A presença da nanotecnologia na sociedade moderna é generalizada, sendo mais óbvia nos inúmeros dispositivos eletrônicos que utilizamos como ferramentas de produtividade ou para entretenimento, mas também se encontra em áreas menos óbvias, como na agricultura ou na saúde humana. Como o mesmo nanomaterial pode ter várias aplicações, convém apresentar primeiro um breve histórico da nanotecnologia e das bases científicas que permitem hoje o desenho racional de novos materiais e suas aplicações, com ênfase para a área de saúde.
Quando Richard Feynman proferiu sua palestra intitulada “There’s Plenty of Room at the Bottom” durante a reunião anual da Associação Americana de Física de 1959, realizada no CalTech, ele tinha plena consciência de estar criando uma nova área do conhecimento, ao propor a manipulação da matéria em escala atômica, o que chamamos de nanotecnologia.
A nanotecnologia está presente em situações corriqueiras. Por exemplo, ao ler este texto em um dispositivo com tela de LED, você está usando uma combinação de nanopartículas bem pequenas de materiais cerâmicos, chamadas de pontos quânticos (quantum dots, em inglês), as quais transformam eletricidade em luz com cores bem definidas. E como fazemos para obter as diferentes cores? Controlamos a composição química de cada cerâmica e a forma e tamanho das nanopartículas.
Outro exemplo muito próximo da realidade cotidiana são os catalisadores de uso obrigatório no sistema de escapamento de veículos com motor de combustão. Dentro do tal dispositivo catalisador encontramos uma combinação de nanopartículas, que podem ser metálicas ou de cerâmicas, ou uma combinação de ambos materiais, e que facilitam a conversão de gases altamente poluentes em outros de menor impacto ambiental. E por que as nanopartículas funcionam? Novamente a resposta remete ao controle preciso de composição, forma e tamanho das estruturas nanométricas.
Em sua palestra, Feynman já tinha uma percepção clara de que a miniaturização controlada e precisa de materiais em escala atômica seria a porta de entrada para aplicações até então impensáveis, como no exercício mental em que ele discutiu a possibilidade de se colocar todo o conteúdo da Encyclopaedia Brittanica na cabeça de um alfinete – uma ideia que então foi altamente disruptiva e que hoje consideraríamos algo até corriqueiro (um pendrive moderno comportaria pelo menos mil vezes esse volume de dados em um pequeno chip). Na verdade, ele foi profético, pois a Encyclopaedia Brittanica deixou de ser publicada em forma impressa a partir de 2011, existindo hoje apenas em sua forma digital, gravada em chips de nanomateriais.
O que todas as aplicações mencionadas e muitas outras têm em comum é a necessidade de gravar informação nas nanoestruturas, sendo a informação impressa no material, o que lhe confere funcionalidade. Então a questão que se coloca é: quais seriam as informações que deveríamos gravar em nanomateriais para torná-los úteis em aplicações na área de saúde?
Essa pergunta tem várias respostas, a começar pelo tamanho dos nanomateriais, cujas dimensões vão de poucos nanômetros até algumas centenas de nanômetros, comparáveis às de estruturas biológicas, que vão desde biomoléculas, como proteínas e DNA, até organelas celulares ou vírus. Para cada alvo biológico, um tamanho de nanoestrutura é mais adequado. Por exemplo, em um trabalho recente mostramos que o vírus mosaico do tabaco, que ataca plantas da família das solanáceas, como a batata, o tomate e o próprio tabaco, pode ser inativado por uma nanopartícula de sulfeto de cobre, um tipo de cerâmica, desde que o tamanho da nanopartícula seja de cerca de 4 nanômetros.[1] O vírus em si é muito maior do que esse tamanho, mas esse é o diâmetro aproximado de um poro que percorre o interior do vírus de ponta a ponta, então a nanopartícula consegue entrar no poro e promover a inativação do vírus.
“A presença da nanotecnologia na sociedade moderna é generalizada, sendo mais óbvia nos inúmeros dispositivos eletrônicos que utilizamos como ferramentas de produtividade ou para entretenimento, mas também se encontra em áreas menos óbvias, como na agricultura ou na saúde humana.”
Cabe abrir um parêntese: se o tema aqui é o uso da nanotecnologia para a saúde, por que falar de um vírus de planta? Primeiramente, há que se reconhecer que a saúde humana depende criticamente da alimentação, então o uso da nanotecnologia para aumentar a produção de alimentos impacta positivamente a saúde humana. Além disso, as ideias gerais de um estudo como esse lançam as bases para o desenvolvimento de novas tecnologias para atacar outros problemas semelhantes, então esta pesquisa mais básica nos ensina como devemos desenhar um nanomaterial para aplicações em sistemas biológicos em geral.
