Dentre as efervescências modernas ocorridas no Brasil — e não apenas em São Paulo — a Semana de 1922 adquiriu uma projeção particular. Essa projeção se deu graças a um ponto específico, que consagrou, de fato, o acontecimento como moderno: o escândalo.
A ruptura com parâmetros considerados antiquados, conservadores, teve uma história de escândalos rumorosos: o Salon des Refusés, em 1863, a exposição impressionista, a estreia da Sagração da Primavera são os mais ilustres exemplos. Esses tumultos tornaram-se uma chancela, uma garantia de vanguardismo e de modernidade. Projetaram as manifestações com impacto, ao mesmo tempo que afiançavam sua verdade inovadora, sua afirmação de ruptura.
A força escandalosa associou-se de tal forma como caução de autenticidade que, do momento em que os inovadores se institucionalizaram, e os escândalos tornaram-se mais raros, muitos artistas, em sua busca de reconhecimento como revolucionários e modernos, continuaram tentando, incansavelmente, ao longo de todo o século XX, e mesmo durante o século XXI, provocar escândalos, cutucando o burguês. É o escândalo que distingue a Semana de Arte Moderna de São Paulo do que ocorria como inovação e modernidade no resto do país.
Com seu alvoroço, a Semana de Arte Moderna de 1922 entrou para a história da cultura brasileira como um marco e um mítico emblema de inovação. Os modernistas haviam preparado esse escândalo com consciência. Mario de Andrade, em carta, a Menotti del Picchia, no dia 23 de fevereiro de 1922, sobre a Semana no Municipal, comenta o que havia acabado de ocorrer: “Realmente, caro amigo, outro meio não havia de conseguirmos a celebridade. Era só assim, aproveitando a cólera dos araras” (…) “Estamos célebres! Enfim! Nossos livros serão comprados! Ganharemos dinheiro! Seremos lindíssimos. Celebérrimos. Teremos nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira” [1].
É assim, entre a verdade e a ironia, nesses termos expostos por Mário de Andrade que se celebra ainda hoje, em seu centenário, a Semana de Arte Moderna: eternizada nos jornais e na História da Arte. Sinal que a ruptura, a vanguarda que incomodava, institucionalizou-se. Mesmo, ela oficializou-se. Como ocorreu com todas as revoluções artísticas, no mundo inteiro.
No entanto, é possível escapar dos parâmetros que ela, a Semana, dispôs e que regeram, durante tanto tempo, pensamento, cultura e criação em nosso país.
“Com seu alvoroço, a Semana de Arte Moderna de 1922 entrou para a história da cultura brasileira como um marco e um mítico emblema de inovação.”
Não se pode dizer que a Semana tenha sido a criadora desses parâmetros. Ela assumiu, em termos genéricos, os caráteres culturais, as atitudes mentais, próprias à modernidade internacional que transcorreu no século XX. No Brasil, porém, escandalosa, altamente simbólica, a Semana surge como um sinal dividindo águas.
A Semana teve, de fato, um poder revelador para uma audiência que desconhecia as práticas ditas “modernas” das artes, e foi um dos fatores essenciais para que se constituíssem dois campos inimigos: o dos “avançados” e dos “atrasados”. Acentuou-se assim um conflito cultural público, com tomadas de posições e proclamações enérgicas. A Semana tornou-se mítica.
Proponho tocar em um de seus mitos: o nacionalismo.
A Semana não foi nacionalista, ao contrário do que muitos pensam. No campo da música, basta verificar os programas de recitais que ela apresentou para constatar que não havia nela o viés nacionalista. Villa-Lobos, a personalidade musical criadora mais poderosa ali presente, até então não escrevera música que, de algum modo, buscasse configurar um caráter nacional (Figura 1).
Até a década de 1920, a música de Villa-Lobos era essencialmente francesa. As obras que ele próprio proclamou como nacionalistas e que são anteriores a esse período, como é o caso de Uirapuru, e das Cirandas, foram antedatadas pelo próprio compositor. Mário de Andrade denunciou essa datação que chamava de “espiritista”: o compositor atribuíra datas anteriores às reais, para afirmar-se muito cedo como nacional e vanguardeiro, quando o grande músico assegura que, em alguns casos, não havia “escrito no papel”, mas que já estava com uma obra na cabeça desde muito antes. Essas datações fantasiosas — com datas anteriores inscritas em partituras posteriores — serviam a ele sobretudo para elaborar a lenda sobre si próprio de um músico embebido em brasilidade desde suas origens. Elas vêm acompanhadas pela construção de uma mitologia pessoal nacionalista muitíssimo imaginária.
