Ciência e divulgação científica nos trilhos do desenvolvimento nacional
Introdução
Neste texto, apresentamos brevemente a trajetória de José Reis (1907-2002), cientista ícone da divulgação científica brasileira. Com uma atuação eclética como cientista, gestor, divulgador e jornalista, ele participou da construção da ciência brasileira e contribuiu significativamente para o jornalismo e a divulgação científicos no país. Em homenagem à sua trajetória, o principal prêmio de divulgação científica e tecnológica do Brasil leva o seu nome.
Em 2022, completam-se 20 anos de sua morte. Tomamos essa efeméride como oportunidade de apresentar esse cientista e divulgador a um conjunto mais amplo de leitores. Acreditamos que o estudo da trajetória de José Reis apresenta uma importante visão dos caminhos percorridos pela ciência e pela divulgação científica no Brasil no século XX.[i]
Ciência e divulgação científica para o desenvolvimento nacional
O fim da Segunda Guerra Mundial e a corrida armamentista e espacial da Guerra Fria promoveram um contexto de valorização da ciência e tecnologia, com vultosos investimentos especialmente nos Estados Unidos. Esse movimento repercutiu nas ações da comunidade científica brasileira, dando impulso ao processo de institucionalização da ciência e abrindo novas possibilidades de divulgar os conteúdos e métodos científicos. José Reis foi um dos personagens que esteve no centro desses processos.
“Consciente de que as sociedades estariam cada vez mais dependentes do progresso científico, Reis defendia a urgência de uma política nacional de ciência e tecnologia que criasse um ambiente de respeito pela ciência.”
Reis foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em 1948, da qual foi o primeiro secretário-geral. Inspirada nas congêneres norte-americana e britânica, criadas no século anterior, a entidade era mais inclusiva do que a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e serviu como um espaço aglutinador da comunidade científica. Desde o início, a SBPC teve (e mantém) entre seus principais objetivos a difusão da ciência, com grandes eventos públicos e publicações como a revista Ciência & Cultura, da qual Reis foi um dos criadores e diretor. Igualmente buscava conscientizar o cientista de seu papel social. Nas palavras de Reis, “decidimos incluir entre as funções da SBPC a necessidade de se criar ou difundir tal consciência social entre os cientistas brasileiros. O que não entendo é um cientista desvinculado da sociedade e da política”. [1] Nas reuniões anuais da entidade, Reis também propôs o concurso Cientistas de Amanhã, voltado para jovens estudantes que se iniciavam no mundo da ciência (Figura 1).
Engajado na articulação de cientistas, na luta pela profissionalização da ciência e pelo fortalecimento do amparo à pesquisa, Reis foi um defensor da estruturação da carreira de cientista como servidor público em tempo integral, com estabilidade e reajustes salariais compatíveis. Esse princípio, embora sob constante ataque, prevalece até o presente momento, em que a pesquisa científica do país é em grande parte realizada em universidades e instituições públicas.
Um destaque particular deve ser dado à sua trajetória no jornalismo científico. No pós-guerra, os jornais abriram novos espaços para a ciência, alguns deles criando seções de ciências ocupadas por cientistas e incipientes jornalistas científicos. [2] Em 1947, José Reis foi convidado pelo então diretor do jornal Folha da Manhã (que deu origem à Folha de São Paulo), para escrever sobre questões gerais da administração. Seus textos iniciais refletiam interesses da comunidade científica, como questões relativas à aposentadoria e ao regime de tempo integral. No ano seguinte, Reis passou a escrever sua coluna dominical No Mundo da Ciência. Colaborando com o jornal até a morte, em 2002, Reis escreveu sobre diversos temas de ciência e tecnologia, destacando as pesquisas e os debates que circulavam no meio científico brasileiro e internacional e tornando-se o grande nome do jornalismo científico brasileiro. “Nos países em desenvolvimento”, escreveu: “o jornal funciona como escola de tudo, inclusive ciência. A divulgação adquire então, além da função atualizadora, a de ensinar ou recordar grandes princípios básicos e esclarecer o público quanto ao valor do trabalho científico”. [3] Reis também foi um dos articuladores da Associação Brasileira de Jornalismo Científico, criada em 1977, que teve um papel importante no processo de reconhecimento e profissionalização do ofício no país.
Figura 1. José Reis (à direita) contribuiu significativamente para a consolidação da ciência e da divulgação científica brasileiras
(Foto: Acervo COC)
No período entre 1962 e 1967, Reis assumiu a direção de redação do jornal Folha de São Paulo. Segundo o próprio Reis, tratou-se de um período conturbado com o golpe militar de 1964. Em um primeiro momento, os grandes meios de comunicação apoiaram e deram legitimidade ao regime ditatorial. Depois, sofreram com censura e perseguições. Em outras palavras, Reis esteve à frente de um dos principais jornais do país nos primeiros anos de ditadura.
