ribeiro produzem frutos até hoje nos campos da Antropologia, da Museologia Social, da Etnologia e da propriedade intelectual.

 

Legado que perdura e reflete no contexto atual

Ao mesmo tempo em que as coleções, os livros e documentos produzidos por ela ainda servem como base para estudos antropológicos, diversas homenagens visam manter viva a memória de Berta Ribeiro. Seu nome batiza a maior reserva técnica do antigo Museu do Índio, a “Reserva Técnica Dra. Berta Gleizer Ribeiro”, formada por 7.961 itens, incluindo objetos de rituais, lúdicos, armas, instrumentos musicais e utensílios, provenientes de 98 povos da América Latina. “Os objetos de Berta Ribeiro no Museu Nacional, infelizmente, se perderam no incêndio de setembro de 2018, mas, no Museu do Índio, até hoje é possível visitar as coleções formadas por ela, que, inclusive, são emprestadas para exposições itinerantes pelo Brasil”, aponta Bianca França. (Figura 2)


Figura 2. Berta Ribeiro e parte do acervo original do Memorial dos Povos Indígenas.
(Foto: Fundação Darcy Ribeiro. Reprodução)

 

Berta Ribeiro completaria 100 anos em outubro de 2024, mas faleceu em novembro de 1997, poucos meses após Darcy Ribeiro. Quase 30 anos após ter nos deixado, sua vida ainda ressoa em seu legado físico e nas reflexões sobre respeito e preservação da natureza que iniciou décadas atrás. “O trabalho dela traz importantes diálogos até mesmo com questões contemporâneas, como o debate sobre o papel do indígena na preservação do meio-ambiente, o papel dos museus como ferramentas pedagógicas e político-polêmicas, além de áreas de lazer, e a necessidade de nós, cientistas, levarmos nossas pesquisas em linguagem compreensível às massas”, exemplifica Bianca França.

Outro exemplo é o livro “Amazônia Urgente”, lançado por Berta Ribeiro em 1990, que traz em destaque a imagem de uma árvore desmatada e enfatiza a necessidade de uma abordagem sustentável para a conservação da região. Ainda assim, embora o desmatamento florestal amazônico tenha reduzido significativamente entre 2023 e 2024, a região continua a padecer com queimadas e com a exploração desenfreada de recursos e segue pedindo uma maior atenção por parte dos tomadores de decisão.

“Muito há para ser feito em termos de preservação da biodiversidade e do patrimônio dos povos indígenas em um Brasil no qual o genocídio e o ecocídio fazem o país arder nas chamas do ódio, da desinformação e da intolerância que semeiam monoculturas da morte e consideram a diversidade como um fator de extermínio, não de riqueza ambiental e cultural”, alerta Fernanda Kaingáng. Carlos Tukano concorda e sinaliza a necessidade de, nas palavras de Bianca França, “ouvir o que os indígenas têm a dizer sobre suas demandas e trabalhar conjuntamente para resolver”. “[Os estudantes indígenas que frequentam Universidades] se formam nas grandes cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Manaus, e ficam por lá. O Governo Federal teria que aplicar uma política para verificar isso, para ter mão de obra nas reservas indígenas, melhorar a situação das florestas e dos povos indígenas dentro das aldeias”, sugere o membro do CEDIND.

 

Capa. Berta Ribeiro em expedição com povos indígenas, dedicando-se à pesquisa e preservação das tradições culturais que estudou ao longo de sua vida
(Foto: Fundação Darcy Ribeiro. Reprodução)
Bianca Bosso

Bianca Bosso

Bianca Bosso é especialista em Jornalismo Científico e Bacharela em Ciências Biológicas (Unicamp). Iniciou sua trajetória na Divulgação Científica no ano de 2018. Já desenvolveu pautas para revistas como Ciência & Cultura, ComCiência e Ciência Hoje, além de sites como Agência Bori, Jornal da Unicamp, Portal Campinas Inovadora e blog Ciência na Rua.
Bianca Bosso é especialista em Jornalismo Científico e Bacharela em Ciências Biológicas (Unicamp). Iniciou sua trajetória na Divulgação Científica no ano de 2018. Já desenvolveu pautas para revistas como Ciência & Cultura, ComCiência e Ciência Hoje, além de sites como Agência Bori, Jornal da Unicamp, Portal Campinas Inovadora e blog Ciência na Rua.
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