Introdução
A ciência tem deixado cada vez mais evidente a importância da agenda ambiental para o desenvolvimento do país, particularmente diante da crise climática, da perda de biodiversidade e da necessidade da adoção de práticas econômicas mais sustentáveis. No centro dessa agenda está a Amazônia, que embora negligenciada historicamente, ganhou um novo e crucial significado como peça-chave no equilíbrio climático global e na conservação de parte relevante da biodiversidade mundial.
A trajetória de ocupação da região é marcada por um modelo de desenvolvimento que privilegia a expansão rápida de infraestrutura e os interesses do agronegócio, gerando um rastro de desmatamento, conflitos fundiários e tensões com populações tradicionais.[1, 2] Ao introduzir instrumentos inovadores de controle do desmatamento na Amazônia, o Brasil conseguiu diminuir o corte de florestas em 87% de 2004 a 2012 e, por isso, assumiu, no âmbito do Acordo de Paris, metas audaciosas para a região: o desmatamento ilegal zero, a compensação das emissões de gases de efeito de estufa provenientes dos usos da terra e a restauração de 12 milhões de hectares de florestas, até 2030. (Figura 1)
Figura 1. Desmatamento entre os estados do Amazonas e Rondônia.
(Foto: Fábio Nascimento/ Greenpeace. Reprodução)
Ocorre que a diversidade de projetos geopolíticos formulados para a Amazônia obscurece qualquer esforço unificado para mitigar as crises ambientais e atender a esses compromissos. Tal complexidade tem impulsionado debates cruciais sobre o futuro sustentável da região amazônica, associado ao desmatamento zero [i] [3] e a uma abordagem de bioeconomia como solução para garantir a “floresta em pé”.[4, 5] Esse movimento demanda forte governança, articulação e integração com vários setores, a valorização do capital humano e social regionais e dos conhecimentos enraizados nas comunidades locais. (Figura 2)
Neste artigo, apresentamos ações-chave para uma agenda ambiental para a Amazônia, que emergem não apenas de uma reflexão teórica, mas da absorção e internalização das experiências acumuladas sobre esses temas ao longo de mais de 30 anos de pesquisas que desenvolvo na região. A intenção é clara: mostrar um caminho que considere a necessidade de manter o equilíbrio biótico e climático do planeta sem sacrificar o desenvolvimento local, transcendendo os interesses imediatistas e considerando políticas públicas transformadoras.
Figura 2. Coluna de fogo avança sobre floresta degradada em Porto Velho, Rondônia.
(Foto: Christian Braga / Greenpeace. Reprodução)
Enfrentando o desmatamento e a degradação da floresta amazônica
Os primeiros sinais de desmatamento da floresta amazônica em larga escala estavam associados à expansão da agropecuária, concentrada principalmente ao longo das estradas e nos projetos de colonização. Nas décadas de 80-90, forma-se o “arco do desmatamento”, abrangendo os estados do Pará, Maranhão, Mato Grosso e Rondônia.[6] A partir de 2000, novas frentes de desmatamento acompanhavam a abertura de novas fronteiras agrícolas,[7] comandadas por uma dinâmica regional diversificada e que levaram, em um só ano (2003), a destruição de 27 mil km2 de florestas.
Visando dar uma resposta ao desmatamento, o governo brasileiro lançou, em 2004, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), cujas ações foram responsáveis pela queda do desmatamento em 52% e da emissão de CO2 de 270 para 621 bilhões de toneladas, entre 2004 e 2010. Em 2023, uma nova versão do PPCDAm,[8] estabeleceu as diretrizes e metas para zerar o desmatamento até 2030 e alcançou uma redução de 22,3% nesse ano.[9, 10] Mas essa retomada do controle do desmatamento e combate à degradação florestal requer o fortalecimento e a garantia de recursos e pessoal adequados, dos dois programas de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE): o Programa de Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (PRODES) e o Sistema de Detecção de Desmatamentos em Tempo Real (DETER). Ambos os programas estão sob constante ameaça de paralisação por falta de infraestrutura e pessoal adequados.
Mesmo com todos os esforços empreendidos com políticas e ações contra o desmatamento da floresta amazônica, o Brasil está muito longe de alcançar o desmatamento zero proposto 18 anos atrás por.[3] Para avançar, é preciso combater a economia da grilagem [11] (a apropriação privada de terras públicas, associada a apropriação de financiamento público). Essa economia está ligada às atividades agropecuária e madeireira e integram também projetos de desenvolvimento na Amazônia, como a AMACRO, uma nova região de planejamento governamental voltada para o agronegócio, na confluência dos estados de Amazonas, Acre e Rondônia [ii]. O avanço recente do desmatamento nessa região demonstra a face mais preocupante desse processo,[12] pois atinge a região amazônica com o maior bloco de florestas contínuas, de maior diversidade.