Mário de Andrade aborda o fato de Villa-Lobos não ter oferecido nenhuma obra de caráter nacional durante a Semana: “Ora, é muito fácil de compreender que em ocasiões como a Semana de Arte Moderna (…) Villa-Lobos buscasse apresentar o que tinha de mais seu, de mais excepcional e de melhor. E de mais brasileiro, num caso como o da Semana de Arte Moderna, em que se tratava (…) de trazer ao Brasil a mensagem da remodernização de suas artes. Não é crível nem admissível, pois, que o compositor escolhesse para se apresentar (…) inéditos cheios de europeísmos sintáxicos e mesmo debussismos vocabulares muito fáceis e numerosos de achar em todas as obras aparecidas nos concertos de Villa-Lobos até pelo menos 1923. E realmente é desta data, é logo após a Semana de Arte Moderna, que o compositor principia se preocupando, com a solução nacional de sua música e se atira ao aproveitamento da verdade” [2].
Mário de Andrade, aqui, parece atribuir à Semana o estalo que levou Villa-Lobos a se tornar nacional. Mas ele é posterior, e a explicação é outra. O musicólogo finlandês Eero Tarasti, analista muito agudo e original da obra de Villa-Lobos, assinala o momento da gênese da inflexão nacionalista da obra do compositor. Escreve, num artigo de 1980: “Ao visitar Paris e o restante da Europa, na década de 1920, Villa-Lobos compreendeu qual era a posição social do compositor na Europa naquele momento: ele interessava ao mundo europeu acima de tudo como intérprete de brasilidade, com os ritmos de força primitiva de suas composições, harmonias próprias, melodias folclóricas e tons musicais que refletem a variedade de cores do trópico…” [3]. É esse Villa-Lobos exótico na Europa (o néo-sauvage, como dizia dele o compositor Florent Schmitt), e depois nacionalista oficial do Estado Novo, que corrige e reconstrói seu passado.
De fato, a Semana de Arte Moderna não foi nacionalista. Nem mesmo Mário de Andrade produzira até então obras nacionalistas. Sua Pauliceia desvairada, de 1922, não tem essas intenções, a São Paulo que ele descreve é “Minha Londres das neblinas finas”, e seu “Prefácio interessantíssimo”, programático, não tem a menor proposta de programa nacional. Mesmo em 1924, “A escrava que não é Isaura”, reflexão, explicitação do que seria a criação poética moderna, que vem recheada de longas citações em francês e italiano, não faz alusão alguma a um programa nacional.
Porém, os modernistas logo incorporarão o projeto nacionalista. Isso ocorre nos últimos anos da década de 1920. Constata-se, em 1924, o “Manifesto da poesia Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade (livro Pau-Brasil, poesias, 1925), em 1926, O Movimento Verde-Amarelo (“A Anta e o Curupira” de Plínio Salgado, conferência de 1926) que reunia Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia e o próprio Plínio Salgado e que entra em polêmica com Oswald de Andrade, acusando-o de um nacionalismo afrancesado. Isso resultou no célebre “Manifesto Antropofágico” em 1928 — o modo mais inteligente, mais esperto, de conceber o nacionalismo, mas que não escapa às suas determinantes.
Quero me deter em duas obras de Mário de Andrade, datadas também de 1928: o “Ensaio sobre música brasileira” e “Macunaíma”.
O “Ensaio” é um texto normativo e, um pouco, um manifesto. Faz uma proclamação da música nacional, descreve um processo teleológico que conduz a ela, além de ensinar como fazer música nacional. A teleologia traça uma evolução: aos poucos se chega a uma misteriosa quintessência de brasilidade. Diz Mário de Andrade: “Na obra de José Mauricio e mais fortemente na de Carlos Gomes, Levy, Glauco Velasquez, Miguez, a gente
percebe um não-sei-quê indefinível, um rúimruim que não é rúimruim propriamente, é um rúimruim exquisito pra me utilizar duma frase de Manuel Bandeira. Esse não-sei-quê vago mas geral é uma primeira fatalidade de raça, badalando Badalando longe” [4]. Esse ruim é o que escapa do universal e revela o particularismo.
