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Povos e lutas em revista

Editorial da primeira edição online da revista Ciência & Cultura: Bicentenário da Independência

A celebração do Sesquicentenário da Independência do Brasil em 1972 não traz boas recordações. Em pleno regime militar, atravessando uma das fases mais brutais da ditadura, o país era assombrado por censura, perseguições e violência. Tanto terror destoava do ufanismo indecente que tomou conta das comemorações orquestradas para aquele ano. Elas se espalharam pelo Brasil, regadas a investimento maciço de recursos do governo em encontros cívicos, festas e eventos esportivos de massa, como a Taça Independência e a Corrida da Pátria. Não foram esquecidas figuras carimbadas como D. Pedro I (cujos despojos vindos de Lisboa peregrinaram pelo país) e Tiradentes, rememoradas em cerimônias concorridas. Edições de livros, capas e matérias de revistas, assim como filmes épicos completaram o esforço de popularização do regime.

Bem longe desses holofotes, poucos se lembrarão que, na manhã de 6 de julho do mesmo ano de 1972, uma mesa redonda foi organizada na Universidade de São Paulo (USP) por iniciativa conjunta da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que realizava sua XXIV reunião anual entre 2 e 8 daquele mês, e da Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH), que promovia então o primeiro encontro do núcleo regional de São Paulo, entre 5 e 7 de julho. O tema da reunião dos historiadores não poderia deixar de ser outro, o Sesquicentenário da Independência.

A dobradinha foi idealizada por Shozo Motoyama, egresso do Instituto de Física, que passara a lecionar História das Ciências no Departamento de História da USP, e proposta à SBPC pelo núcleo da ANPUH, na pessoa do seu diretor Eurípedes Simões de Paula. A mesa, com o singelo título de “Um encontro entre Cientistas e Humanistas”, trazia entre seus debatedores Eduardo d’Oliveira França, José Reis, Ruy Galvão de Andrada Coelho, Oscar Sala, Ernst W. Hamburger, dentre outros. Também na plateia se misturavam historiadores (e historiadoras), filósofos, matemáticos, físicos, isto é, profissionais “de um e de outro campo da Ciência”.

Os físicos Ernst e Amelia Amburger durante reunião da SBPC, no Ceará
[Imagem: Acervo SBPC]

 

Sob a claustrofobia em que se vivia, os participantes reforçavam, nos acesos debates daquele dia, a importância da unidade para enfrentar os desafios contemporâneos. “Cientistas naturais e os cientistas do homem”, sintetizou Oscar Sala, precisam se reunir num “profundo campo de encontro”, demanda que era também uma crítica velada à reforma universitária que fatiou o ensino da ciência quatro anos antes. Outro consenso que dali saiu foi a recomendação da implementação de núcleos de história da ciência nos departamentos das universidades brasileiras, tema da comunicação de José Reis na mesa redonda.

O filósofo Oswaldo Porchat, da USP, um dos debatedores convidados, pareceu indicar a tarefa mais imediata: “Acredito que o contato de cientistas de diferentes campos pode permitir àqueles que presenciam compreender que é preciso combater sobretudo tudo o que pudesse da civilização moderna qualificar-se como recusa do bom e verdadeiro espírito científico”. Outra intervenção corajosa partiu de Ernst Hamburger, do Instituto de Física da USP, ao provocar: “seria de desejar que o século futuro, seja o século das ciências humanas e que os cientistas possam chegar a compreender a natureza da vida em sociedade e com isso criar subsídios para que o mundo aos poucos se torne um lugar melhor de se viver”. O físico sabia bem o que isso significava pois, há pouco mais de um ano (em dezembro de 1970), ele e sua esposa (a física Amélia Hamburger) haviam sido encarcerados e processados pelo governo militar.[1]

De certa maneira, a escolha da temática “Povos e Lutas” para o primeiro de uma série de três números da revista Ciência & Cultura, dedicados ao Bicentenário da Independência, inspirou-se nessas atitudes de combatividade. Afinal, assim como a oposição à ditadura militar instaurada com o golpe de 1964, os cientistas estiveram ao longo da história do Brasil invariavelmente comprometidos com a resistência em épocas de opressão. Fazendo um panorama superficial de algumas contestações mais célebres, havia mineralogistas dentre os participantes da Inconfidência Mineira, cientistas naturais foram suspeitos de conspirar contra a monarquia portuguesa na Sociedade Literária do Rio de Janeiro em 1794, José Bonifácio, o “patriarca da independência” tinha formação em química, juristas e médicos fizeram parte decisiva da luta abolicionista, engenheiros e professores estiveram nas fileiras do movimento tenentista. Os exemplos poderiam se multiplicar.