Outra ação fundamental é a efetiva e justa aplicação da Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei 12651/2012, conhecida como Código Florestal), que poderá fortalecer a governança sobre os usos da terra na região. Isso envolve a regularização ambiental de propriedades rurais, com emprego do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e do Programa de Regularização Ambiental (PRA), instrumentos que visam adequar os passivos ambientais, como veremos adiante, e mitigar o desmatamento, evitando novas perdas de vegetação nativa. Porém, medidas de regulamentação do PRA nos estados amazônicos e melhor articulação entre as esferas federal e estadual são necessárias para novos avanços nessa agenda.
“Mesmo com todos os esforços empreendidos com políticas e ações contra o desmatamento da floresta amazônica, o Brasil está muito longe de alcançar o desmatamento zero proposto 18 anos atrás.”
Embora o desmatamento seja a parte mais visível da destruição da Amazônia, cerca de 38% de toda a área florestal remanescente na região foram degradadas por incêndios, efeitos de borda, exploração madeireira e/ou secas extremas [13] e prevê-se que até 20% da floresta remanescente na Amazônia oriental queime nos próximos anos.[14] Portanto, considerar degradação florestal zero e a sua inclusão na agenda do PPCDAM é urgente e necessária.[15] Neste sentido, o anúncio do Decreto 11687/2023 [16] que dispõe sobre a elaboração da lista dos municípios amazônicos prioritários para as ações de prevenção, monitoramento, controle e redução de desmatamentos e degradação florestal, é um alento. Outras medidas, como a criação de um fundo emergencial para prevenção e combate ao fogo em anos de seca extrema, e o apoio aos extrativistas e agricultores durante eventos de secas extremas, são igualmente importantes.[9] (Figura 3)
Figura 3. Debates sobre o futuro sustentável da região amazônica devem estar associados ao desmatamento e degradação zero e ao apoio às bioeconomias regionais
(Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil. Reprodução)
Expandindo o sistema de áreas protegidas
A expansão e a consolidação da rede de áreas protegidas amazônicas (Terras Indígenas e Unidades de Conservação) desempenharam um papel central na redução do desmatamento das florestas amazônicas. Entre 2002 e 2016, houve a expansão de 61 milhões de hectares de áreas protegidas, e essa expansão foi responsável por 37% da redução total do desmatamento na região entre 2004 e 2006.[17]
Um grande desafio para a meta de desmatamento zero é destinar as terras públicas não destinadas para a criação de novas áreas protegidas, como sugerimos em 2005.[3] Há uma fragilidade de governança e de gestão de terras públicas nas esferas federal e estadual e é preciso buscar a sua regularização São cerca de 595 mil km2 de terras públicas não destinadas na Amazônia [18] e é sobre essas áreas que ocorrem a ocupação ilegal de terras, o desmatamento ilegal e as queimadas criminosas.[19, 20] A prática mais comum dos criminosos é a de usar terras públicas para regulamentação fundiária, pois sabem que essas terras poderiam ser transferidas para seus ocupantes.[21]
Uma legislação recente (Decreto federal n.º 11.688/2023) traz uma esperança. O decreto restringe a destinação às áreas privadas, priorizando a criação de áreas protegidas, terras indígenas, territórios quilombolas e de outros povos e comunidades tradicionais, reforma agrária, concessões florestais e políticas públicas de prevenção e controle do desmatamento. Se essas áreas forem incorporadas ao sistema de conservação da região, as terras públicas estarão fora do mercado de terras, o principal motor da destruição das florestas na Amazônia.[22]
“A abordagem de bioeconomia mais apropriada à Amazônia está fortemente baseada no conhecimento e manejo da biodiversidade das florestas praticados há séculos pelas populações tradicionais.”
Mas onde, como e quanto custa criar novas áreas protegidas? O instrumento de Identificação de Áreas Prioritárias para Conservação, Utilização Sustentável e Repartição de Benefícios da Biodiversidade Brasileira (Decreto Federal n.º 5092/2004; Deliberação CONABIO n.º 39 de 14/12/2005) pode ajudar nesse processo. Em 2018, o Brasil atualizou o mapa de áreas prioritárias para conservação na Amazônia e identificou cerca de 780 mil km2 de áreas prioritárias para conservação.[23]
Usando essa base de dados do MMA e a base de dados das áreas públicas não destinadas cadastradas no Serviço Florestal Brasileiro (SFB), fizemos um estudo exploratório, sobrepondo os dois mapas, e identificamos 300 mil km2 de florestas públicas que podem ser destinadas para conservação (Figura 4 – dados inéditos) Para estimar os custos dessa destinação, usamos os dados de Silva et al. (2022) [24] e vimos que seriam necessários R$ 1,13 bilhões (U$ 226 milhões) em três anos para que o país destine essas áreas públicas como áreas protegidas na região. Comparativamente, o orçamento total realizado no PPCDAm entre 2007 e 2014 foi de R$ 8,2 bilhões.[25]
Figura 4. Área de 300 mil km2 de florestas públicas com sobreposição às áreas prioritárias para conservação na Amazônia.
