Minas Gerais, modernidade e cosmopolitismo

Nas comemorações do centenário do modernismo brasileiro, é imprescindível pensar nas manifestações artísticas para além do circuito São Paulo — Rio de Janeiro. Nesse contexto, Minas Gerais marcou importante lugar no projeto de modernidade brasileira

Resumo

Minas Gerais marcou importante lugar no projeto de modernidade brasileira. Rapazes pertencentes ao grupo Estrela, de Belo Horizonte, almejavam a reformulação do quadro literário do país, antes mesmo da Semana de 1922. A viagem da caravana paulista a Minas, em 1924, e seu contato com o barroco e com jovens escritores abre rica etapa na produção artístico-literária nacional. Nos anos 1920, revistas literárias mineiras contribuem para a ampliação do movimento modernista. Correspondências trocadas entre Mário de Andrade e autores das Gerais favorecem o apuro do pensamento crítico e da invenção literária dos missivistas, inclusive do paulista. Seguindo seu compasso, Minas oferece relevante contribuição na construção de uma nova linguagem artística entre nós, apresentando dicção ao mesmo tempo local e cosmopolita.

O turista iniciante e o mestre Alphonsus

Nas comemorações do centenário modernismo brasileiro, torna-se imprescindível pensarmos sobre manifestações artísticas para além do circuito São Paulo – Rio de Janeiro. Criações relacionadas ao questionamento de padrões estéticos do romantismo, simbolismo, parnasianismo, críticas ao academicismo e o desejo de inovação do espaço literário nacional aconteciam, nos anos 1920, ainda que de modo incipiente, em cidades de diversas regiões brasileiras. Neste ensaio, almejamos refletir um pouco sobre a importância de Minas Gerais para o desenvolvimento da arte moderna no país.

Mário de Andrade imprime seu lugar nos diálogos entre a cultura mineira, a nacional e a cosmopolita. Em junho de 1919, o autor de “Há uma gota de sangue em cada poema” realiza sua primeira viagem a Minas Gerais com o intuito de conhecer cidades históricas – para realizar conferências sobre o tema – e, ter contato com o ícone da poesia simbolista brasileira, Alphonsus de Guimaraens. Em Mariana, visita o poeta, juiz municipal na cidade. Ao tratar do encontro com o poeta de alma mística que de certo modo abria caminhos para se pensar na poesia moderna, Mário assinala: “Em Mariana, a Católica, fui encontrá-lo na escuridade da sua casa de trabalho, sozinho e grande. (…) Refugiou lá do “estéril turbilhão da rua” para milhor abrir a flor de sua inspiração no jardim fantástico dos sonhos e dos ideais impossíveis.” [5].

Carlos Drummond, no poema “A visita”, descreve – em clima teatral – passagens do rápido e marcante contato entre os poetas, desde o instante de chegada do jovem viajante à residência acolhedora do mineiro – quando Mário assinala ter vindo conhecer e saudar “o Príncipe dos poetas das Alterosas Montanhas!” [9] – até o momento da despedida, quando a recente amizade ecoa em notas de alegria e antecipada saudade.

A primeira viagem a Minas favorece, além da experiência com a poesia simbolista, o contato de Mário com o barroco colonial. A viagem propicia a escrita de crônica sobre Alphonsus e artigos sobre cidades históricas e Aleijadinho. Eneida de Souza assinala sobre o paulista:

 

Na bagagem traz dois poemas autografados do poeta, relíquia que guarda em seu arquivo, comprovando um dos vínculos que o escritor iria manter com estética simbolista, principalmente no que se refere à religiosidade.[21]

 

Essa viagem inaugural revela o diálogo entre o velho e o novo como importante face do processo criativo que iluminará os caminhos do projeto modernista.

