Trinta mitos da educação brasileira

Reflexões sobre a educação no Brasil: desafios, avanços e perspectivas para o futuro

Resumo

O artigo aborda mitos relacionados à educação no Brasil, destacando a importância de desmistificar ideias prejudiciais que impactam o ambiente escolar e o desenvolvimento social e cognitivo dos alunos.
ENSAIO – ESPECIAL EDUCAÇÃO

 

1. A educação era melhor antes

Nos acostumamos a ouvir pessoas lembrando que suas escolas públicas eram melhores do que as atuais. Sentimento com base na atual violência entre alunos, no desrespeito aos professores, descontinuidade por greves e suspensões de aulas. Esquecem que as escolas eram raras e para poucos, e já não eram boas pelos padrões internacionais. Até os anos 1980, quase 30% de nossas crianças nem ao menos se matriculavam, não havia livros didáticos, bibliotecas, laboratórios, nem mesmo com a precariedade que se observa atualmente. Hoje, a matrícula está quase universalizada nas primeiras séries, embora matrícula não significa frequência todos os dias, nem assistência ao longo do dia representa permanência durante os anos da educação de base que, por sua vez, não é sinônimo de aprendizado, que não significa aproveitamento e este não parece ser suficiente para formar o aluno e auxiliá-lo no entendimento do mundo contemporâneo, dando-lhe o mapa do conhecimento necessário para facilitar a busca de sua felicidade pessoal e as ferramentas para construir um país melhor e mais belo. Embora o ensino possa ter piorado quando se compara individualmente algumas das poucas escolas de antes com cada uma das muitas de hoje, o conjunto das escolas está mais abrangente e melhor.

 

2. A educação caminha bem, basta esperar os efeitos das políticas e programas criados nas últimas década

Ao longo dos últimos 70 anos, o Brasil tomou pelo menos 20 medidas ou programas que permitiram avanços: Merenda Escolar (1955), PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar (1979), Emenda Calmon (1983), Livro Didático (1985), Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), Fundef (1996), Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), Bolsa Escola Nacional (2001), I Plano Nacional de Educação (2001), Bolsa Família (2004), Pnate – Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (2004), Fundeb (2007), Piso Salarial Nacional do Professor (2008), vaga a partir dos 6 anos (2010), II Plano Nacional de Educação (2011), vaga a partir dos 4 anos (2013), vaga até os 17 anos (2016), Reforma do Ensino Médio (2017), Base Nacional Comum Curricular (2020), Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (2023). Apesar dos avanços que propiciaram, especialmente nas últimas quatro décadas, com a quase universalização das matrículas nas primeiras séries, as avaliações de comparação internacional (promovidas pela UNESCO ou pela OCDE) mantém a educação brasileira entre as piores e mais desiguais do mundo. Três brechas se ampliaram neste período: entre a educação dos pobres e a dos ricos, entre a educação no Brasil e a de outros países, e entre o que ensinamos e o que o mundo contemporâneo requer que seja ensinado para alfabetizar plenamente um cidadão moderno. Há 20 anos, não diminui o número de adultos literalmente analfabetos, e no máximo 20% dos jovens terminam o ensino médio com qualidade ao ponto de assegurar sua alfabetização plena para a contemporaneidade. Prova do fracasso das 19 primeiras foi a necessidade da 20ª medida, já na terceira década do século XXI: o Pacto Nacional pela Alfabetização em português aos oito anos, quando as crianças no exterior e de classe média ou alta brasileiras são alfabetizadas aos cinco anos no seu idioma nativo e pelo menos em um idioma estrangeiro.

