Carolina Bori veio a Belo Horizonte a convite de Célio Garcia, professor de Psicologia Social. Célio, psicanalista, já trouxera Max Pagès, André Levy e outros franceses que nos ensinavam intervenção psicossociológica e dinâmica de grupo.
Célio era nosso guru. Era ele quem nos falava das novidades, a maioria da Europa, da França. O behaviorismo ainda passava longe da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais naquele começo do ano de 1969.
Angelina Garcia, mulher do Célio na época, chegou de São Paulo com uma notícia: Carolina daria um curso para o setor de Psicologia Social. “Ela aceitou vir. Conversamos muito, fiquei impressionada com a organização, as apostilas, tudo muito organizadinho nos armários”.
Passados alguns meses, estávamos lendo Zajonc em impecáveis apostilas mimeografadas a álcool e, pela primeira vez, ouvíamos falar de curso programado individualizado. A Psicologia Social experimental, tema do curso, pouco ou nada frutificou no Departamento de Psicologia. Mas, daquela ocasião em diante, a Psicologia Experimental ensinada em Belo Horizonte não seria mais a mesma.
Formávamos um grupo de jovens críticos e arrogantes, como esses que calham de acontecer de vez em quando na Universidade. Nas longas conversas que tivemos com Carolina, no antigo prédio da rua Carangola, percebemos de imediato o alcance da ruptura conceituai e metodológica com o pensamento tradicional que ela estava a nos oferecer. (Figura 1)
Figura 1. Carolina Bori marcou uma mudança significativa na forma de ensino da Psicologia Experimental na UFMG.
(Foto: Acervo UFMG. Reprodução)
Por iniciativa de Adi Álvares Correia Dias, cerca de três meses antes da vinda de Carolina havíamos sido convidados a fazer concurso para preencher vagas de auxiliar de ensino em várias disciplinas do Departamento. Éramos bacharéis recém-graduados, alunos das primeiras turmas de psicologia da Faculdade, muitos ainda cursando o quinto ano.
Em meados do segundo semestre de 1969, já como professores de Psicologia Geral e Experimental, Lúcio Marzagão e eu conseguimos que o diretor da Faculdade, José Ernesto Ballstaedt, nos financiasse uma viagem de carro a São Paulo para conhecer o Departamento de Psicologia Experimental da Universidade de São Paulo. Pela rodovia Fernão Dias, num velho fusca, aportamos na Cidade Universitária.
Carolina nos recebeu em seu gabinete cheio de livros no “B-10” e nos apresentou a Maria Amélia Matos, que acabara de chegar do doutorado em Columbia. Num tour pelo Departamento, vimos o equipamento do Mário Guidi, os laboratórios, o biotério, as aranhas do César Ades, e dali prolongamos a viagem até a Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, onde nos aguardava o João Cláudio Todorov.
“Carolina recebeu os mineiros na pós-graduação da USP com um carinho especialíssimo.”
Na volta a Belo Horizonte, trazíamos na bagagem uma coleção de textos básicos, anotações bibliográficas, dicas de equipamentos e os programas do curso de introdução à Psicologia Experimental da USP de São Paulo, os primeiros que víamos de Análise Experimental do Comportamento. O convite de Célio a Carolina por certo não previa o desenvolvimento que se seguiu.
No ensino de graduação a mudança foi radical e rápida. Desde a criação do curso de Psicologia da UFMG, seis anos antes, a disciplina Psicologia Experimental era ministrada em módulos, segundo a divisão tradicional: motivação, emoção, pensamento, linguagem, percepção, processos sensoriais, aprendizagem. Desta última tínhamos notícia. Skinner era uma excentricidade. Liamos relatos dos experimentos clássicos — os gatos de Thomdike, as sílabas sem sentido de Ebbinghaus, o fenômeno phi de Wertheimer, a ilusão de Mueller-Lyer, os macacos superiores de Kõeller…
No semestre seguinte, a disciplina era outra: Whaley-Malott, Keller-Schoenfeld, Holland-Skinner, Ferster-Perrott, Staats, Bandura, Ciência e Comportamento Humano e o que mais o nosso entusiasmo pelos recém-descobertos princípios da Análise Experimental do Comportamento nos permitisse mudar. Nessa altura, trouxemos o João Cláudio Todorov, que lapidou o básico que sabíamos e nos fez vislumbrar o horizonte da pesquisa de laboratório. (Figura 2)
Figura 2. As conversas e o curso de Carolina Bori inspiraram jovens psicólogos a desafiar o pensamento tradicional.
(Foto: Acervo SBPC. Reprodução)
Mais tarde, Jefferson Machado Pinto e Lígia Maria Machado estenderiam a mudança curricular que se verificava na UFMG à Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, para onde levaram os novos programas de introdução à Análise Experimental do Comportamento fornecidos por Carolina.
Em 1970, com o incentivo do João Cláudio, começaria a migração mineira para o B-10. Um a um ou em grupos egressos de turmas de formandos da UFMG e da PUC, Carolina recebeu os mineiros na pós-graduação da USP com um carinho especialíssimo. Orientou muitos, a começar pelo autor deste relato. Como precursoras de uma leva que ainda hoje transita pela Fernão Dias, já frequentavam o B-10 a Maria Ângela Morethzon e a Therezinha Vieira. Depois seguiram o mesmo caminho: Jefferson, Lígia, Luís Pimenta Neves Júnior, Jane de Castro, Marina Bandeira, Newton Vitral, Laura Ciruffo, Georgina Alves da Silva, Mário Lúcio Vieira, Klécius Borges, Cloves Bauer, Adélia Teixeira e Sérgio Cirino.
Em 1971, Maria Amélia abriu novas portas ministrando seminários de programação de cursos de análise do comportamento a um grupo de professoras de Psicologia Geral e Experimental. Nessa época Jefferson conseguiu a proeza de condicionar um rato a pressionar uma alavanca descomunal, uma catapulta de cerca de um palmo, instalada numa gaiola abandonada que alguém tentara construir, no passado, pensando tratar-se de uma Caixa de Skinner. Foi, certamente, o primeiro condicionamento de uma resposta a algo parecido com uma barra de que se teve notícia em Belo Horizonte.
“Houve tempos difíceis, de intolerância, nesse período. Mas o interesse pela experimentação cresceu e se tomou central nos currículos de graduação de Belo Horizonte.”
Há dias, voltando ao Departamento, abri uma caixa de condicionamento do antigo IBECC e olhei em tomo. Espalhadas pelas bancadas do laboratório de condicionamento operante vi uma dezena de caixas semelhantes, todas do modelo dos primeiros tempos. Relatei a alguns alunos como tudo aquilo começou, com Fred Keller, e pensei por um instante na vinda de Carolina, há quase 30 anos. Houve tempos difíceis, de intolerância, nesse período. Mas o interesse pela experimentação cresceu e se tomou central nos currículos de graduação de Belo Horizonte. Milhares de alunos da UFMG e da PUC receberam formação básica e aplicada em análise experimental do comportamento, um desenvolvimento que continua e hoje se estende por várias faculdades do interior de Minas Gerais.
É uma nota triste constatar que Lígia, o fruto mais exemplar da riqueza desse desenvolvimento, não esteja mais entre nós.