Crises de energia no Brasil
A produção e distribuição de energia elétrica e de combustíveis são essenciais para as atividades humanas no século 21.[1] A disponibilidade, custo e impacto ambiental da energia determinam a produção agrícola e industrial, o comércio, serviços e lazer. Por outro lado, dependem de recursos naturais, tecnologia e de estratégias de desenvolvimento a médio e longo prazos.
No século 20 a produção global de energia dependeu de combustíveis fósseis, não renováveis. Viabilizou um grande aumento na população humana e provocou mudanças econômicas e sociais. Mas contribuiu para as mudanças climáticas, obrigando à adoção de outras fontes de energia. Hoje, a importância dos combustíveis fósseis tende a diminuir devido à eletrificação dos transportes, e o aumento de participação das fontes renováveis é um grande objetivo global.
No Brasil, a participação de renováveis na produção de eletricidade é elevada. Cresceu pouco entre 1985 (93,7%) e 1994 (95,4%), passando a cair nos anos seguintes: 85,7% em 2002, 84,8% em 2010, 73,3% em 2014. Seguiram-se uma tímida recuperação (84,2% em 2020), e uma nova queda: 77,5% em 2021.[2] O aumento de consumo de fósseis foi impulsionado em alguns períodos pelo câmbio favorável, o baixo preço e a falta de infraestrutura no Brasil, seja de produção de eletricidade, seja de transportes. As emissões de gases do efeito estufa (GEE) pelo setor de energia cresceram 33,4 Mt CO2 entre 2012 e 2013,[3] e as emissões do setor de energia passaram de 11% em 2003 para 29% em 2013. Enquanto as taxas de desmatamento caíram, o setor de energia aumentou as emissões de GEE, com uma importante contribuição das termoelétricas.
Esses fatores foram agravados por decisões políticas: na crise financeira de 2008 a China aumentou o investimento em infraestrutura, mas a principal resposta brasileira foi a sustentação da produção automobilística, demandando mais gasolina e Diesel.
Hoje, temos de substituir os combustíveis fósseis, enquanto a população aumenta, crescem as aspirações de melhores condições de vida, e todos querem eliminar a miséria. As respostas das nações ao desafio da substituição variam muito, conforme o seu tamanho, população e recursos.
O futuro chegou: as novas energias de fonte renovável
Em 2022, as energias eólica, solar e a da biomassa respondem por parcelas significativas da produção global de eletricidade. É instrutivo observar sua distribuição em diferentes países (Tabela 1). Alemanha, Brasil, Chile, Espanha e Itália utilizam diferentes modalidades, mas razões geográficas levam o Reino Unido e a Irlanda a contar com uma participação maior da energia eólica, enquanto o Iêmen usa mais energia solar.
Tabela 1. Participação das energias renováveis na produção de eletricidade nos países que se destacam em alguma modalidade, ou pelo PIB.
O crescimento das novas fontes é rápido. A energia solar cresceu em 2021mais de 25 TWh nos Estados Unidos, China, Japão e Vietnã, seguidos de Austrália, Brasil e Índia, com mais de 10 TWh cada um.[4] A energia eólica cresceu na Austrália, Brasil (39 TWh), Chile, China (490 TWh), Estados Unidos (107 TWh), Espanha, Índia e Turquia e agora também na Rússia, Vietnã e Paquistão e tornou Portugal um país exportador de energia.
O primeiro aerogerador do Brasil foi instalado em 1992, em Fernando de Noronha. Em 2021, mais de 8.300 aerogeradores em 695 parques eólicos podiam gerar 18 GW, mais que Itaipu. O potencial eólico[5] é de 143,4 GW e 272 TWh por ano, distribuídos por 0,8% do território nacional, principalmente no Nordeste, Sudeste e Sul, mas seu impacto vai depender de atenção aos fatores ambientais e sociais.[6]
“Em 2022, as energias eólica, solar e a da biomassa respondem por parcelas significativas da produção global de eletricidade.”
A energia solar tem uma participação menor que a eólica, mas também importante, de 3,6% no mundo todo e de 2,6% no Brasil. Contribui com mais de 4% para a produção de eletricidade no Afeganistão, Austrália, Alemanha, Bélgica, Chile, Espanha, Grécia, Holanda, Hungria, Iêmen, Israel, Itália, Japão, Jordânia, Portugal, Reino Unido, Sri Lanka, Suíça, Ucrânia e Vietnã, e em vários países africanos: Eritreia, Mauritânia, Marrocos, Namíbia, Níger Senegal e Serra Leoa. No Brasil, Minas Gerais, Ceará, Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro têm mais de 10 MW instalados.
Entre 2004 e 2009 os investimentos globais foram maiores na energia eólica que na solar, mas esta predominou entre 2010 e 2015, prevalecendo em 2016 – solar (47%), eólica (46,6%) – seguidos de longe pelo aproveitamento de biomassa e resíduos, inclusive o lixo (2,8%).