 

3. A educação é pobre porque o Brasil é pobre

Ao contrário, a boa educação precede a riqueza. Educação com qualidade e equidade não é a consequência, é a causa do aumento e da distribuição de renda: é o vetor do progresso. A história mostra que nenhum país se desenvolveu sem ter primeiro um sistema educacional com qualidade para todos. Por falta de outras condições, como recursos naturais ou liberdade empresarial, é possível educar sem obter desenvolvimento, mas não é possível se desenvolver sem assegurar educação. No mundo onde o conhecimento é capital, a educação é o principal fator de produção, é a ferramenta para distribuição de renda, elemento de aglutinação social, alicerce do bem-estar e base do progresso.

 

4. A desigualdade no acesso à educação é causada pela desigualdade social: a melhoria na educação requer a distribuição prévia de renda

Na verdade, a desigualdade educacional é a principal causa da desigualdade social. A última trincheira da escravidão é a desigualdade como a educação de base é oferecida conforme a renda e o endereço da família. A renda é concentrada porque a educação de base é oferecida em “escolas senzala” ou “escolas casa grande” conforme a renda da família, reproduzindo nos filhos a desigualdade de renda entre os pais. A riqueza social bem distribuída não precede, procede da boa educação para todos.

Não é a distribuição de renda que distribui educação, é a distribuição de educação que distribui renda. A garantia do acesso à escola de qualidade para todos é o caminho para elevar a renda nacional, pelo aumento da produtividade, e para distribuir esta renda ampliada conforme o talento de cada um, não mais conforme a renda familiar. Também é a base para promover politicamente as conquistas sociais graças à participação política da população consciente de seus direitos e de sua força para erradicar a exclusão social e reduzir o tamanho da desigualdade na renda a níveis aceitáveis moralmente. O talento futebolístico é conquistado, porque a bola é redonda para todos, o talento intelectual é herdado, porque a escola paga para os filhos dos doutores é “redonda”, mas a reservada aos filhos dos analfabetos é inexistente ou “quadrada”. Programas de renda mínima reduzem a penúria da pobreza, mas não implantam estrutura para a distribuição de renda. Não é nos guichês dos bancos, mas nas bancas da escola que a renda é distribuída de forma estruturada e permanente. A estrutura distributiva de renda consiste em construir um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base, onde os filhos dos pobres e dos ricos estudem em escolas com a mesma qualidade.

 

“No mundo onde o conhecimento é capital, a educação é o principal fator de produção, é a ferramenta para distribuição de renda, elemento de aglutinação social, alicerce do bem-estar e base do progresso.”

 

5. A desigualdade na qualidade da educação é uma questão racial

Ao longo dos quatro séculos de escravidão, o Brasil ofereceu pouquíssima educação aos brasileiros e a negava absolutamente para todos seus habitantes negros, inclusive os milhões de escravos nascidos no país. A partir de 1888, a Abolição não proibiu educação aos negros, mas continuou-se negando educação, especialmente aos pobres, e por isto aos negros, porque a escravidão formal acabou, mas a pobreza continua com cor. Só muito recentemente passou-se a assegurar vaga para qualquer criança, mas em um sistema de apartação educacional que separa os filhos dos pobres em “escolas senzala” e os filhos dos ricos em “escolas casa grande”. Embora independente da cor, o fato de no Brasil a pobreza ser preta faz com que a maioria da população negra estude em “escolas senzala”. A senzala habitacional era habitada conforme a raça, a “escola senzala” é frequentada conforme a renda. Isto permite que uma nova reduzida classe média e alta de brasileiros negros tenham seus filhos em escolas de máxima qualidade.

 

