Introdução
Vivemos numa era em que os efeitos da mudança climática se manifestam com clareza crescente, seja pelas temperaturas extremas, pelo nível do mar em elevação ou pela frequência de eventos climáticos severos.[1] Entretanto, esse fenômeno é apenas um dos componentes de um quadro mais amplo — a contínua perda de biodiversidade e a rápida erosão da sociobiodiversidade, que abrange não apenas a diversidade biológica, mas também os modos de vida, conhecimentos tradicionais, inovações e práticas de uso sustentável desenvolvidos historicamente por povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares.[2, 3]
A sociobiodiversidade representa, portanto, a coevolução entre a diversidade cultural humana e os ecossistemas em que está inserida, sendo crucial para a conservação da natureza, a segurança alimentar e a resiliência climática. O vínculo entre essas crises globais — climática, biodiversidade e sociodiversidade — é profundo e multifacetado: mudanças climáticas impactam ecossistemas e comunidades humanas, enquanto a perda de biodiversidade e a erosão da sociobiodiversidade enfraquecem nossa capacidade de responder às alterações ambientais.[3]
Biodiversidade e sociobiodiversidade como mecanismos reguladores
Seguro, adaptável e resiliente — assim se comporta um sistema ecológico biodiverso, especialmente quando gerido de forma socialmente inclusiva.[4] Espécies diferentes desempenham papéis complementares em um ecossistema, desde polinizadores até predadores e decompositores. Essa complexidade funcional, aliada aos conhecimentos tradicionais de povos indígenas, comunidades quilombolas e agricultores familiares, permite regular o clima local e global: florestas tropicais sequestram carbono, solos vivos armazenam nutrientes e água, e ecossistemas manejados por comunidades tradicionais mantêm estoques de carbono e serviços ambientais.[5] (Figura 1)

Figura 1. Florestas tropicais sequestram carbono, solos vivos armazenam nutrientes e água, e ecossistemas manejados por comunidades tradicionais mantêm estoques de carbono e serviços ambientais.
(Foto: Greenpeace Brasil. Reprodução)
Com a perda da sociobiodiversidade, essas funções enfraquecem. A perda de espécies-chave ou de práticas tradicionais de manejo pode desencadear efeitos em cascata — processos difíceis de reverter, que comprometem tanto o equilíbrio climático quanto a segurança alimentar e cultural.[6]
Embora pesquisas recentes tenham demonstrado que as atividades humanas de longo prazo deixaram legados detectáveis nas florestas neotropicais — como o enriquecimento local de espécies domesticadas ou úteis perto de sítios arqueológicos — deve-se evitar enfatizar excessivamente o papel explicativo da sociobiodiversidade na compreensão da riqueza excepcional destas florestas. A biodiversidade neotropical é resultado de uma combinação de profunda história evolutiva, gradientes ambientais em larga escala e regimes de perturbação natural que se estendem além da influência humana.[7] Mesmo estudos que destacam legados antropogênicos [8, 9] reconhecem, por exemplo, que as paisagens domesticadas e os solos antropogênicos férteis ocupam somente uma parte limitada da região Amazônica e que a influência humana é espacialmente heterogênea. Assim, é preciso reconhecer que as contribuições humanas devem complementar — e não substituir — as explicações ecológicas e biogeográficas multicausais para a origem e conservação da biodiversidade das florestas neotropicais.
Mudanças climáticas aceleram o declínio da biodiversidade e da sociobiodiversidade
A mudança climática atua como catalisador de crises ecológicas e sociais.[10] O aumento da temperatura média global altera padrões de precipitação, intensifica secas, inundações e incêndios, e provoca, entre outras consequências:
- Migração ou extinção local de espécies incapazes de se adaptar rapidamente.[11]
- Erosão das interações ecológicas e socioecológicas, como a polinização e o extrativismo de frutos nativos.[12]
- Acidificação dos oceanos, que afeta comunidades costeiras dependentes da pesca.[13]
- Deslocamento e vulnerabilização de populações tradicionais, cujas práticas de manejo dependem de ciclos climáticos estáveis.[3]
Consequentemente, o colapso da biodiversidade e a erosão da sociobiodiversidade caminham lado a lado, criando rapidamente zonas de vulnerabilidade ambiental e social.
Biodiversidade e sociobiodiversidade como soluções para a resiliência climática
Contrário ao que muitos imaginam, a biodiversidade e a sociobiodiversidade não são apenas partes do problema — são peças fundamentais da solução.[4] Solos saudáveis e biodiversos, estocados com saberes locais, têm maior capacidade de armazenar carbono e de manter a umidade. Sistemas agroflorestais tradicionais, como os quintais amazônicos ou os sistemas de coivara manejados de forma sustentável, são exemplos de como o conhecimento sociocultural contribui para a adaptação climática.[14]
“Solos saudáveis e biodiversos, estocados com saberes locais, têm maior capacidade de armazenar carbono e de manter a umidade.”