O universal é o grande inimigo: continua Mário de Andrade: “um artista brasileiro escrevendo agora em texto alemão sobre assunto chinês, música da tal chamada de universal faz música brasileira e é músico brasileiro. Não é não. Por mais sublime que seja, não só a obra não é brasileira como é antinacional. E socialmente o autor dela deixa de nos interessar. Digo mais: por valiosa que a obra seja, devemos repudiá-la, que nem faz a Rússia com Strawinsky (sic) e Kandinsky” [5].
Chamo a atenção aqui para a exclusão de Stravinsky e Kandinsky, verdadeiros parâmetros de um caráter revolucionário nas artes. Atenção, diz Mario de Andrade: a criação moderna não é suficiente, ou não é mais suficiente, ou pior, pode ser nociva diante do projeto augusto de nacionalismo que se desenha então. Isto prenuncia as recusas de Mário de Andrade em aceitar, em nome de uma brasilidade sonhada, as formas modernas da escola de Viena, Koellreutter e o grupo “Música Viva”: modernidade ma non tropo, sobretudo se paira a ameaça do universal sobre o nacional.
Mário de Andrade, no “Ensaio sobre a música brasileira”, passa em revista os diversos meios de se tornar um “autêntico” compositor brasileiro. Quais suas fontes legítimas? Quais os cuidados para empregar a síncopa? Qual instrumentação? Cuidado, não sejam “individualistas”, ou excessivamente originais, como Villa-Lobos. Diz Mario de Andrade: “Mas como a tudo quanto faz, Villa-Lobos imprimiu aos Choros, Serestas, Cirandas, uma feição individualista excessiva, não se utilizando propriamente das formas populares nem as desenvolvendo” [6].
Villa-Lobos se corrigiu depois desses excessos vanguardeiros dos anos de 1920, com o retorno à ordem de 1930, quando essa modernidade brasileira, que virou nacional, e que construía a “alma” da nação, aderindo organicamente ao estado, àquilo que Boris Fausto chamaria de “nacionalismo autoritário”. Não é preciso lembrar que os regimes totalitários, ditatoriais, florescem nesses anos de 1930, e que o nacionalismo serviu a eles.
Se o “Ensaio sobre música brasileira” dava a receita de como ser um músico brasileiro e, por extensão, ser um artista brasileiro, “Macunaíma” era a aplicação prática, no campo da literatura, daqueles princípios anunciados. Mário de Andrade concentra, em sua escrita, uma quintessência brasileira, feita dos mitos que ele leu em Koch-Grünberg, de elementos tomados de folcloristas diversos, de lembranças pessoais. Com uma impressionante autoridade, ele cria o herói brasileiro.
Independentemente da extraordinária qualidade da obra, o processo é o de um exotismo, no sentido mais estrito da palavra. O paulista urbano Mario de Andrade busca elementos em regiões e culturas distantes, com as quais ele tem tão pouca vivência quanto com as de quaisquer outros países. Mas o recorte geográfico da nação impõe uma cultura una para um povo fraterno.
Figura 1. Villa-Lobos foi uma das maiores personalidades musicais da semana de Arte Moderna
(“Heitor Villa-Lobos”, por autor desconhecido. Reprodução)
Esse exotismo se evidencia com as célebres grandes viagens de Mario de Andrade pelo Brasil e para descobrir o Brasil. Elas não foram mais do que três [7].
Cito essas viagens porque elas fazem parte do surto nacionalista desses anos. E porque elas mostram bem como o projeto nacionalista (seja ele romântico ou moderno, não importa) é um construto sobre um autêntico muito duvidoso. Essas viagens de Mario de Andrade se assemelham muito às expedições científicas que governos europeus mandavam ao Brasil no século XIX, ou dos viajantes estrangeiros em busca de aventuras e de estranhezas em terras bárbaras, como Ferdinand Denis na primeira metade do século XIX. Por sinal, Ferdinand Denis, que, em seis anos de Brasil, viajou muito mais do que Mario de Andrade, não se furtou de medir a “brasilidade” dos autores brasileiros. Essas viagens, de Mario de Andrade e dos estrangeiros, foram incursões pontuais que estimulavam reações intuitivas para generalizações amplas.
Em suma, houve uma centralização, por parte dos modernistas no seu processo de institucionalização, de um Brasil-nação. Como em “Macunaíma”, a fórmula é ir catar diversos elementos no país inteiro para fundi-los numa pátria só. Na verdade, o Sul faz um blend de exotismos para fabricar um Brasil moderno e nacional, que iria servir tão bem aos projetos do Estado Novo.
Tudo isso nos indica que esses nacionais-modernistas investiram, com os meios que possuíam, na construção cultural de uma nacionalidade. Apenas, eles se esqueceram de indagar alguns pontos: o que é nacionalidade? O que é nação?