Fechamos o parêntese e voltamos à questão da nanopartícula que inativa o vírus: além de um tamanho específico, quais outras características deve ter para funcionar nessa aplicação? A mais óbvia é a sua biocompatibilidade, ou seja, a sua capacidade de atacar o seu alvo específico sem prejudicar o hospedeiro e sem causar contaminação no ambiente. Ambos os aspectos se relacionam com a toxicidade de uma substância em comparação com a sua atividade, ou seja, não há como se especificar um valor absoluto, sendo necessário fazer uma análise de riscos e benefícios. Essa ideia remonta pelo menos a Paracelso (médico, alquimista e filósofo suíço), que no século XVI prescrevia um derivado de mercúrio chamado calomelano para tratar a sífilis, mesmo sabendo que se tratava de substância tóxica, atribuída ao cientista a noção de que o que separa o remédio do veneno é a dose. De fato, calomelano e outros derivados desse elemento químico tão tóxico foram usados até o final do século XIX para tratar sífilis e uma grande variedade de outras doenças, mas hoje fazemos antecipadamente a avaliação de toxicidade nas etapas de seleção de substâncias candidatas a fármacos. É importante se ressaltar que a toxicidade não é definida apenas pela presença de elementos químicos sabidamente tóxicos, como mercúrio, cádmio e chumbo, podendo ser também aumentada ou diminuída a partir de modificações químicas (essa afirmação vale para moléculas usadas em fármacos convencionais e também para os nanomateriais aqui discutidos). No exemplo da nanopartícula de sulfeto de cobre, ensaios in vitro e in vivo determinaram que as plantas toleram o material sem grandes efeitos adversos. Esse é um resultado interessante, pois o cobre sabidamente tem efeitos tóxicos ao nível celular, mas o material nanoestruturado é eficaz contra os vírus em uma dose tão baixa que não produz resposta citotóxica significativa. Por exemplo, a dose ativa das nanopartículas de sulfeto de cobre foi 10.000 vezes menor do que a concentração de cobre em uma calda bordalesa, um tradicional fungicida de amplo uso na agricultura, sendo comparável ao teor de cobre encontrado na água de sistemas residenciais de aquecimento solar e dentro do que a legislação brasileira aceita como tolerável em água para consumo humano.
Essa maior eficiência do cobre na forma de nanopartículas em relação à sua forma coloidal convencional na calda bordalesa é em parte devida ao controle de tamanho, mas isso por si só não explica uma diferença tão grande, o que nos leva ao terceiro fator que define a eficiência de um nanomaterial para aplicações biológicas em geral e médicas em particular: a capacidade de reconhecer alvos específicos, sejam de patógenos externos ou de células doentes, como aquelas presentes em tumores ou doenças degenerativas.
Aqui cabe lembrar que a vida na biosfera terrestre é caracterizada por ser homoquiral – do grego, quiral significa mão e ser quiral significa que essa classe de substâncias podem existir na forma de mão direita ou de mão esquerda, sendo idênticas em todos os aspectos como nossas mãos, exceto por terem esse senso de orientação no espaço (olhe para suas mãos e se convença que os seus dedões apontam em direções diferentes se você as olha com as palmas voltadas em sua direção). Não cabe aqui uma análise muito aprofundada desse caráter de mão direita e mão esquerda das moléculas biológicas, mas é importante salientar que o fato de todas as proteínas serem formadas por moléculas de mão esquerda e todos os açúcares por moléculas de mão direita é a base para que essas moléculas sejam capazes de se reconhecer com alto grau de especificidade, sendo usual se referir a esse processo como um mecanismo do tipo chave-fechadura.
Seria possível imitar esse comportamento dos sistemas biológicos em nanomateriais artificiais? A resposta é sim, e nos referimos aos materiais assim preparados como sendo biomiméticos ou bioinspirados. Os nanomateriais mais comuns são cristais de metais ou de cerâmicas, que não são quirais por si só, então a estratégia é imprimir informação quiral nas nanoestruturas, imitando biomoléculas como proteínas ou o DNA. Essa estratégia de imitar as biomoléculas faz muito sentido se considerarmos que elas são o produto de centenas de milhões de anos de seleção natural e como tal são sistemas com funcionalidades altamente otimizadas. Em termos práticos, a estratégia que se consolidou nas últimas duas décadas foi o uso de aminoácidos, que são os blocos constituintes das proteínas, para modificar as superfícies das nanoestruturas. Dos 20 aminoácidos naturais, alguns são particularmente adequados para realizar essa modificação química, com destaque para a cisteína, com um átomo de enxofre em sua cadeia lateral, sendo esse átomo responsável pela grande afinidade deste aminoácido em relação tanto a metais, como ouro, prata e cobre, ou em relação a cerâmicas, em que o átomo de enxofre da cisteína entra na estrutura cristalina substituindo algum átomo quimicamente semelhante, como oxigênio ou mesmo um enxofre do cristal.