Em seu ímpeto de “modernização autoritária”, o regime militar “foi, simultaneamente, destrutivo e reformador” com relação à ciência. [4] De maneira geral, comprometeu o desenvolvimento científico em várias áreas e prejudicou o status da pesquisa brasileira em nível internacional. A comunidade científica, que tinha dimensões pequenas na década de 1960, foi proporcionalmente um dos setores da sociedade mais atingidos. Por outro lado, o regime entendia o desenvolvimento científico e tecnológico como peça fundamental para a superação do atraso econômico e social do Brasil. Concomitantemente às perseguições, a ditadura investiu na pós-graduação, expandiu e reformou as universidades e repassou uma quantidade importante de recursos para ciência e tecnologia. [5]
Durante o período em que foi diretor de redação da Folha, Reis mobilizou a estrutura do jornal na cobertura, na organização e na premiação de feiras de ciência pelo estado de São Paulo, tornando-se um dos protagonistas no movimento de introdução da atividade no Brasil. O divulgador defendia feiras, clubes e concursos de ciências como importantes meios de estímulo de vocações científicas para jovens.
“Para Reis, a divulgação científica é uma atividade baseada no desejo e no dever de transmitir, em termos simples, de maneira ágil e objetiva, os princípios estabelecidos e as metodologias que a ciência emprega, com o objetivo de criar um ambiente de cultura científica para que o grande público cada vez mais se interesse pela ciência, apoie os investimentos no campo e participe ativa e democraticamente dos processos decisórios.”
Consciente de que as sociedades estariam cada vez mais dependentes do progresso científico, Reis defendia a urgência de uma política nacional de ciência e tecnologia que criasse um ambiente de respeito pela ciência, com valorização salarial, melhoria de infraestrutura, estabilidade das instituições científicas e formação de pessoal desde o ensino básico como forma de evitar a fuga de talentos tão importantes aos países em desenvolvimento. [6]
Para Reis, a divulgação científica é uma atividade baseada no desejo e no dever de transmitir, em termos simples, de maneira ágil e objetiva, os princípios estabelecidos e as metodologias que a ciência emprega, com o objetivo de criar um ambiente de cultura científica para que o grande público cada vez mais se interesse pela ciência, apoie os investimentos no campo e participe ativa e democraticamente dos processos decisórios. [7] Segundo ele, o cidadão precisaria “entender para poder julgar, para poder apoiar sinceramente a própria ciência e o seu desenvolvimento, para poder distinguir entre a verdadeira ciência e a falsa ciência ou as mistificações da ciência”. [8]
Muitos jornalistas científicos frequentemente se vêem no papel de entusiastas da ciência e dos cientistas como estratégia de ênfase da importância da ciência para o desenvolvimento cultural e econômico de seus países. José Reis não foi diferente. Com atuação consistente ao longo de décadas, no entanto, é possível constatar que sua visão de divulgação científica sofreu alterações, desde a defesa de que se deveria mostrar uma boa imagem da ciência até a necessidade de discutir controvérsias científicas e implicações socioambientais.
Considerações Finais
Os 200 anos de independência nos convidam, entre outras, à reflexão sobre qual lugar queremos para a ciência em nossa sociedade. Independentemente das respostas que daremos, é inegável o papel central que a divulgação científica deve ocupar diante dos desafios do nosso tempo.
A trajetória de cientistas e divulgadores como Reis nos oferece um panorama das formas com as quais se buscou consolidar a cultura científica em nosso país ao longo do século XX. Conhecer e refletir sobre sua longa e consistente trajetória na divulgação científica no Brasil – e desafios enfrentados – é uma fonte de inspiração para dar novas respostas às novas perguntas que surgem a cada dia.
Capa: Com uma atuação eclética como cientista, gestor, divulgador e jornalista, José Reis participou da construção da ciência e da divulgação científica brasileiras.
(Imagem: Acervo José Reis/ Fiocruz. Disponível em: http://josereis.coc.fiocruz.br/vida-de-um-cientista-polivalente/)
Notas
[i] Convidamos à leitura da biografia de José Reis (MASSARANI, L.; BURLAMAQUI, M.; ALVES, J. P. José Reis: caixeiro-viajante da ciência. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, 2018) e da coletânea José Reis: reflexões sobre a divulgação científica (MASSARANI, L., DIAS E. M. de S. José Reis: reflexões sobre a divulgação científica. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz/Casa de Oswaldo Cruz, 2018), que reúne alguns de seus principais textos sobre divulgação científica. O site <http://josereis.coc.fiocruz.br> também traz informações sobre Reis e seu acervo, sediado na Casa de Oswaldo Cruz, na Fundação Oswaldo Cruz. Para uma visão panorâmica sobre a história da divulgação científica no Brasil nestes últimos duzentos anos, pode ser consultado o artigo: MASSARANI, Luisa; MOREIRA, Ildeu de Castro. Science communication in Brazil: A historical review and considerations about the current situation. Anais da Academia Brasileira de Ciências (Online), v. 88, p. 1577-1595, 2016.