Quero dar um salto aqui, não temporal, mas geográfico. Em 1928, a Sociedade das Nações, organismo criado depois do choque da primeira guerra mundial no sentido de uma vigilância pela paz, organizou, em 1928, um Congresso Internacional das Artes Populares em Praga. A maravilhosa cantora Elsie Houston participou com um texto sobre La musique, la danse et les ceremonies populaires du Brésil [8]. Houve também, ali, uma exposição de objetos indígenas enviada pelo Museu Nacional.
Mario de Andrade e Luciano Gallet foram convidados para participar desse congresso. No entanto, acabaram ausentes e as razões são confusas: Flavia Toni esmiuçou a correspondência a esse respeito [9]. Um primeiro óbice aparece com Luciano Gallet, que “ao entender que os trabalhos seriam publicados em Anais, teme a possibilidade de que os temas por eles estudados fossem usados por compositores estrangeiros.” (sic!). Renato de Almeida, que intermediara o convite, demonstra o mesmo receio de Gallet.
Mario de Andrade opõe-se a isso, numa carta a Gallet: “Quanto ao caso de não dar as melodias pra Praga você não tem razão. Pouco importa que os estrangeiros deformem a brasilidade musical. Afinal das contas vamos e venhamos: brasilidade tradicional nem se pode falar que certas músicas estranhas do Villa sejam brasileiras, a principiar pelas próprias Cirandas sem que tenha coisa própria por demais (e sem pátria) e temas tradicionais mas caracteristicamente portugas na maioria. E é justamente a ‘estranheza’ bárbara de certas obras do Villa que está fazendo sucesso brasileiro (!) na Europa” [10].
Numa carta a Manuel Bandeira, entretanto, Mario de Andrade avança outro argumento para a não participação no Congresso: os textos seriam publicados na Europa, e ele temia que os músicos brasileiros tivessem pouco acesso a ele: “Ficava um trabalho exclusivamente pra Europa, onde os músicos já estão tradicionalizados na pesquisa” [11]. O argumento é pífio, pobre justificativa para a recusa de Mario de Andrade.
Tudo isso tem cheiro de pretexto. Seja como for, há uma boa dose de nacionalismo fechado, para não dizer campanilista nessa história. O que mostra uma franca oposição com o espírito do Congresso, expresso no texto de apresentação de Henri Focillon. Henri Focillon é importante aqui. Historiador e teórico das artes, esteve nas origens e na organização desse congresso, escrevendo uma introdução para os Anais, que foram publicados em 1931.
“Tudo isso nos indica que esses nacionais-modernistas investiram, com os meios que possuíam, na construção cultural de uma nacionalidade. Apenas, eles se esqueceram de indagar alguns pontos: o que é nacionalidade? O que é nação?”
Essa introdução é um texto de espantosa lucidez e pode ser lido como advertência profética. Naquele momento em que se preparavam os mais terríveis regimes autoritários, em que “raízes populares” eram consideradas como fundamento de nações e de patriotismos para países que, poucos anos depois, entrariam numa guerra mundial apocalíptica, bases de cultura nacional acentuando divergências e oposições, o texto de Focillon é um alerta.
O próprio propósito do congresso já dava o tom: “suscitar comparações e estabelecer grandes linhas de uma espécie de quadro ideal onde a classificação por nacionalidade não impedisse de ver com vigor os laços que unem tantas formas diversamente nuançadas, mas não estrangeiras umas as outras” [12].
Em sua apresentação, Focillon passa em revista as artes populares, celebradas no século XIX, assimiladas pelo romantismo, e assinala como “o princípio das nacionalidades tendia a acentuar as diferenças e levava cada formação política a glorificar-se de sua antiga herança de tradições, como um bem próprio, como de um valor original” [13]. Foi isso, exatamente, que, depois do romantismo, fizeram os nossos modernistas.
Está claro, Focillon não diminui em nada o papel da descoberta das artes populares para o enriquecimento das culturas elaboradas, que poderíamos chamar de eruditas. Na música, por exemplo: “A música pediu aos temas populares uma profundidade de acento e uma beleza de cor que os mestres não acreditavam mais poder tirar de si próprios” [14].