Realizando um giro no tempo, lembramo-nos de que no espetáculo AmarElo, de Emicida — no qual o rapper assinala: “Mário é o nosso modernista preferido” — Fernanda Montenegro lê o poema “Ismália”, de Alphonsus de Guimaraens. Dentro do contexto de AmarElo, a morte da personagem feminina do poema, mulher que, enlouquecida, queria subir ao céu e acabou caindo ao mar, reflete-se na difícil luta de homens negros e mulheres negras. Esses sonham alçar longos voos, mas o racismo estrutural do país termina por dificultar ou impedir a realização de seus projetos.[16]

A releitura de “Ismália” feita por Emicida termina por demonstrar a força de sobrevivência presente no antigo poema e, por ricochete, pode sugerir possíveis sinais de modernidade que Mário percebia em Alphonsus: “Sinto que meu o meu copo é grande demais para mim, e inda bebo no copo dos outros”,[8] assinala o paulista, no “Prefácio interessantíssimo” de “Pauliceia desvairada”, livro de 1922.

Figura 1. Zina Aita expôs oito quatros na Semana de Arte Moderna, e é uma das precursoras do modernismo mineiro
(“Sem título”, de Zina Aita. 1923. Reprodução)

 

Ao retornar a São Paulo, em julho de 1919, Mário realiza a conferência intitulada “A arte religiosa no Brasil, Minas Gerais”, na Congregação Mariana de Santa Ifigênia. A ideia de preservação do passado colonial surgia no texto ao lado do elogio à deformação plástica do barroco mineiro. Nota-se no texto a ideia de que a modernidade deveria dar as mãos à preservação do patrimônio histórico. Indagações sobre o presente da arte nacional recebiam respostas em obras como as de Aleijadinho: “Antônio Francisco Lisboa é o único artista brasileiro que eu considero genial, em toda a eficácia do termo”.[4]

A semana de 22 e a viagem de 1924

Menos de três anos após a viagem a Minas, Mário estava no núcleo organizador da Semana de Arte Moderna, ocorrida nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 no Theatro Municipal de São Paulo. Poucos sabem que participaram da Semana o poeta de Montes Claros, Agenor Barbosa — que declama poema “Os pássaros de aço” no evento — e a pintora belo-horizontina Zina Aita. A artista havia realizado mostras em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, em 1920, estabelecendo, a partir daí, diálogos com os modernistas. Na Semana, expõe oito quadros, como “A sombra”, ao lado de trabalhos de Anita Malfatti e outros artistas.

Tarsila do Amaral não participou da Semana de Arte Moderna pois estava na França. Em 1923, Tarsila e Oswald vivem em Paris, mantendo contato com importantes nomes das vanguardas europeias e tendo como mediador o reconhecido poeta e prosador franco-suíço Blaise Cendrars. Oswald devagar vai se inteirando de novas formas da modernidade na capital francesa, tomando maior consciência, inclusive, do projeto lançado, junto com amigos brasileiros, no Theatro Municipal de São Paulo, no ano anterior. A experiência com o clima europeu — além do contato com ideias vanguardistas por meio de livros — renova a percepção de Oswald e Tarsila sobre a produção do próprio país. Os artistas brasileiros, incluindo Villa-Lobos, frequentador do ateliê parisiense de Tarsila, começam a interessar aos franceses.

Havia, na época, uma ebulição quanto a certo “exotismo” brasileiro. Por sugestão de Oswald de Andrade, Paulo Prado convida, ao final de 1923, Blaise Cendrars para visitar o Brasil. A ideia do “primitivismo” modernista que desembocaria na produção do livro “Pau-Brasil”, de Oswald, de 1925, e em pinturas de Tarsila estava sendo gestada na mescla entre a perspectiva brasileira e a estrangeira. Em 15 de novembro de 1923, Mário de Andrade, de São Paulo, escreve a Tarsila, contribuindo para o desrecalque que será empreendido em relação à visão do país. O autor de “Remate dos Males” dizia a Tarsila que ela e Osvaldo — como Mário se referia ao seu amigo — deveriam trazer as vivências de “caipiras em Paris” para nova guerra que estava sendo proposta. Para Mário, os dois “se parisiaram na epiderme” e isso era horrível. O fundamental seria o mergulho no solo pátrio: “Abandona Paris! Tarsila! Vem para a mata-virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o mata-virgismo. Sou matavirgista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam.” E conclui a passagem: “Se vocês tiverem coragem venham para cá, aceitem meu desafio”.[6]