No Brasil, entre 2019 e 2029 a participação da hidroeletricidade deverá diminuir de 56% para 42%, a de biomassa de 11% para 10%, enquanto a de gás natural deverá aumentar de 9% para 16%, a eólica de 9% para 16% e a solar de 2% para 8%.[7] Atualmente, a geração a gás encarece o preço da eletricidade para o consumidor e os custos de produção da eólica e solar são mais baixos.
A História não se repete, mas ensina
O Brasil viveu numerosas crises de energia, cada uma delas criou problemas sociais e econômicos, mas também provocou avanços. Temos um rico acervo de lições do passado mostrando ações geradoras de bons ou de maus resultados.
Um século de combustíveis derivados da biomassa
Na década de 1920, a gasolina era o combustível usado em automóveis, caminhões e aviões, enquanto os trens e as usinas térmicas dependiam da lenha e do carvão, vegetal ou mineral. Em 1928, a Usina Serra Grande (AL) [8] lançou uma alternativa à gasolina, produzida com duas matérias-primas: a cana de açúcar e a mamona. Sua produção prosseguiu até meados dos anos 40, quando começou uma era de petróleo barato. Essa experiência pioneira não se espalhou, e durante a segunda grande guerra, o gasogênio – caro, sujo e ineficaz – foi a alternativa à gasolina, em São Paulo.
“O Brasil viveu numerosas crises de energia, cada uma delas criou problemas sociais e econômicos, mas também provocou avanços.”
O álcool combustível voltou ao cenário da energia no Brasil em meados dos anos 1970, quando países exportadores de petróleo provocaram dois “choques do petróleo”, drenando riqueza dos consumidores e valorizando suas alternativas. Nessa época, a produção brasileira de açúcar e do álcool, seu subproduto, cresciam. Foi então criado o Proálcool,[9] um programa federal de fomento ao desenvolvimento de tecnologias de produção de álcool, de motores, sistemas veiculares e logísticos, que subsidiou toda essa cadeia, produziu uma grande economia de divisas e um milhão de empregos. O Proálcool teve apoiadores e opositores, foi prejudicado por erros e pelas flutuações de preços do petróleo. Sobreviveu graças aos ganhos de produtividade e contínuo aporte de tecnologias desenvolvidas principalmente pelo Planalsucar e o CTC da Copersucar.[10] Em 2002 a produção do álcool em São Paulo e vizinhos passou a dispensar os subsídios, e o Brasil liderou a produção de combustíveis de fontes renováveis, por um curto período. A produção de cana ocupa hoje 8,84 milhões de hectares, reduz emissões de GEE,[11] aumenta sem desmatar, recupera pastos degradados, amplia as matas ciliares. A cana alimenta uma grande cadeia produtiva de alimentos, combustíveis, insumos industriais e de energia elétrica, criando progresso social, econômico e ambiental.[12,13] (Figura 1)
Figura 1. Propaganda do álcool combustível USGA
(Fonte: Macedo, I. C. Situação atual e perspectivas do etanol, Estudos Avançados v. 21, p.157-167, 2007. Reprodução)
A cogeração de eletricidade nas usinas de açúcar e álcool,[14] o uso de etanol em veículos híbridos, e a criação de novos combustíveis valorizam os derivados da cana. A produção de álcool de segunda geração (também conhecido como bioetanol, obtido a partir de açúcares extraídos da celulose da planta, presentes na palha e no bagaço de cana-de-açúcar, palha de milho, madeira, sorgo, entre outros) atraiu muita atenção, mas os resultados ainda são modestos.
Uma história diferente é a produção de biodiesel a partir de óleos vegetais, objeto de outro programa federal. Inicialmente baseado no óleo de mamona,[15] esse programa foi prejudicado pela desatenção aos fatos e por voluntarismos. O óleo de mamona é caro demais para queimar. Seu cultivo não recebeu aportes tecnológicos comparáveis aos da cana e o Brasil perdeu para a Índia a posição de maior produtor mundial. Os resultados são modestos: em 2020-21, a área plantada com mamona foi de 53 mil hectares e as principais matérias-primas do biodiesel são a soja e o sebo bovino.[16] A viabilidade do biodiesel depende da obrigatoriedade de sua mistura ao óleo diesel, encarecendo-o. (Figura 2)
Figura 2. Foto de canavial e matas em Piracicaba.
(Fonte: USP. Reprodução)
Produção de eletricidade: pioneirismos, sucessos, apagões e energia cara
A energia elétrica chegou ao Brasil em 1879, iluminando a Estação Central, no Rio de Janeiro (RJ),[17] seguida da cidade de Campos (RJ). As primeiras hidrelétricas operaram em Diamantina (MG – 1883) e em Juiz de Fora (MG – 1889). Hoje, o Brasil se destaca pela elevada participação da hidroeletricidade (Tabela 1).
Na primeira metade do século 20 cresceu a produção de eletricidade por empresas privadas, destacando-se a construção do sistema Billings – Guarapiranga, um aproveitamento inteligente das vantagens criadas pela Serra do Mar e a Mata Atlântica. Mas a industrialização e o crescimento de São Paulo esgotaram a capacidade de geração de energia e de investimento das empresas privadas.