6. O Brasil precisa massificar o ensino superior

O Brasil precisa universalizar a educação de base com qualidade para assegurar que todos estejam plenamente alfabetizados para o mundo contemporâneo. Independente da renda e do endereço, todo brasileiro: falar e escrever bem o idioma português; ser fluente em pelo menos mais um dos idiomas usados internacionalmente; conhecer os fundamentos da matemática, ciências, geografia, história, artes; debater com competência os temas de filosofia, política, antropologia e sociologia relacionados aos principais temas do mundo moderno; saber usar as ferramentas digitais; dispor de pelo menos um ofício que permita emprego e renda; adquirir solidariedade com os vizinhos, com a humanidade e com a natureza; querer participar da construção de um mundo melhor e mais belo, com desenvolvimento sustentável; ser capaz de obter educação continuada até o final da vida nestes tempos de incertezas e rápida mutação; se quiser, disputar vaga em curso superior de qualidade em condições iguais com todo brasileiro, independentemente da renda e do endereço. Todos com as mesmas condições para disputar vaga no ensino superior, conforme seu talento e a sua vocação. O significado de massificação exigiria negar qualidade ao sistema, barrando o incentivo aos mais talentosos em cada área de atividade, conforme a vocação e persistência do aluno, prejudicando a sociedade e o país.

 

7. Antes de matricular a todos, o Brasil precisa dar qualidade à escola

Universalizar a educação com máxima qualidade exige estratégia de médio e longo prazo, mas sem a “escolha de Sofia da educação”: qualidade ou quantidade. A escola deve ser para todos, e todas elas devem ser de qualidade. A execução desta universalização com qualidade não é possível realizar no curto prazo. Uma estratégia pode ser a implantação de um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base com qualidade pelo governo federal a ser implantado por cidades.

 

8. O Brasil já investe o suficiente

Um Sistema Nacional Público pode oferecer escola com qualidade ao custo, neste momento, de R$ 15.000 a R$ 20.000 por aluno por ano. O custo médio de um aluno em escola pública, embora muito variado conforme a série e o município ou estado, está ao redor de R$ 5.000 por ano, insuficiente para pagar aos professores um salário atrativo, financiar e manter os equipamentos necessários a uma escola de qualidade. Alguns estudos indicam que, entre 42 países, somos o terceiro pior em gasto por aluno por ano. A prova desta insuficiência é que as classes médias e alta gastam entre R$ 60.000 e R$ 200.000 por aluno ao ano em escolas privadas. Gasta-se menos do que se precisa para ter uma educação de base com qualidade, mas o que se gasta permitiria uma qualidade melhor do que temos, se os recursos fossem usados com metas e avaliações dos resultados, com mais eficiência na formação de professores, no aproveitamento deles sem greves, paralisações, nem suspensões de aulas.

 

9. Basta investir mais dinheiro

Foi este mito que levou os promotores do II Plano Nacional de Educação a se concentrarem na defesa do aumento de gastos: a luta pelo mágico número de 10% do PIB na educação, que consumiu grande parte dos debates durante a elaboração do plano. Não se buscou descobrir por que há países que gastam menos e conseguem melhores resultados, da mesma forma que no Brasil há estados e municípios melhor classificados, embora gastando menos; nem se considerou que o aumento de gastos com educação requer um sistema capaz de absorver os novos recursos eficientemente. Jogar mais recursos no atual sistema seria como soltar dinheiro de um helicóptero, sem capacidade para absorvê-lo, na primeira chuva vira lama. Não se inverteu a lógica: partir de quanto se precisava para implantar um sistema nacional, chegar-se ao valor total do custo necessário e analisar sua viabilidade em função da percentagem do PIB. Sem fixar esta proporção, porque ela pode variar conforme o crescimento ou redução da atividade econômica, e conforme o avanço tecnológico da atividade pedagógica. Não se partiu da necessidade do quanto seria preciso pagar aos futuros professores para que os mais brilhantes e vocacionados jovens do presente escolhessem a carreira do magistério e do quanto seria necessário para construir e manter bonitas, confortáveis e bem equipadas escolas que os mantenha dedicados e com os resultados esperados. Preferiu o mito mágico dos 10%, que não serviu como farol para a qualidade educacional.