(Fonte: J.M.Cardos & I.C.G Vieira)
Qualquer iniciativa que considere a destinação de terras públicas como áreas protegidas ou outras categorias deve necessariamente realizar audiências e consultas públicas envolvendo as comunidades locais.
Conhecendo e valorizando a sociobiodiversidade
A abordagem da “bioeconomia” como solução para gerar riqueza econômica com a “floresta em pé”,[1, 5, 26] tem sido a principal proposta de desenvolvimento para a Amazônia. Sem entrar na discussão se este é o melhor modelo para a região, acreditamos que a abordagem de bioeconomia mais apropriada à Amazônia está fortemente baseada no conhecimento e manejo da biodiversidade das florestas praticados há séculos pelas populações tradicionais.[27] No entanto, a expansão dessa bioeconomia da sociobiodiversidade depende de ações estruturantes para inovação, ainda inexistentes na região. O sistema de ciência e tecnologia da Amazônia se caracteriza por baixo investimento, instituições de pesquisa com deficiência de estrutura, fragilidade das redes de pesquisa, insuficiência na formação de pesquisadores, baixa fixação de pesquisadores na região e fragmentação das pesquisas, e esse quadro nos traz desafios enormes para mobilizar e concretizar ações eficientes em projetos que necessitem de forte embasamento científico, como o de bioeconomia.
Uma economia baseada na biodiversidade regional precisa contar com botânicos e ecólogos. Existem cerca de 2.250 produtos florestais não madeireiros (PFNM) de árvores e palmeiras, dentre as quais 1.037 são alimentícios, 1.001 são medicinais, e muitos são usados em cosméticos, manufatura de artesanato, dentre outros usos.[28] Ocorre que há apenas dois cursos de pós-graduação em botânica na região (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA e Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG) e estima-se que existem na Amazônia apenas 20 botânicos capazes de coletar e descrever espécies, e meia dúzia de para-taxonomistas botânicos. Neste contexto, um programa regional de botânica deveria ser estruturado para amostrar, caracterizar, mapear a biodiversidade e aprofundar estudos etnobotânicos e ecológicos dos PFNM e formar pelo menos mil novos botânicos e parataxonomistas até 2050, tendo como base o interesse das comunidades locais e a estrutura científica existente na região, com seus 330 campi de 34 institutos de P&D e universidades em mais de 166 municípios[iii]. Tais programas têm o potencial de conhecer e monitorar a biodiversidade, mas também valorizar o capital humano e social na inovação de produtos que melhorem a vida das populações que ocupam, conservam e manejam cerca de 40% das florestas da Amazônia.
Restaurando áreas desmatadas e florestas degradadas
Combater o desmatamento e restaurar florestas foram os compromissos assumidos pelo Brasil na COP21. Mas para restaurar florestas, temos que saber onde estão as áreas degradadas, qual método vamos utilizar e quem deve praticar a restauração. Duas situações devem ser priorizadas na restauração de florestas na Amazônia: 1) restaurar áreas que tenham sido desmatadas ilegalmente nas propriedades e assentamentos; 2) restaurar áreas protegidas (UC e TI) desmatadas e com florestas degradadas.
Extenso diagnóstico quantificando as áreas de passivo ambiental e com obrigação de restauração foi feito recentemente por Câmara et al. (2023).[29] Em tese, 13,11 Mha de áreas desmatadas na Amazônia deveriam ser restauradas, se cumprido o Código Florestal. Dessa área com passivo ambiental e com obrigação de restauração, 3,62 Mha são áreas de vegetação secundária, 5,03 Mha são áreas de pastagem arbustiva (pastagem degradada) e 8,47 Mha são áreas de pastagem herbácea (com mais de 90% de gramíneas, portanto ativas para o desenvolvimento da pecuária). Em geral, médios e grandes proprietários possuem os maiores passivos ambientais e o nosso entendimento é que devem ser responsáveis pela restauração do que foi destruído indevidamente.
“Há urgência de políticas que controlem o desmatamento e combatam a degradação florestal na região.”