Contra o cosmopolitismo despersonalizado que imaginava estar presente na viagem dos parceiros,[1] Mário propunha um mergulho, sem preconceito, no solo local. A proposta, de certo modo se efetivaria a partir da chegada de Cendrars ao Brasil. Inicialmente, o grupo composto por Mário, Oswald, Tarsila, Cendrars, D. Olívia Guedes Penteado, entre outros, passam o carnaval de 1924 no Rio de Janeiro. A partir de passeios cariocas, surgem alguns desenhos de Tarsila, desenvolvidos posteriormente em telas, como “Morro da favela” e “Carnaval em Madureira” e Oswald escreve, a partir das impressões da viagem, o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”.

De volta a São Paulo, o grupo organiza e empreende a conhecida “viagem de descoberta do Brasil” a Minas Gerais. Da caravana, participam Mário de Andrade, Oswald de Andrade e seu filho Nonê, Tarsila do Amaral, D. Olívia Guedes Penteado, René Thiollier e Godofredo da Silva Telles. O matavirgismo de Mário e o primitivismo de Oswald e Tarsila iam florescendo, ganhando novas cores e sentidos. Mário realiza bonitos desenhos de cidades por onde passavam. A pintura posterior de Tarsila ganha singulares modulações, a partir de esboços registrados durante a viagem. Oswald de Andrade, reunindo, entre outros trabalhos, poemas escritos durante o carnaval carioca e a Semana Santa mineira, publica o livro “Pau-Brasil”, em 1925.[2]

No ensaio intitulado “A permanência do discurso da tradição no modernismo”, de 1985, presente no livro “Nas Malhas da Letra”, Silviano Santiago assinala ser um caso exemplar da sobrevivência de signos da tradição no corpo da linguagem moderna — desvinculando-se da noção de “neoconservadorismo” — a viagem de 1924 dos modernistas a Minas Gerais. Como sabemos, todos estavam imbuídos por ideais futuristas, ligados à tecnologia, à noção de progresso ao rompimento com expressões artísticas ligadas ao passado. Mas foram ao encontro do passado histórico, do Brasil colonial, e descobriram o traço primitivo — portador de características novas e originais — como rica expressão do barroco mineiro.[18]

A caravana paulista aguça o espírito sedento de novidades e conhecimentos ao abrir os olhos para as antigas cidades mineiras, para o barroco. A partir desse momento, os diálogos com as vanguardas estrangeiras passaria necessariamente pelas criações encontradas em Minas. A novidade seria lida a contrapelo, através de uma perspectiva brasileira, nativa, primitiva. Desse modo, são justapostos a novidade e a tradição, o cubismo e o barroco. Tarsila deslumbra-se com as cores, com os detalhes, com as decorações simples, ingênuas e populares das casas e igrejas de São João del Rey, Tiradentes, Ouro Preto, Mariana, Congonhas do Campo, Sabará e outros pequenos lugares. Após a viagem, Tarsila declara que gostaria de voltar a Paris não para conhecer as últimas inovações artísticas, mas para aprender a restaurar quadros. Assim, contribuiria para a preservação da arte colonial do país que se deteriorava a passos largos. Silviano Santiago [18] assinala que esse gesto da pintora, em 1924, estaria adiantando o timbre “conservacionista” dos modernistas que estarão à frente da criação e desenvolvimento do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), criado em 1937, durante o governo Vargas, a partir de anteprojeto de Mário de Andrade e realização de Rodrigo Mello Franco de Andrade. Devemos lembrar de que Carlos Drummond trabalha no SPHAN de 1945 a 1962. A arte simples mineira irá reavivar memórias infantis de Tarsila na fazenda do interior paulista e contribuir para produção naïve, “ingênua”, “primitiva” da artista.