 

10. O setor público não dispõe dos recursos necessários para financiar um sistema público de qualidade para todos

Para atender 50 milhões de crianças ao custo anual de R$ 15.000 por aluno, o Sistema Nacional Público necessitaria de R$ 750 bilhões. O setor público não tem condições para este desembolso imediatamente, nem teria como executá-lo se tivesse os recursos financeiros, porque não teria as edificações, os equipamentos, nem os professores e demais servidores bem qualificados e motivados. A implantação do sistema nacional com educação de máxima qualidade exige estratégia de 20 a 30 anos. Com a atual carga fiscal, se o PIB crescer a 2% ao ano, em 2043-2053 esse valor será inferior a 7% do PIB, perfeitamente viável. Lembrando que o PIB pode crescer a taxas maiores e que as novas tecnologias permitem reduzir o custo per capita.

 

“Não é a distribuição de renda que distribui educação, é a distribuição de educação que distribui renda.”

 

11. Com boa gestão, toda escola fica boa

Sem boa gestão, nenhuma escola fica boa, mas a boa gestão pouco mudará sem professor qualificado e dedicado, em escolas confortáveis e bem equipadas, usando métodos eficientes na promoção e transmissão de conhecimento. A boa gestão é necessária, mas não suficiente, não faz o milagre de transformar uma “escola senzala” em “escola casa grande”. Além disto, não basta a gestão de cada escola, é preciso gerir todo o sistema educacional, que deve incluir família, mídia e atividades culturais. E, para fazer funcionar bem uma escola, o conceito de gestão não deve se limitar às técnicas administrativas, é preciso considerar as relações políticas, sem partidarismo ou preconceitos.

 

12. A eleição de dirigentes é necessária e suficiente para democratizar as instituições escolares

A educação não promove os resultados esperados se suas escolas são geridas de forma autoritária. Mas o propósito da democracia na escola não deve se fixar no olhar para as relações internas, deve consistir na garantia de acesso de todos à educação com máxima qualidade, e a dar liberdade pedagógica aos professores, com um currículo que sirva à formação dos alunos para a vida democrática, solidária, sem preconceitos com a humanidade e a natureza. Isto não é sinônimo de entregar o poder para gerir a escola ou universidade à comunidade acadêmica, colocando-a à margem da realidade e das necessidades da sociedade. A democratização não está na entrega da escola para os professores, mas no compromisso dos professores com a sociedade. Levando-se em conta que para realizar este verdadeiro propósito da democracia a escolha dos dirigentes deve respeitar a vontade da comunidade de cada escola, mas sem descuidar do preparo técnico e da qualificação moral dos dirigentes, além de despartidarizá-los. A escolha de dirigentes por meio de eleição interna pode ser um bom critério, desde que os candidatos demonstrem qualificação, antes da própria eleição pelos pares.

 

13. O problema da educação está nos baixos salários dos professores

Os dados mostram que a qualidade da educação em cada município não está vinculada diretamente ao salário pago localmente aos seus professores, sabe-se, porém, que salários são importantes na escolha da carreira a ser seguida por muitos jovens e na dedicação deles posteriormente à sua atividade profissional; e que os salários são determinantes para garantir dedicação plena do professor, sem necessidade de renda adicional, em trabalhos paralelos. A qualificação média dos profissionais de uma carreira ou profissão e sua dedicação deste profissional à função adotada dependem dos salários que recebem e das condições em que trabalham. Com esta lógica, a qualidade da educação tem a ver com a recompensa que os professores recebem. A correlação é sobretudo verdadeira para os jovens que serão atraídos para o magistério no futuro. Por isto, uma estratégia para elevar a qualidade da educação de base exige que a carreira do magistério esteja entre as mais bem remuneradas na sociedade, e que o salário atenda às necessidades do professor. A atração depende da comparação salarial com outras profissões, a dedicação depende da comparação salarial às necessidades pessoais e familiares. Além disto, obviamente, das boas condições para o exercício da profissão, em edificações com qualidade, escolas bem equipadas, com funcionamento sem violência e sobretudo respeito dos alunos e da sociedade ao professor.