Considerando que a regularização ambiental em imóveis rurais com passivo ambiental é um dos mais importantes instrumentos de restauração da vegetação nativa, e ainda, que a condução da regeneração natural, como bem previsto no Código Florestal, é uma abordagem importante para restaurar florestas na Amazônia,[30] cerca de 8,65 Mha poderiam ser restauradas via esse método na Amazônia e facilmente atingiríamos 70% dos compromissos assumidos pelo Brasil.
Após 20 anos, as áreas de regeneração atingem cerca de 80% da fertilidade do solo, do estoque de carbono do solo e da diversidade de árvores das florestas maduras,[31] e é considerada uma solução de baixo custo. No entanto, nem todas as florestas regenerantes possuem alta integridade ecológica,[32] estando restritas às paisagens com maior cobertura de floresta nativa e histórico de uso da terra pouco intensivo,[30] o que não é o caso de áreas abandonadas pela pecuária extensiva na Amazônia. Sob esse aspecto, métodos híbridos de restauração (passiva e ativa) devem ser considerados na restauração de áreas de pastagens muito degradadas.
Em relação às áreas protegidas, sabe-se que o desmatamento tem crescido muito nos últimos cinco anos nessas áreas e correspondem a cerca de 20% do total do desmatamento anual.[10] Em geral, áreas desmatadas dentro de áreas protegidas têm potencial de regeneração de alta integridade ecológica, por estar em matriz de paisagem com elevada cobertura florestal. Nesse caso, não há necessidade de envolver recursos de alta monta com projetos intensivos em capital, bastando conduzir a regeneração natural para garantir a integridade da floresta regenerante. Florestas incendiadas, por outro lado, têm regeneração lenta e, quando muito degradadas, requerem a aplicação de estratégia de restauração que envolve a restauração assistida, uma combinação de restauração passiva com plantio de árvores de interesse das comunidades, numa abordagem biocultural.[33] Nessa abordagem, é imprescindível remover os fatores de degradação e construir aceiros para prevenir a propagação de incêndios florestais, que são grandes ameaças a projetos de restauração florestal na Amazônia.
Métodos de restauração que envolvem plantios de sementes e/ou mudas de espécies nativas são muito dispendiosos e apenas devem ser usados em situações em que o potencial de regeneração natural é baixo. Devemos levar em conta, também, que “plantações de árvores”, embora importantes economicamente e fomentadas em muitos países, na “Década de Restauração do Ecossistema” da ONU, não devem ser consideradas como restauração florestal, pois não restabelecem ambientes diversos e complexos como as florestas.
Um complexo e desafiador caminho
No momento em que a agenda ambiental ganha novo impulso no Brasil, é preciso pensar em estratégias que procuram trazer respostas a essa crise. Tendo como base a proposta de desmatamento zero na Amazônia, é importante considerar a inclusão da degradação zero na agenda e os enormes desafios para sua efetiva implementação. Primeiramente, destacamos a urgência de políticas que controlem o desmatamento e combatam a degradação florestal na região. Isso exige medidas robustas de combate a grilagem de terras, de fiscalização, implementação e monitoramento eficazes do desmatamento, além do fortalecimento de políticas e governança dos usos da terra e garantia dos territórios tradicionais.
Por outo lado, a criação de novas áreas protegidas e a promoção da bioeconomia da sociobiodiversidade apontam para a necessidade de políticas de conservação da biodiversidade que promovam a sua expansão, melhorias na gestão e a estruturação de um sistema de ciência e tecnologia capaz de atender a esses desafios, reconhecendo e valorizando o capital humano e social regional e os conhecimentos tradicionais das comunidades locais.
No que diz respeito à restauração de áreas desmatadas e degradadas, apontamos para duas situações que requerem mais atenção e a importância de políticas que promovam a regeneração natural como uma estratégia prioritária. Isso requer a implementação de medidas de combate às queimadas e à degradação florestal, e a restauração ecológica, além do cuidado para evitar abordagens de restauração que não respeitem a complexidade dos ecossistemas florestais.
Para enfrentar esses desafios, é crucial uma abordagem integrada e biocultural, considerando não apenas as questões práticas e políticas, mas também a criação de estratégias participativas, a promoção do diálogo intercultural, assegurando que as políticas de conservação e restauração na Amazônia respeitem e incluam as comunidades tradicionais, em sua formulação e acompanhamento.
Por fim, constata-se que muitas questões estruturais para a consecução da agenda ambiental da Amazônia, aqui proposta, não se encontram sob governança de um único agente ou instituição. Existem aspectos de ordem técnica e política que afetam a implementação dessa agenda e, certamente, será necessário mobilizar vários atores regionais e tentar induzi-los a construir uma estratégia convergente de desenvolvimento para a Amazônia, capaz de superar os problemas históricos da região.