 

“A novidade seria lida a contrapelo, através de uma perspectiva brasileira, nativa, primitiva. Desse modo, são justapostos a novidade e a tradição, o cubismo e o barroco.”

 

A partir da viagem a Minas amplia-se a noção de moderno que deixa de ser ligado apenas a ruptura. A modernidade passaria a ser pensada também a partir do movimento que retorna ao antigo. As ideias futuristas, as imagens do progresso, da máquina são deixadas um pouco de lado. Segundo Eneida de Souza: “A poética de Mário de Andrade consegue, nos anos 1920, associar o barroco mineiro com o expressionismo alemão, na tentativa de afirmação do nacional pelo universal, através da condensação e deslocamento dos valores estéticos europeus e brasileiros”.[19] A deformação presente no Expressionismo será articulada à desconstrução operada por Aleijadinho em suas peças em pedra sabão. Por trás da operação mariodeandradeana estaria a concepção da “traição da memória”, procedimento de esquecimento do peso das fontes importadas para o surgimento da novidade nacional que nasceria imbricada a diversas heranças, mas com uma marca singular.

Em 1928, Mário de Andrade, além de realizar viagem ao Nordeste e produzir crônicas jornalísticas que apareceriam — ao lado de textos sobre viagem ao Norte do país, realizada um ano antes — no livro “O Turista Aprendiz”, publica “Macunaíma”, “Ensaio sobre a Música Brasileira” e o ensaio “O Aleijadinho”, produção que enceta novo olhar para a obra do artista mineiro. No texto, podemos ler: “O Brasil deu nele o seu maior engenho artístico, eu creio. Uma grande manifestação humana”.[7]

Mário de Andrade relê o barroco não apenas como expressão da tradição artística nacional – inclusive porque o estilo nasceu na Europa. Associava a arte mineira, como vimos, ao caráter transgressor e atual do Expressionismo. Devemos nos lembrar de que o autor sempre se posicionou contra as ideias de exotismo e de regionalismo estreito nas artes. O barroco mineiro, ao contrário daquele mais sério, cinzento, pomposo e pedante europeu, seria dotado de traços e cores leves, alegres, configurando-se, ao mesmo tempo, como simples e arrojado. Inclusive detinha marcas da cultura negra e mestiça. O contato com o passado colonial refletia a busca empreendida pelos franceses pela arte negra, primitiva. Se os cubistas visaram encontrar em outro continente elementos singulares, como as máscaras africanas, que pudessem trazer novos ares à sua produção, no caso brasileiro, esses dados originais, pouco conhecidos, encontravam-se no próprio espaço do país. O barroco mineiro, antes de ser visto como algo aprisionado ao passado, abria-se ao presente, possibilitando o embaralhamento de noções artísticas convencionais. Essa produção, vista como detentora de linguagem diferencial, de timbre tropical, poderia contribuir para o desenvolvimento da arte nacional. Havia, no projeto, a intenção de que as criações modernas locais pudessem ser apreciadas no mundo todo como brasileiras e, ao mesmo tempo, como cosmopolitas.

Os rapazes de Belo Horizonte, do interior de Minas e suas revistas

Entre os anos 1920 e 1925, Carlos Drummond, João Alphonsus e Emílio Moura trabalham no jornal Diário de Minas, pertencente ao Partido Republicano Mineiro, periódico conservador, ligado às oligarquias do Estado, mas que possibilitou as publicações dos jovens autores.

Em 1924, quando da passagem da Caravana Paulista por Belo Horizonte, Carlos Drummond, juntamente com os parceiros Pedro Nava, Martins de Almeida e Emílio Moura vão visitar os modernistas. O Grande Hotel, onde o grupo estava hospedado situava-se na Rua da Bahia, corredor etílico-intelectual da cidade. A partir deste momento, inicia-se, formalmente, o modernismo mineiro, pois inovações literárias já eram buscadas pelo chamado grupo Estrela (frequentadores do Café Estrela e do Bar do Ponto, em Belo Horizonte): escritores e jornalistas. Drummond destaca-se, como seria comprovado posteriormente, como líder do grupo, e como dos parceiros mais inquietos e inovadores do projeto modernista.