 

14. As novas tecnologias permitirão dar o salto e o professor ficará desnecessário

Sem incorporar as novas tecnologias, o processo pedagógico fica ineficiente e sem atratividade para os alunos; elas são necessárias, auxiliam, fazem a escola mais agradável, mais eficiente, mais democrática e abrangente, mas são complementos ao professor, que continuará a ser a peça central do processo pedagógico. Entretanto, é preciso considerar que as novas tecnologias vão exigir que os professores evoluam da “aula teatral” para a “aula cinematográfica”. Desde quando o escocês professor de geografia James Pillans inventou o quadro negro, no século 18, a pedagogia saiu da fase diálogo – professor e poucos alunos – para a fase teatral – professor, palco e muitos alunos. Apesar de pequenos ajustes desde então, o sistema continuou teatral, usando lousas estáticas e não inteligentes. Atravessamos agora um processo disruptivo do tipo que sofreu a arte dramática quando, há 100 anos, descobriu o cinema. A passagem do século 20 para o 21 trouxe a possibilidade de substituir os escassos recursos do quadro negro estático, sem memória nem inteligência para dar-lhe dinâmica, por lousas inteligentes com ferramentas digitais, teleinformática e bancos de dados, além de permitir que a aula chegue a todos e em toda parte, sem necessidade da presença física do professor no ambiente onde está o aluno. A “aula teatral” pode ser “aula cinematográfica” e o “professor teatral” deve dar o salto tecnológico necessário para se fazer “professor cinematográfico”.

 

15. Horário integral não é importante

Não há como alfabetizar plenamente para a contemporaneidade em escola com poucas horas por dia. No mundo atual que exige muito conhecimento e habilidades, o horário integral é absolutamente necessário: escola sem horário integral não é uma escola para a contemporaneidade. Por isto, há décadas os países com boa educação, tanto quanto as classes médias e altas brasileiras, adotaram a permanência dos alunos em escolas com horário integral para seus filhos, seja diretamente na escola, seja em atividades complementares de línguas, esportes, arte e outras atividades culturais. O Brasil precisa adotar este horário em todas suas escolas, independente da renda e do endereço de cada aluno.

 

16. Basta horário integral para que o problema educacional esteja resolvido

O ensino em horário integral é necessário, mas não basta. É preciso incorporar convivência com família e amigos e envolver a mídia tradicional e social no processo de educação. A educação deve ser tão integral que vá além de 6 a 7 horas na escola e inclua a vida social de cada aluno: teatro, cinema, televisão, streamings, restaurantes, parques de diversão, paradas e estações de transporte público, todos fazendo parte de um sistema educativo.

 

17. O Ensino à Distância não oferece boa formação para os professores

O EAD é positivo, democratizante e eficiente, devendo ser usado sempre que possível e necessário para complementar a formação do professor com aula presencial e tutoria, mas exige responsabilidade e pedagogia apropriadas para sair da linguagem teatral, apenas transmitidas, para aulas com linguagem pedagógica cinematográfica com mecanismos de acompanhamento e avaliação. Há pouco mais de cem anos, o cinema trouxe a possibilidade de levar a arte dramática do espaço teatral, restrito a poucos, ao mundo inteiro, nas telas do cinema, mas para isto exigiu e criou nova linguagem apropriada, com diferentes câmeras, elementos complementares, efeitos especiais. O EAD precisa dar este salto, não se limitar a transmitir em rede o professor no quadro negro.