Mas ele recusa toda instrumentalização nacionalista. Sublinha que a “condição do homem” é uma força mais decisiva sobre ele do que sua nação: “Ela pesa imediatamente sobre ele pelo seu gênero de trabalho, pelo seu utensílio, pelo seu habitat, pelos recursos do solo, pelos animais que são seus companheiros, enfim, pelo próprio alimento”. Prossegue, admiravelmente: “Portanto, é verdade que a arte do povo não é forçosamente a arte dos povos, quero dizer que ela não é uma expressão antes de tudo nacional porque corresponde à identidade das matérias e das técnicas pelo menos um parentesco nos esforços e nas formas; porque encontramos às vezes, na aldeia, traços enfraquecidos, simplificados e duráveis dos movimentos gerais; porque, enfim, a arte popular mantém, em muitos pontos, tradições tão antigas quanto o próprio homem e que escapam à nossa geografia política” [15].
É evidente que foi essa lucidez que faltou aos modernistas brasileiros, e que falta a todos os “identitaristas” de todas as épocas.
O nacionalismo desses modernistas brasileiros vingou por ser uma posição ideológica confortável, por ser útil como instrumento político e de dominação social. A posição de Focillon, desconfortável, reflexiva e incômoda, não poderia seduzir uma visão de mundo que encontrara suas certezas.
Teve um forte aspecto positivo: o entusiasmo e a fé vibrante que provocou nos criadores levou a grandes obras: basta pensarmos em Camargo Guarnieri, Mignone ou Lorenzo Fernandez, e no gênio de Villa-Lobos.
Mas, reforçado pelo espírito autoritário orgânico à modernidade — e esta questão, a do autoritarismo característico do espírito moderno é outro ponto importante — significou uma série de exclusões. Uma delas, foi a da cultura trazida pelo grande número de imigrantes que chegaram ao Brasil no século XX. Eles significavam uma ameaça à pureza de uma identidade nacional imaginária. Por isso, não entram em conta.
Outro, e já fiz alusão a ele, era a desconfiança das formas artísticas que afastassem a modernidade brasileira de seu projeto nacional: já mencionei o confronto com as experiências do grupo “Música Viva”, que levaria, depois da morte de Mário de Andrade, à célebre “Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil”, de Camargo Guarnieri, em 1950 [16].
Enfim, um ponto mais grave. Em 1942, Mario de Andrade proferiu uma palestra na Casa do Estudante do Rio de Janeiro, intitulada O movimento modernista. É uma crítica ideológica à Semana. Mario de Andrade está próximo dos comunistas, e tomado pelo espírito jdanovista. Ele faz sua mea culpa, ou melhor, autocrítica, segundo todas as regras: denuncia seu individualismo enganado pela sereia burguesa. E a famosa passagem: “E se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma vez só pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito, fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz” [17].
Mário de Andrade censura os modernistas, e a ele próprio, por terem ficado apenas num combate cultural: “O engano é que nos pusemos combatendo lençóis superficiais de fantasmas. Devíamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura” [18].
Como imagina esse combate para si próprio, individualmente? Mario de Andrade sempre teve uma convicção sacrificial, presente em seu espírito desde a juventude, de que a arte deve servir a uma causa. Conclama, de modo romântico: “Se de alguma coisa pode valer o meu desgosto, a insatisfação que eu me causo, que os outros não sentem assim na beira do caminho, espiando a multidão passar. Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos da vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões” [19]. Ele pressupõe que as multidões são a dos movimentos populares revolucionários, certamente, mas a palavra multidão, no contexto de totalitarismos manipuladores das massas, torna-se muito ambígua. E, ao dizer que não é homem de ação, tem uma frase inapropriada: “Também não me desejaria escrevendo páginas explosivas, brigando a pau por ideologias e ganhando os louros fáceis de um xilindró” [20]. Sabemos como a ditadura Vargas perseguiu intelectuais, pondo-os na prisão, em terríveis condições, como testemunhou Graciliano Ramos em “Memórias do cárcere”. E Monteiro Lobato havia sido encarcerado um ano antes dessa palestra de Mário de Andrade. Esses louros não eram fáceis, está claro, e há como que um despeito oculto na formulação infeliz.
Sobretudo, Mario de Andrade, em sua palestra, não assinala o quanto o projeto moderno nacionalista foi cúmplice de um estado ditatorial. O quanto esse projeto, uma ideologia que unificava um “ser brasileiro” para além das condições sociais, para além das classes, “um povo todo irmão, sem distinção de raça e cor”, lembrando aqui a letra de um samba-exaltação, gênero criado e favorito sob o Estado Novo. Ele não poderia fazê-lo, pois isso destruiria todo o projeto nacionalista que construíra junto com a modernidade brasileira.