Finalmente, cabe falar de um último aspecto sobre os nanomateriais que afeta tanto a sua síntese como a sua aplicação: a interação com a luz. O tamanho na escala de nanômetros privilegia a interação nesses materiais com a luz na região visível, com contribuições relevantes também nas regiões do infravermelho e do ultravioleta. Além de relevantes para definir a cor do material, como é o caso das nanopartículas cerâmicas que fazem uma tela de LED funcionar, em aplicações biológicas essa interação com a luz é uma ferramenta muito poderosa, pois permite ligar e desligar certas propriedades do material. Por exemplo, a nanopartícula de sulfeto de cobre somente inativa o vírus mosaico do tabaco quando é irradiada com luz visível, ou seja, a sua atividade como catalisador específico contra o vírus pode ser ligada com luz e é desligada se paramos de irradiar o material.
Este pano de fundo mais histórico mostra o estado de maturidade das estratégias de desenvolvimento de materiais funcionais, mas vale lembrar que estas são estratégias gerais e ainda temos de fazer uma seleção empírica de materiais de partida e suas modificações para cada nova aplicação. Assim, os exemplos dados a seguir sobre nanomateriais aplicados à saúde devem ser vistos sob essa óptica, de uma busca empírica norteada por princípios gerais de ajustes das propriedades do material.
“Além das aplicações em diagnóstico, os nanomateriais também têm uso potencial no tratamento de diversas doenças.”
Um dos materiais que encontra mais uso na medicina são as nanopartículas de ouro. Por exemplo, nanopartículas de ouro funcionalizadas com anticorpos foram usadas para identificar dois marcadores da doença de Alzheimer,[2] permitindo detectar a presença das proteínas clusterina e fetuína B em níveis muito baixos, da ordem de 1 nanomol por litro, o que é uma concentração muito baixa e, portanto, deve permitir o diagnóstico precoce da doença. Os anticorpos garantem que a resposta seja específica para estes dois biomarcadores e a combinação com a nanopartícula de ouro confere grande sensibilidade ao dispositivo, por produzir uma rápida mudança de cor do incolor para o rosa. Trata-se também de tecnologia barata, estimando-se que os testes rápidos custarão em torno de R$ 10.
Outro exemplo do uso de nanomateriais à base de ouro para fins diagnósticos é a modificação de nanobastões de ouro com um hormônio humano chamado amilina ou peptídeo ilhota amiloide (hIAPP),[3] que tem uma função fisiológica no metabolismo saudável, mas em várias patologias perde a sua funcionalidade ao formar fibras insolúveis que se acumulam no corpo. Entre as patologias que se caracterizam pela formação de fibras amiloides, podemos citar o diabetes tipo 2, o câncer de pâncreas, a doença de Parkinson e a doença de Alzheimer. Assim, essas doenças podem ser diagnosticadas pela identificação de depósitos amiloides e parte do tratamento consiste em se descobrirem novas drogas capazes de impedir a agregação do hIAPP. Os nanobastões de ouro modificados com hIAPP permitem que ambas as tarefas sejam executadas, pois a presença de fibras amiloides faz com que luz polarizada sofra uma rotação característica na região da cor vermelha, sendo possível se detectar a sua presença com um par de polarizadores cruzados, um dispositivo simples e barato – se for observado um brilho vermelho passando pelo segundo polarizador, o diagnóstico é positivo para a forma do hIAPP associada às doenças. Na busca por novas drogas capazes de prevenir a formação das placas amiloides, o teste segue o mesmo princípio: se a luz vermelha cruzar o par de polarizadores significa que a substância candidata a fármaco falhou e deve ser descartada. Além de sensível, este procedimento de seleção de candidatos a fármaco é mais rápido do que os protocolos usuais, pois os nanobastões funcionalizados com hIAPP aceleram a formação das fibras in vitro, reduzindo a duração de cada teste de 1-2 semanas para apenas 10 horas – um ganho em tempo e em recursos investidos. (Figura 1)
Figura 1. Nanobastões de ouro modificados são aliados em tratamentos de doenças
(Reprodução)
Além das aplicações em diagnóstico, os nanomateriais também tem uso potencial no tratamento de diversas doenças. Por exemplo, células de tumores sólidos podem ser tratadas com uma combinação de agentes quimioterápicos e nanobastões de ouro,[4] ambos encapsulados em uma estrutura de lipídios chamada vesícula, que se rompe apenas no local onde a droga deve ser liberada mediante o uso de um laser que emite na região do infravermelho. O uso dessa região do espectro eletromagnético é importante por sua capacidade de penetração em tecidos vivos e assim as nanoestruturas de ouro se tornam escolhas naturais por terem uma banda de absorção nesta região. A absorção da energia do laser pelos nanobastões causa um aquecimento localizado, levando à ruptura das vesículas e à liberação do agente quimioterápico no local em que deve atuar. Assim, os efeitos colaterais podem ser reduzidos pela liberação controlada e localizada do medicamento, que nas partes do corpo que não estão sendo irradiadas com o laser deverá permanecer inativo na sua forma encapsulada na vesícula lipídica. É interessante salientar que a própria vesícula lipídica deve ser considerada uma nanoestrutura, formada pela auto-organização de moléculas de lipídios, e cuja composição pode ser ajustada para torná-la específica para uma célula-alvo (no exemplo citado, os lipídios eram de membrana de células tumorais de um tipo câncer de pulmão, que era o alvo do tratamento proposto). E também se deve frisar que os nanobastões de ouro ao se aquecerem, além de permitirem a liberação controlada do fármaco, também contribuem para a morte da célula cancerosa pelo aquecimento localizado, aumentando a eficácia do tratamento.