“Povos e Lutas” é uma escolha que assinala também a opção de desbotar o brilho solene da história e da memória da Independência com artigos, reportagens e entrevistas, nos episódios de podcast e de vídeos. Tal mobilização em 2022 de cientistas sociais, historiadores, ativistas e jornalistas comprometidos com a popularização do conhecimento buscou trazer à luz formas diversas de ações coletivas e individuais feitas por homens e mulheres, grupos indígenas, escravizados e libertos. Embora estejam presentes no imaginário do passado formador de nossa identidade nacional, quase sempre colaborando para ilustrar falsas imagens de docilidade nas relações raciais ou a pureza indígena, esses protagonistas poucas vezes foram encarados como agentes decisivos no processo de emancipação política.

Sem a participação dos povos, como sabem os leitores, ouvintes e espectadores que vem acompanhando a publicação do material recente da Ciência & Cultura, seria difícil imaginar a conquista da plena soberania brasileira na luta contra Portugal. Mas a independência, disputada de maneira ostensiva entre 1820 e 1825, não seria nem a primeira nem tampouco a última manifestação de protesto. Foi decerto a maior delas, capaz de superar as acentuadas diferenças regionais, equilibrar o peso dessas elites avessas ao centralismo exercido a partir da corte do Rio de Janeiro, berço da conspiração, calibrar as ideias constitucionais e acomodar temporariamente o caldeirão de demandas e expectativas dos diversos segmentos sociais rumo a um projeto político colossal.

Nas comemorações históricas é muito natural considerar os eventos como coisa singular. A celebração da independência em 2022 precisa escapar dessa armadilha. Sob certa perspectiva, ela foi um acontecimento que atravessou um caminho que vinha de longe, e para longe iria seguir, povoado de guerras, conflitos, revoltas e resistências. Desde a colonização, donatários reagiram aos primeiros governadores, povos originários se armaram para defender suas terras e suas tradições, escravizados se sublevaram, negociaram ou escaparam para os quilombos, soldados se amotinaram para receber pagamento justo, províncias ficaram independentes do poder central flertando algumas vezes com formas republicanas de governo, gente explorada em cantos remotos do país fundou arraiais para construir utopias, camponeses se mobilizaram para exigir acesso à terra, trabalhadores das fábricas paralisaram a linha de montagem.

Cada um desses acontecimentos tem dinâmicas próprias que embalam as ações coletivas em seu tempo. Cada contestação está pautada por circunstâncias ditadas pelas instituições, crenças, classificações sociais, ideias políticas e conveniências. Mas há algo que permanece, algo que permanece e ultrapassa a conjuntura da Independência e vence até mesmo o tempo relativamente curto percorrido pelo Brasil na longa história das tradições cívicas clássicas: a defesa legítima por direitos e valores humanitários universais e a importância da rua, da ocupação do espaço público para reivindicar e transformar lutas em conquistas.

Tal é o compromisso que inspirou a preparação desse primeiro número e que merece celebração permanente.

Notas
[1] Informações sobre a mesa redonda foram baseadas em ANPUH-Núcleo Regional de São Paulo, A independência: um debate. Revista de História. Ano XXIV, v. XLVI, n. 94, Abril-Junho de 1973, pgs 767-811; e ainda MOREIRA, Ildeu de Castro. A ciência, a ditadura e os físicos. Cienc. Cult. [online]. 2014, vol.66, n.4 [cited  2022-04-21], pp.48-53. . ISSN 2317-6660.  http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000400015.

 

Imagem de capa: Participantes da reunião da SBPC lotam o Tuca, o Teatro da Universidade Católica, em São Paulo
(Acervo SBPC)

FIGUEIREDO, Luciano. Povos e lutas em revista. Cienc. Cult. [online]. 2022, vol.74, n.1 [citado  2023-09-07], pp.1-3. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252022000100001&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0009-6725.  http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220001.
Luciano Figueiredo

Luciano Figueiredo

Luciano Figueiredo é professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e editor científico desta edição da Ciência & Cultura
Luciano Figueiredo é professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e editor científico desta edição da Ciência & Cultura
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