 

18. Equidade educacional é garantir ingresso de todos ao ensino superior

Todo jovem deve ter direito à educação que lhe permita estar alfabetizado para a contemporaneidade, dispondo do mapa para buscar sua felicidade pessoal e das ferramentas para participar da construção de seu país, em condições de igualdade com os demais jovens, independente da renda e do endereço. A mentalidade brasileira que nega este direito criou a ilusão do slogan “Todos na Universidade”. O direito social deve estar na garantia de acesso à educação de base com qualidade para todos, assegurando alfabetização plena para a contemporaneidade. Permitindo o avanço para o ensino superior por vocação e talento, não por necessidade de diploma universitário para ter emprego e renda. Todos prontos para caminhar ao futuro em busca de sua felicidade e dispondo de ferramentas, técnicas ou políticas, para construir um país eficiente, justo, sustentável e democrático. A equidade não está na ilusória promessa de ensino superior para todos — eliminando o conceito de superior — mas em assegurar que o acesso a esta etapa não é necessário e que todos que desejarem devem disputar seu acesso em condições iguais, independentemente da renda e do endereço. Apenas o talento e a vocação definiriam o ingresso em curso superior. Nem indicações, por nascimento ou apadrinhamento, nem por comprar vaga em universidade por pagar escola com qualidade durante sua educação de base.

 

19. O ensino médio é pré-universitário

A equivocada tradição brasileira de vincular educação plena à formação universitária fez com que o Brasil chame a segunda fase da educação de base de ensino médio, etapa imprensada entre o ensino fundamental e o ensino superior. O chamado ensino médio deve ser a parte conclusiva da educação de base, sem necessidade de ser pré-universitário. O próprio nome deve ser modificado para ensino conclusivo na formação do jovem. (Figura 1)


Figura 1. O chamado ensino médio deve ser a parte conclusiva da educação de base, sem necessidade de ser pré-universitário.
(Foto: MEC. Reprodução)

 

20. Sindicato de professores defende a educação

Sindicato de Professores defende os interesses dos professores, e como tal é fundamental para a defesa da educação, mas não é suficiente e muitas vezes age contra os interesses da educação e dos alunos, ao proteger professores despreparados ou desmotivados, provocar paralisações e suspensões de aulas. O sindicato defende a fundamental corporação dos professores, não as crianças, aos pais, o país, nem a educação.

 

21. Ensino superior e educação de base precisam estar integrados sob um mesmo Ministério

Enquanto o MEC for responsável ao mesmo tempo pela educação de base e pelo ensino superior, as universidades dominarão a agenda de preocupações do ministro e o destino dos recursos do orçamento nacional, deixando a educação de base das crianças para os municípios, pobres e desiguais, sem a mesma motivação educacional. Nestas condições, a educação e o futuro de cada criança dependem da sorte de seu nascimento e residência, família ou município. Esta visão municipalista sacrifica a criança cuja renda ou endereço impede boa educação, e em consequência sacrifica todo o país. A educação de base com qualidade, especialmente com equidade, exige a nacionalização das crianças e, portanto, a instituição de um ministério federal responsável por esta etapa. A formação de seus professores deve estar subordinada a este ministério próprio, que usará as universidades em regime de cooperação conforme os interesses da educação de base.

 

22. Democracia e eficiência exigem descentralização e municipalização

Não há democracia plena em um país que diferencia a qualidade da educação de base conforme a renda e a prioridade das famílias ou das prefeituras. A democracia como direito igual à educação não é compatível com a descentralização do sistema educacional partido em municípios. A democracia requer assegurar a mesma qualidade na educação de base a cada criança, sem distinção de renda ou endereço. Para tanto, é necessária a adoção federal das escolas nos municípios que não têm condições ou não desejam oferecer educação com máxima qualidade para suas crianças. Cada criança deve receber o mesmo direito à educação, independente da família em que nasce e da cidade onde mora. Qualidade e equidade exigem a implantação de Sistema Único Nacional Público de Educação de Base, usando a eficiência gerencial da descentralização por escola, mas com carreira nacional do professor, padrões de construção e equipamentos nacionais, além de horário integral, independente da cidade.

 

“Ninguém deve ser impedido de ter uma escola de qualidade por não ter dinheiro suficiente para financiar o custo da escola de seu filho, e ninguém deve ter uma escola com mais qualidade por ter mais dinheiro e poder pagar uma escola melhor para seu filho.”

