Comunidade do Cerrado mineiro preserva tradições reconhecidas pela ONU como único Patrimônio Agrícola Mundial do país
No coração da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, o Quilombo Raiz cultiva um elo profundo entre natureza, cultura e resistência. Andréia Ferreira dos Santos, criada por sua avó no quilombo fundado por sua trisavó, é parte da quinta geração de apanhadores de flores da comunidade. Desde pequena, ela colhe as “sempre-vivas”, plantas que compõem buquês ornamentais de longa duração e sustentam a economia local.
As sempre-vivas, que representam mais de 300 espécies do Cerrado, são secas e transformadas em produtos que há séculos sustentam as comunidades tradicionais da região. Reconhecendo a importância dessa prática ancestral, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) concedeu às sempre-vivas o título de primeiro Sistema Importante do Patrimônio Agrícola Mundial (Sipam) brasileiro.
Tradição e transformação em tempos de desafios
O Quilombo Raiz combina o sistema de cultivo da “roça de toco” e a criação de animais com a coleta das flores. A cada safra, uma pessoa pode colher até uma tonelada de flores, vendidas por valores que variam de R$ 25 a R$ 70 por quilo. No entanto, essa tradição começou a ser ameaçada nos anos 2000, com a expansão da monocultura de eucalipto, que reduziu os territórios de coleta.
Com a perda de espaço e renda, a comunidade adaptou-se, investindo na produção de artesanatos de capim-dourado. Desde 2006, pulseiras, luminárias e outros produtos feitos à mão chegaram a feiras nacionais e internacionais, agregando valor ao trabalho local sem abandonar a tradição das sempre-vivas.
Resiliência e liderança feminina
Andréia destaca que a resistência das mulheres foi essencial para a sobrevivência da cultura e do território. “É uma rede de mulheres que mantém a comunidade. Elas estão nos quintais, na luta, e compõem a associação que nos representa”, explica.
Desde 2014, Andréia e outros jovens quilombolas integram movimentos sociais em defesa dos direitos das comunidades extrativistas. Essas mobilizações garantiram conquistas como o reconhecimento oficial do Quilombo Raiz em 2015 e o título de Patrimônio Agrícola em 2018, fortalecendo a luta contra ameaças como a mineração, que colocava em risco a água e os campos de colheita.
“A comunidade entende que é muito mais importante ter água do que dinheiro. Nós vivemos do que temos e queremos continuar assim”, afirma Andréia. Além disso, o reconhecimento internacional trouxe benefícios concretos, como a participação no Programa Nacional de Alimentação Escolar e no Programa de Aquisição de Alimentos, iniciativas que conectam a produção agrícola familiar às compras públicas.
Sipam: tradição e inovação para o futuro
O programa Sipam da FAO, que desde 2002 reconhece sistemas agrícolas tradicionais ao redor do mundo, reforça a importância de unir práticas ancestrais e inovação para enfrentar desafios globais, como mudanças climáticas e perda de biodiversidade. O Quilombo Raiz é um exemplo de como o conhecimento tradicional pode ser preservado enquanto se constrói um futuro sustentável e resiliente.
Apesar das conquistas, Andréia ressalta sua preocupação com o futuro: “Se não conseguirmos gerar renda que mantenha os jovens no território, será difícil preservar nossa cultura e modo de vida.” Mas, com a força de suas líderes e o apoio de iniciativas nacionais e internacionais, o Quilombo Raiz segue mobilizado para garantir que as sempre-vivas continuem sendo símbolo de resistência e esperança para as próximas gerações.
Com informações de ONU News