Zonas úmidas, como as Florestas de Várzea, o Pantanal e os manguezais restaurados com a participação de comunidades locais, reduzem os impactos de cheias e tempestades.[5] Além disso, unidades de conservação e terras indígenas funcionam como refúgios climáticos e socioculturais, preservando espécies e modos de vida.[15]
O círculo vicioso da destruição ambiental
À medida que perdemos biodiversidade, perdemos também o conhecimento associado a ela.[16] Saberes tradicionais desaparecem junto com espécies e paisagens, enfraquecendo estratégias comunitárias de mitigação e adaptação. Sem sistemas naturais robustos e governança participativa, aumentam as emissões de gases de efeito estufa — seja pela liberação de carbono em florestas degradadas, seja pela substituição de sistemas agroextrativistas por monocultivos intensivos.[17]
“À medida que perdemos biodiversidade, perdemos também o conhecimento associado a ela.”
O resultado é um círculo vicioso: mudanças climáticas aceleram a perda da sociobiodiversidade, e essa perda reduz a capacidade de resposta climática.
Conservação integrada e valorização da sociobiodiversidade
Políticas públicas e ações cidadãs precisam caminhar juntas para proteger tanto a biodiversidade quanto os saberes e as práticas sociais que dela dependem.[18] Algumas diretrizes incluem:
- Proteção e restauração de ecossistemas-chave, envolvendo comunidades locais desde a concepção dos projetos;
- Fortalecimento de cadeias produtivas da sociobiodiversidade, como castanha-do-brasil, açaí e pirarucu;
- Conectividade ecológica e cultural, que permita fluxos genéticos e o fortalecimento de redes de troca de sementes e conhecimentos.[19]
- Apoio a sistemas agrícolas regenerativos e tradicionais, valorizando o manejo sustentável e a economia de base comunitária;
- Políticas de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) que reconheçam e remunere os guardiões da biodiversidade.
Excelentes exemplos já existem: projetos de manejo participativo do pirarucu na Amazônia, cadeias de mel de abelhas nativas no Cerrado e o extrativismo comunitário do látex no Acre demonstram que a sociobiodiversidade é uma ferramenta estratégica de mitigação e adaptação climática.[3, 4]
Justiça climática, direitos territoriais e sociobiodiversidade
As comunidades tradicionais — indígenas, ribeirinhas, quilombolas, seringueiros e agricultores familiares — estão na linha de frente tanto da conservação quanto da vulnerabilidade climática.[3] Quando a biodiversidade se degrada e o clima se altera, suas bases materiais e culturais são diretamente afetadas. (Figura 2)

Figura 2. Comunidades tradicionais estão na linha de frente tanto da conservação quanto da vulnerabilidade climática.
(Foto. Ascom Unicamp. Reprodução)
Políticas eficazes precisam incluir:
- Reconhecimento de direitos territoriais, garantindo segurança fundiária e acesso a recursos;
- Participação ativa na governança ambiental, não apenas como beneficiários, mas como co-decisores [16];
- Valorização de práticas ancestrais, muitas vezes mais sustentáveis do que os modelos industrializados.[20]
Sem justiça climática, a transição ecológica corre o risco de reproduzir desigualdades históricas.
O papel da ciência, da educação e da coprodução do conhecimento
Conectar biodiversidade, sociobiodiversidade e mudança climática requer ciência aberta, interdisciplinar e dialógica.[4] Pesquisas recentes evidenciam que a coprodução de conhecimento — integrando cientistas, comunidades locais e tomadores de decisão — resulta em soluções mais eficazes e socialmente legitimadas. [17, 19] Educação ambiental, comunicação científica e valorização dos idiomas e cosmologias tradicionais são igualmente centrais. As populações urbanas, cada vez mais distantes da natureza, precisam compreender que a sociobiodiversidade é tão estratégica quanto as tecnologias limpas para atingir as metas climáticas.
Conclusão
Biodiversidade, sociobiodiversidade e mudanças climáticas não são crises separadas — são faces de uma mesma equação ambiental e social. De um lado, ecossistemas e comunidades perdem capacidade de resistir e regular o clima; do outro, a ação climática se torna ineficaz se ignora a diversidade biológica e cultural que sustenta a resiliência do planeta.
“Sem justiça climática, a transição ecológica corre o risco de reproduzir desigualdades históricas.”
Enfrentar esse cenário exige visão sistêmica, integrada e justa. Ao reconhecermos que a natureza não é somente vítima, mas aliada — e que as comunidades tradicionais são parceiras estratégicas, não obstáculos — passamos da cultura da proteção para a da regeneração.[3, 16] E, nessa mudança de paradigma, reside nossa esperança: um futuro em que clima, biodiversidade e sociobiodiversidade coexistam em equilíbrio — um futuro mais saudável, sustentável e justo.
Capa. Biodiversidade, sociobiodiversidade e mudanças climáticas são faces de uma mesma equação ambiental e social.
(Fonte: Bruno Kelly/ARFOC-SP & Amazonia Real. Reprodução)