 

23. A universidade deve ser gratuita para todos

Toda atividade é paga. O que é considerado gratuito por não ser pago diretamente pelo usuário, é pago indiretamente pelos demais indivíduos da sociedade. Alguns pagando impostos, outros deixando de receber benefícios que viriam destes gastos, caso houvesse prioridade diferente. Os serviços gratuitos são financiados por alguém e, em geral, pelos mais pobres, excluídos do orçamento público. A universidade gratuita é paga por muitos que não recebem escola de base com qualidade para seus filhos.

 

24. Filhos de famílias ricas devem pagar pelo estudo de seus filhos na universidade

Na verdade, os ricos não deveriam pagar nem pela educação de base de seus filhos, porque o caminho para a equidade da educação de base é ela ser pública e igual para todos. Se os ricos pagarem, seus filhos não estudarão nas mesmas escolas dos filhos dos pobres. Se não pagarem, seus filhos estudarão nas mesmas escolas dos filhos dos pobres, como em quase todos outros países, criando-se a condição básica para a aglutinação social. A universidade deve ser escada social para os indivíduos que nela estudam, também alavanca para o progresso do país e da humanidade. Os cursos escada devem ser cobrados dos alunos, ou nem serem oferecidos por universidades estatais; mas os cursos alavanca social devem ser gratuitos, mesmo para os ricos. Se o filho de família rica quer se formar nas áreas de interesse público, não há razão para exigir que paguem. Da mesma forma que os ricos não pagam os gastos de seus filhos no serviço militar, não há por que cobrar deles o curso universitário para que seus filhos sirvam ao país e à humanidade. As famílias ricas, mesmo sem filhos, devem pagar impostos para financiar todos os níveis de educação de todos os brasileiros, não só de seus filhos, na formação que interessa às necessidades públicas e à construção do Brasil. Não há por que deslocar recursos públicos, especialmente da educação de base, para financiar cursos universitários comprometidos apenas com a promoção individual do aluno. Mas, mesmo filho de ricos, não devem pagar para se preparar à carreira profissional que serve à sociedade e ao país: professores, cientistas, filósofos, médicos da saúde pública.

 

25. A escola de base deve ser gratuita para todos

Ninguém deve ser impedido de ter uma escola de qualidade por não ter dinheiro suficiente para financiar o custo da escola de seu filho, e ninguém deve ter uma escola com mais qualidade, por ter mais dinheiro e poder pagar uma escola melhor para seu filho. A desigualdade na formação deve decorrer do talento, da persistência, da vocação, talvez até da sorte de amigos, e orientadores, mas não do poder de comprar escola com mais qualidade. Um país não é democrático enquanto a família precisar pagar pela escola de seus filhos por falta de um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base, tampouco é plenamente democrático uma família poder pagar para a educação de seu filho ser melhor do que a escola dos que não podem pagar. Tanto quanto não é plenamente democrático que alguns possam pagar oxigênio de qualidade enquanto os pobres podem morrer asfixiados. Afinal, a escola é o balão de oxigênio da mente. Mas, uma escola é ainda mais pública se os pais se sentem empoderados para participar da gestão, exigindo dedicação e qualidade dos professores, demais servidores e da infraestrutura escolar. Mesmo que este empoderamento decorra do pagamento de um valor simbólico, do ponto de vista do custo da escola, mas que seja efetivo do ponto de vista de fazer a família se sentir patrocinadora da escola.

 

26. Escola pública é sinônimo de escola estatal

Uma escola de qualidade que escolhe seus alunos pelo poder de pagar mensalidade não é pública, uma escola estatal que não oferece ensino de qualidade também não é pública. É possível definir como pública uma escola de qualidade onde os alunos estudam independentemente da renda de sua família e aprendem a servir ao público, ainda que a propriedade de suas instalações sejam privadas. O Brasil tem escolas mantidas pelo setor privado, por fundações e filantropos, com esta característica pública, atendendo com qualidade aos alunos, independentemente da renda e do endereço deles. São as escolas públicas não estatais.