A ideia da busca da tradição para uma melhor expressão da modernidade artístico-literária brasileira pode ser entrevista na rica correspondência estabelecida entre Mário e Drummond, iniciada ainda em 1924. Visando seduzir Drummond para uma visão mais otimista em relação ao país e mesmo à juventude, Mário convida o novo amigo a olhar para a realidade ao redor, para o cotidiano brasileiro, sem culpa, sem receio. Há, na estratégia, a percepção ao mesmo tempo artístico-cultural e político-cultural, pensando na valorização do homem comum diante de uma sociedade desigual.

Em 1925, Drummond lança, ao lado de Emílio Moura, Francisco Martins de Almeida e Gregoriano Canedo, A Revista, publicação que se integra a outras de propostas modernistas surgidas no Brasil na década de 1920. O periódico teve três números e contou com a colaboração de poetas modernistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Drummond relata, em entrevista, que quando do surgimento de A Revista recebeu importante conselho de Mário de Andrade: “Você deve fazer uma revista compósita, uma revista misturada, em que o novo se misture com o velho”.[3]

Figura 2. Em seu ensaio “O Aleijadinho” (1928), Mário de Andrade lança novo olhar sobre a obra do artista mineiro.
(“Anjo com o cálice da Paixão”, na Via Sacra de Congonhas, de Aleijadinho. Santuário de Matosinhos, Brasil)

 

Mesmo relatando não ter recebido informações sobre a Semana de Arte Moderna ocorrida em São Paulo — quando da efeméride — em 1922 Carlos Drummond escreve, para o Jornal A Noite, do Rio de Janeiro, crítica sobre “Os Condenados”, de Oswald de Andrade. Em 1923 dá notícia, em artigo, sobre “Pauliceia Desvairada” e em 1925 escreve sobre “A Escrava que não é Isaura”, ambos de Mário. Os livros de literatura estrangeira chegavam à capital mineira pela Livraria Francisco Alves — ampliando os curtos limites da província. As leituras de produções modernas, as críticas literárias empreendidas no âmbito do trabalho jornalístico vão armando a letra e o espírito do jovem poeta para sua entrada no campo da modernidade nacional. Segundo Maria Zilda Ferreira Cury,

 

É claro que os modernistas mineiros – apesar de não terem sido meros caudatários – receberam influências de outros grupos literárias, sobretudo o paulista. No entanto essas influências não se revelariam eficazes e criativas se esses jovens intelectuais não tivessem condições próprias para acatar de desenvolver singularmente as ideias de renovação literária e, sobretudo, se o espaço que ocupavam não apresentasse já um tônus moderno.[12]

 

O contato entre os mineiros e os paulistas terminou marcando a produção de Minas Gerais como uma das mais potentes no ideário modernista do país. O modernismo mineiro, estimulado pelas ideias que vinham de São Paulo e mesmo do Rio de Janeiro terminou por realizar um caminho peculiar visando — talvez por meio do espírito conciliador vigente na mitologia de Minas — equilibrar noções de ruptura, de inovação com as formas e temáticas herdadas da tradição literária.[13]

Mário de Andrade publica, em “Clã do Jabuti”, de 1927, “Noturno de Belo Horizonte”, baseado nas impressões colhidas em sua breve estada na capital mineira, no passeio realizado pela cidade em companhia de Drummond e amigos. O bonito poema revela-se paradigmático na criação do poeta e abre perspectiva ímpar no projeto de renovação da linguagem literária do país.