Ocorreu então um caso notável de planejamento público, o Plano de Eletrificação do Estado de São Paulo, conduzido pelo governador Lucas Garcez, professor de hidráulica na USP.[18] Os rios Tietê, Paranapanema e Pardo foram represados em vários pontos, aumentando a produção de eletricidade no estado e atraindo uma parte importante dos investimentos de empresas do setor automobilístico feitos na era Kubitschek.
O plano paulista foi um movimento regional, libertando-se da inação causada pelas discussões ideológicas e as disputas por poder, na área federal. Por exemplo, a aprovação do Código de Águas (1956) levou 23 anos. A paralisia federal afastou as empresas estrangeiras e na falta de uma ação estatal vigorosa, o País sofreu com a escassez. O Plano de Metas de Kubitschek rompeu essa situação, construindo Paulo Afonso e Furnas (1963), enquanto a Companhia Energética de São Paulo (CESP) cresceu com Jupiá e Ilha Solteira, alcançando em 1978 os 34% da capacidade instalada no País. Foi realizada a interligação das redes de distribuição, aumentando a oferta de energia em todo o país.
“A produção de cana ocupa hoje 8,84 milhões de hectares, reduz emissões de GEE, aumenta sem desmatar, recupera pastos degradados, amplia as matas ciliares.”
Em meados dos anos 70 o sistema estatal conseguia abastecer o País e prosseguiu construindo as usinas de Itaipu (16 GW, 1984, no Rio Paraná), Tucuruí (1984, no Tocantins), Xingó (1994, no São Francisco), Jirau e Santo Antonio (2012-3, Rio Madeira), Belo Monte (11,2 GW, no Rio Xingó), e mais 22 usinas com capacidades entre 1 e 2 GW na Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Tocantins.[19]
As usinas estatais produziram uma intensa eletrificação do País, em uma base sustentável e pouco dependente de importações. Sua construção e operação estimulou as empresas de engenharia, as indústrias fornecedoras e a P&D na área, interiorizando o desenvolvimento econômico e social. Infelizmente, as estatais foram prejudicadas por ataques internos e externos, documentados no depoimento anônimo anexo à referência 20, uma aula sobre a destruição de políticas inteligentes. Somados à incapacidade de investimentos do setor público, esses ataques levaram à atual fase de privatização.
Hoje há disponibilidade de energia no Brasil, mas os preços são elevados e ainda aumentam quando são acionadas as usinas térmicas a gás.
A economia do hidrogênio
O hidrogênio está se tornando um importante vetor de energia. Queima produzindo muito calor e água, sem emitir GEEs. Por isso, está assumindo um papel central na economia.
Algumas pessoas ainda temem os riscos do uso do hidrogênio, devido ao desastre do Hindenburg nos Estados Unidos (dirigível construído pela empresa Luftschiffbau-Zeppelin GmbH, na Alemanha, que sofreu um incêndio em 1937 causado pelo gás de hidrogênio usado para mantê-lo no ar, altamente inflamável, matando 36 pessoas).[20] Mas Londres tem ônibus movidos a hidrogênio, a Alstom utiliza hidrogênio no trem Cordai iLint e a Airbus planeja realizar voos regulares em aviões a hidrogênio, em 2035.[21] No Brasil, a Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU) de São Paulo e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) operam ônibus elétricos desde 2015,[22] e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 2020.
O hidrogênio também é importante como forma de armazenar energia, amortecendo o impacto da intermitência das energias solar, eólica e de biomassa.
Outras tecnologias
A diversidade de condições locais estimula a pesquisa e o desenvolvimento de novas tecnologias:
- Na Islândia, cinco usinas geotérmicas produzem 23% da energia elétrica; na Califórnia (EUA), são 22 usinas.
- Na Holanda, uma unidade de 50 kW demonstra a utilização de energia osmótica, cujo potencial global é 2,6 TW.
- Na Escócia, uma usina extrai 3 MW dos movimentos do mar, desde 2013. É a “Energia Azul” explorada em 13 países.
- O aproveitamento do lixo e do esgoto conta com 14 mil usinas na Europa. No Brasil, essa técnica é inibida pela regulação e pela desinformação.[23]
- Consumidores de eletricidade são hoje também produtores fotovoltaicos, descentralizando investimentos e benefícios da geração de eletricidade.
- Há uma ativa P&D de novas formas de produção de energia. Novas modalidades (tribo-, elasto- e higroeletricidade)[24] também poderão tornar-se relevantes.
Conclusão
Demandas atuais de aumento na produção de energia de fontes renováveis criam grandes oportunidades para o Brasil, que já tem destaque global na produção de energia de fontes renováveis. Essa situação pode trazer desenvolvimento social e econômico, se existir um planejamento cuidadoso, atento ao meio ambiente, isento de interesses menores ou improvisações. No passado, casos de sucesso foram guiados por políticas voltadas para o bem comum. Não podemos repetir o passado, mas podemos cultivar as mesmas atitudes que produziram sucessos.