 

27. Faltam educadores

O Brasil tem alguns dos mais reconhecidos educadores do mundo — Anísio Teixeira, Paulo Freire, Darcy Ribeiro —, suas propostas não são adotadas porque até hoje não tivemos estadistas educacionistas no poder. Já tivemos estadistas da Independência, da Abolição, da Indústria, do Desenvolvimento, da Infraestrutura, do Agronegócio, da Redemocratização, mas nenhum estadista da educação na Presidência da República, ainda menos um Congresso com maioria de parlamentares educacionistas comprometidos com o Brasil ter educação com a máxima qualidade e os filhos dos mais pobres estudando nas mesmas escolas dos mais ricos, todos em um mesmo Sistema Único Nacional Público de Educação de Base com qualidade. Joaquim Nabuco disse que a Abolição só foi possível quando surgiu um “instinto nacional” pela Abolição, que não tivemos e ainda não temos, pela educação de base para todos. Não nos faltam educadores, faltam educacionistas.

 

28. A avaliação da educação deve levar em conta as especificidades nacionais e sociais

Esta é uma postura para aceitar que a educação do Brasil não pode ser avaliada em comparação com a de outros países, e que a avaliação dos brasileiros pobres deve considerar a sua baixa renda, e por isto aceitar educação com menor qualidade. Forma disfarçada para dizer que o Brasil não tem condições de ser um país avançado em educação; e que os filhos dos pobres não devem almejar escola com a qualidade dos ricos. Desculpando a desigualdade educacional a que nossos dirigentes nos condenaram no mundo, e dentro do país entre quem pode e quem não pode comprar educação. Condenando o Brasil a ser um país dos pés no futebol, não dos cérebros na educação. Um país cuja população olha todos os anos para Zurique para esperar qual compatriota receberá a Bola de Ouro, mas nem sonha olhar para Estocolmo para saber quem receberá o Prêmio Nobel de Física.

 

29. Se a educação deve ser igual, devemos impedir o uso de cotas raciais

As cotas raciais visam superar a indecência de um povo multirracial com elite de cara branca. A riqueza sendo branca e a educação de base com qualidade reservada aos que podem pagar, a elite intelectual que sai das universidades tem pele branca. As cotas não visam beneficiar ao jovem negro, visam dar decência étnica ao Brasil, oferecendo chance aos raros jovens negros que conseguiram chegar ao final do ensino médio, para que eles auxiliem o país a ter elite multicultural. O uso de cotas é uma necessidade de decência nacional em um país que por séculos negou educação aos brasileiros negros, milhões dos quais nasceram escravos ao longo de três séculos, e há cem anos a maior parte deles vive como pobres, em um país onde a pobreza tem cor. (Figura 2)


Figura 2. As cotas visam oferecer chance aos jovens negros que conseguiram chegar ao final do ensino médio, para que eles auxiliem o país a ter elite multicultural.
(Foto: Beto Monteiro/Secom UnB. Reprodução)

 

30. As costas raciais devem permanecer para sempre

Quando o Brasil tiver um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base, independente da renda e do endereço, todos os jovens terão condições iguais para disputar vaga na universidade, independentemente da cor da pele e da conta bancária, não sendo, portanto, necessário o uso de cotas para ingresso no ensino superior. Até lá, as cotas são uma necessidade para beneficiar o Brasil, que precisa quebrar o racismo implícito de uma elite branca em um país multirracial.

 

Capa. É preciso desmistificar ideias prejudiciais que impactam o ambiente escolar e prejudicam o desenvolvimento dos alunos
(Foto: Marcos Santos/USP imagens. Reprodução)
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque é professor e pesquisador no Centro de Desenvolvimento Sustentável e no Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, da Universidade de Brasília (UnB). Foi reitor da UnB (1985-1989), governador do Distrito Federal (1995-1998) e Ministro da Educação (2003-2004).

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