No mesmo ano da publicação de “Clã do Jabuti”, surgia na pequena cidade mineira de Cataguases a revista Verde que contou com seis números — de setembro de 1927 a novembro de 1929. Participaram da Verde nomes como Guilhermino César, Ascânio Lopes, Rosário Fusco, entre outros. Segundo Ivan Marques, a Verde “chegava com alarde, restaurando a ‘alegria criadora’ dos primeiros tempos do modernismo”.[13] Além de cartas e colaborações dos modernistas brasileiros, os moços de Cataguases mantinham contatos com Blaise Cendrars, Max Jacob, Apollinaire, etc. A produção dos jovens pautava-se pela linguagem experimental e pela ideia de “abrasileirar” o país. A temática voltada ao regionalismo termina por adiantar o projeto do romance social brasileiro dos anos 1930. A revista revela a penetração modernista pelo país e marca lugar na divulgação da estética vanguardista no período.[17]

No dia 13 de maio de 1929, em comemoração à abolição da escravatura surge, em Belo Horizonte, o tabloide Leite criolo. A primeira edição foi distribuída gratuitamente pelas ruas da cidade. Posteriormente, a publicação torna-se suplemento do jornal Estado de Minas. Neste formato, saíram, entre 02 de junho e 29 de setembro de 1929, dezoito edições quinzenais do periódico comandado por João Dornas Filho, Achilles Vivacqua e Guilhermino César. A revista, inclusive por meio das relações estabelecidas por Guilhermino César quando de sua atuação na revista Verde, apresenta contribuições de importantes nomes do país. Carlos Drummond publicou, no suplemento, textos com o pseudônimo de Antônio Crispim. Leite Criolo almeja, inicialmente, atuar numa linha primitivista, em diálogo com a proposta antropofágica de Oswald de Andrade. Contudo, ao abordar, em vez do índio, o negro brasileiro, termina por revelar, ao lado de belas produções modernistas, forte traço racista.[14]

Mário, Oswald e os mineiros nos anos 1930 e 1940

Em 1939, a convite do Diretório Central dos Estudantes, Mário viaja a Belo Horizonte para realizar duas conferências. No Conservatório Mineiro de Música profere a palestra sobre o tema “O sequestro da dona ausente”. O trabalho aborda o tema da mulher “ausente”, “impossível”, “inalcançável”, vislumbrado pelo autor em diversos contos, quadras, lendas e canções populares e que se refletia na poesia brasileira dos anos 1940. A partir dessa estada na capital mineira, o paulista inicia relações com escritores da nova geração — estes, inclusive, se espelham nas travessuras, na boemia e na vocação literária da geração drummondiana. No recente circuito de amigos e correspondentes mariodeandradeanos aparecem nomes como os de Murilo Rubião, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, João Etienne Filho, Henriqueta Lisboa e Fernando Sabino. As cartas trocadas entre Mário e o jovem Fernando portam elaboradas reflexões sobre o processo de criação literária. Seriam iniciadas em 1942 e seguiriam até 1945, ano da morte do poeta incentivador. A poetisa Henriqueta Lisboa, a dona ausente na palestra de Mário no Conservatório — não pode comparecer, pois estava em outro evento, na União Universitária Feminina, no mesmo momento – torna-se importante nome a trocar ideias, percepções e afetos com o autor de “Música, Doce Música”.

Nas cartas trocadas entre Mário a Henriqueta, de 1940 a 1944, a busca de um maior diálogo entre arte e vida — marca constante no projeto do autor — permanece, ao lado da ênfase no critério circunstancial da criação artística. Nas correspondências, o autor sugere à amiga que se esqueça um pouco da dicção simbolista, dos grandes temas universais que, enganosamente, motivariam a produção artístico-literária e se abrisse mais à poética do cotidiano.

 

“A partir da viagem a Minas amplia-se a noção de moderno que deixa de ser ligado apenas a ruptura. A modernidade passaria a ser pensada também a partir do movimento que retorna ao antigo. As ideias futuristas, as imagens do progresso, da máquina são deixadas um pouco de lado.”

 

A última viagem do poeta a Minas foi realizada em setembro de 1944. Veio a Belo Horizonte para rever amigos, encontrar-se com a “querida Henriqueta” e visitar o túmulo de João Alphonsus — jornalista e contista filho do poeta simbolista visitado em 1919 — falecido há pouco tempo.