“As nanopartículas também podem ser utilizadas na produção de adjuvantes para vacinas. Os adjuvantes ativam uma resposta imune inata no local da aplicação da vacina que aumenta a resposta imune específica, produzindo os anticorpos para a doença em si que se deseja combater.”
Outra aplicação possível para nanopartículas de ouro é na produção de adjuvantes para vacinas – um tópico bastante relevante no contexto da pandemia de covid-19. Os adjuvantes podem ser de vários tipos, sendo os mais comuns derivados de alumínio, como o hidróxido de alumínio e o fosfato de alumínio, presentes na vacina CoronaVac, por exemplo. Resumidamente, os adjuvantes ativam uma resposta imune inata no local da aplicação da vacina e essa resposta, embora inespecífica, aumenta a resposta imune específica, que produz os anticorpos para a doença em si que se deseja combater. Os compostos de alumínio utilizados como adjuvantes são semelhantes a cerâmicas em termos de composição, mas não de estrutura, por serem amorfos e não cristalinos, então a primeira hipótese de trabalho que adotamos foi a de que a resposta imune seria maior com um material com forma e tamanho bem definidos. Além desse controle de forma e tamanho, também consideramos que a quiralidade deveria ser avaliada como variável capaz de aumentar a resposta imune. De fato, as nanopartículas de ouro com quiralidade de mão esquerda tiveram uma eficácia cerca de 25% maior do que as de mão direita quando testadas na vacina contra a gripe H9N2 em camundongos.[5] Embora pareça um tanto frustrante que a vacina testada seja para uma variante de gripe e não para a covid-19, é importante registrar que se trata de uma pesquisa de longa duração, iniciada cerca de três anos antes da pandemia. Além disso, trata-se de uma prova de conceito e o resultado não depende da vacina específica usada para demonstrá-lo, de modo que se espera que o uso de nanomateriais quirais se torne uma opção para aumentar a eficácia de outras vacinas.
Figura 2. Nanopartículas de óxido de titânio modificadas para incorporar de forma estável uma grande quantidade de radicais peróxido em sua superfície.
(Imagem por Environmental Protection Agency National Risk Management Research Laboratory. Reprodução)
Após tantos exemplos de nanomateriais à base de ouro, cabe aqui indicar que outros tipos de materiais são também investigados para aplicações médicas, mas com uma aplicabilidade mais limitada devido a possíveis efeitos tóxicos advindos dos elementos químicos constituintes, principalmente daqueles chamados genericamente de metais pesados (essa designação não é muito adequada se considerarmos que o ouro é um metal pesado e ainda assim apresenta alto grau de biocompatibilidade). Ainda assim, podemos mencionar um exemplo recente utilizando o óxido de titânio, um material de baixa toxicidade usado em alimentos e produtos de higiene, modificado para incorporar de forma estável uma grande quantidade de radicais peróxido em sua superfície.[6] Esses radicais livres podem ser gerados de maneira controlada em um local específico por irradiação com luz visível e podem, por exemplo, eliminar células cancerosas de tumores de bexiga sem afetar as células saudáveis. (Figura 2)
Há muitos outros exemplos de usos da nanotecnologia a favor da saúde, o que está além do escopo dessa perspectiva aqui apresentada, mas os princípios gerais seguem de perto a discussão baseada nesses poucos exemplos aqui contidos, esperando-se avanços contínuos nas áreas de diagnóstico, prevenção e cura de doenças diversas.