Também em 1944, Juscelino Kubitschek convida uma caravana paulista e outra carioca para conhecerem o moderno projeto da Pampulha, projetado por Oscar Niemeyer. Foi organizada uma Exposição de Arte Moderna, com obras dos anos 1920 até os anos 1940. Havia o interesse em integrar Belo Horizonte ao cenário moderno do país por meio da ruptura com tradições conservadoras locais e a expectativa da interação entre modernidade artística e modernização técnico-industrial. A exposição provocou algum furor na pacata capital, houve elogios, incompreensões e algumas obras chegaram a ser vandalizadas. O convidado para realizar palestra na chamada “Semaninha” não foi Mário, mas Oswald de Andrade. Em sua fala, assinala o poeta da antropofagia: “Em 22, São Paulo começava. Hoje Belo Horizonte conclui. Porque enquanto Minas procura unificar o Brasil, São Paulo se dispersou em setenta panelas e foi preciso virmos a Belo Horizonte para dar o espetáculo duma família solidária e respeitável”.[10] Assim, Oswald endossa a rede estabelecida entre São Paulo e Minas desde o início do modernismo. Apresenta, inclusive, perspectiva mais animadora frente aos desdobramentos do projeto que a revisão feita por Mário de Andrade em 1942, na conferência intitulada “O movimento modernista”, realizada no Itamaraty, no Rio de Janeiro. Segundo Eneida Maria de Souza e Marília Rothier Cardoso:

 

É (…) curioso verificar que a viagem dos paulistas a Minas Gerais, em 1944, vinte anos após a “Viagem de descoberta do Brasil”, significa não só a celebração do barroco como fonte da nacionalidade brasileira moderna, como enlace do movimento revolucionário de Tiradentes ao de Kubitschek. (…) A terra de poetas, romancistas e narradores seria propícia à luta pela democracia e pela igualdade entre os povos.[20]

 

José Augusto Avancini observa, a partir de reflexões de Mário sobre a originalidade do barroco mineiro: “Foi em Minas Gerais que o estilo barroco estilizou-se, adquiriu feição própria, longe da presença portuguesa do litoral (…)”.[11] Parece existir também um certo “atraso” na poética de alguns autores modernos mineiros em relação às novidades surgidas em outras metrópoles, o que pode contribuir, mesmo com as diferenças entre as produções, para certa peculiaridade na recepção das ideias e na condução da escrita. Conforme observamos, autores mineiros como Drummond já estavam se inteirando de poéticas modernas, mesmo antes do contato com o modernismo paulista, mas evitaram repetir, com rapidez, o que se passava em outras paragens. As aproximações trouxeram ganhos para todos os envolvidos. Se tomarmos, por exemplo, correspondências entre Mário de Andrade e os amigos Carlos Drummond, Martins de Almeida e Henriqueta Lisboa, notaremos não uma aceitação integral das sugestões do intelectual paulista, mas sim a existência de diálogos francos, questionamentos de certas posições e mesmo a presença da característica desconfiança mineira. Mesmo assim, com suas distintas assinaturas, seguem juntos, de mãos dadas, buscando redesenhar o percurso da literatura brasileira.

A produção artístico-literária moderna mineira, ao mesmo tempo, bebe na fonte das tradições barrocas, simbolistas, populares e acolhe as vanguardas, os novos ventos que sopram pelas esquinas, prédios, montanhas e catedrais. Demonstra o encontro do particular com o universal. Revela-se cosmopolita, ampliando modos de ver, ouvir, sentir e pensar o país. Sabendo que o “mundo é grande”, os autores de Minas Gerais contribuem com sua parte para que o Brasil estampe, sem receio e com confiança, sua face cultural no chamado “concerto das nações”, como almejava o autor de “Macunaíma”.

 

Capa. Mário de Andrade imprime seu lugar nos diálogos entre a cultura mineira, a nacional e a cosmopolita.
(“Retrato de Mário de Andrade, 1922”, por Tarsila do Amaral. Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo. Reprodução)

MENEZES, Roniere. Minas Gerais, modernidade e cosmopolitismo: Mário de Andrade, os mineiros e a reinvenção do Brasil. Nas comemorações do centenário do modernismo brasileiro, é imprescindível pensar nas manifestações artísticas para além do circuito São Paulo – Rio de Janeiro. Nesse contexto, Minas Gerais marcou importante lugar no projeto de modernidade brasileira. Cienc. Cult. [online]. 2022, vol.74, n.2, pp.1-9. ISSN 0009-6725.  http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220017.
1. Amaral, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo. 4ª. ed. São Paulo: Ed. 34; Edusp, 2010.
2. Amaral, Aracy A. Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas. 3ª. ed. Edição revista e ampliada. São Paulo: Ed. 34, 2021.
3. Andrade, Carlos Drummond de. Entrevista a Maria Zilda Ferreira Cury. In: Cury, Maria Zilda Ferreira. Horizontes modernistas: o jovem Drummond e o seu grupo em papel jornal. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 1998.
4. Andrade, Mário de. A arte religiosa no Brasil. Claudéte Kronbauer. São Paulo: Experimento; Giordano, 1993.
5. Andrade, Mário de. Alphonsus, 1919. Itinerários. In: Souza, Eneida Maria de, Schmidt, Paulo (Org.). Mário de Andrade: Carta aos mineiros. (Org.) Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.
6. Andrade, Mário de. Carta a Tarsila do Amaral, 15 de novembro de 1923. In: Andrade, Mário de, e Amaral, Tarsila do. Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do Amaral. Amaral, Aracy (Org.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Instituto de Estudos Brasileiros de São Paulo, 2001 (Coleção Correspondência Mário de Andrade; 2).
7. Andrade, Mário de. O Aleijadinho. Aspectos das artes plásticas no Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1975.
8. Andrade, Mário de. Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
9. Andrade, Carlos Drummond de. Poesia completa. Teles, Gilberto Mendonça (Fixação de textos e notas); Santiago, Silviano (Introdução). Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2002.
10. Andrade, Oswald de. O caminho percorrido. Ponta de Lança. In: Andrade, Oswald de. Literatura Comentada. Schwartz, Jorge (Org.). 2ª. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
11. Avancini, José Augusto. Expressão plástica nacional e consciência nacional na crítica de Mário de Andrade. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1998.
12. Cury, Maria Zilda Ferreira. Horizontes modernistas: o jovem Drummond e o seu grupo em papel jornal. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 1998.
13. Marques, Ivan. Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros rapazes de Belo Horizonte. São Paulo: Ed. 34.
14. Martins Filho, Amilcar Vianna e Cabral, Cléber Araújo (Orgs.). 1929 Leite Criolo. Fernando Correia Dias (prefácio). Estudo crítico de Miguel de Ávila Duarte. Belo Horizonte: Instituto Cultural Amilcar Martins, 2012.
15. Pereira, Maria do Rosário Alves. Mário de Andrade e os mineiros: a carta como exercício crítico. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2021.
16. Emicida. AmarElo ao vivo. Dir.: Fred Ouro Preto. Netflix, 2021. 90 min.
17. Rufatto, Luiz. A revista Verde de Cataguases: contribuição à história do Modernismo. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2022.
18. Santiago, Silviano. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
19. Souza, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
20. Souza, Eneida Maria de e Cardoso, Marília Rothier. Modernidade toda prosa. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2014.
21. Souza, Eneida Maria de. Traço crítico. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1993.
Roniere Menezes é professor da pós-graduação em Estudos de Linguagens, da graduação em Letras e do curso Técnico do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). É pesquisador do CNPq e líder do Núcleo de Estudos Análises Transdisciplinares em Literatura, Arte e Sociedade (ATLAS), vinculado ao CNPq, e pesquisador do Núcleo de Estudos do Acervo de Escritores Mineiros da UFMG. Publicou o livro "O traço, a letra e a bossa: literatura e diplomacia em Cabral, Rosa e…

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