Falta de letramento científico é determinante para brecar o crescimento da divulgação científica
A importância e a necessidade da divulgação científica no Brasil e no mundo tornou-se consenso a partir da pandemia de covid-19. A grande imprensa passou a dedicar mais tempo às pautas de ciência, consequentemente o alcance das informações foi ampliado e um novo cenário se configurou nesta área. Mas, a despeito de grande parte da população brasileira ter conhecido somente nesta ocasião deste universo, a divulgação científica no Brasil começou antes da sua independência. Com a criação da Imprensa Régia em 1810, os primeiros textos de educação científica foram publicados. Os mais de 200 anos de comunicação da ciência, no entanto, não foram suficientes para formar uma população bem informada sobre estas questões.
“A informação sobre ciência não é popularizada no Brasil”, afirma Wilson Bueno, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), que há 40 anos fez o primeiro doutorado em Divulgação Científica no País. “Quase sempre as publicações são voltadas para as pessoas letradas, e não há esforço ainda de incorporar a maior parte dos cidadãos. O problema começa na raiz, ou seja, está no ensino básico, onde há uma defasagem enorme em termos de formação na área de ciências.”
Segundo a jornalista e artista Alicia Ivanissevich, editora no Instituto Ciência Hoje, a ciência e a tecnologia são ferramentas cada vez mais indispensáveis nas tarefas cotidianas, porém a maioria dos cidadãos ainda não consegue conectá-los com seu dia a dia. “Os instrumentos, processos e práticas que utilizamos na sociedade moderna – tarefas como atender ao telefone, usar o computador, sacar dinheiro com cartão magnético ou ouvir o prognóstico do tempo pelo rádio – baseiam-se em teorias e conceitos científicos e tecnológicos. Entretanto, grande parte da população brasileira não sabe apreciar o alcance desse conhecimento”, afirma em seu artigo “A missão de divulgar ciência no Brasil”, publicado na Ciência & Cultura.
Há mais de 200 anos
As primeiras divulgações voltadas para educação científica no Brasil foram publicadas pela Imprensa Régia a partir de 1810. Eram manuais para o ensino de engenharia e medicina, quase sempre traduzidos do francês para o português, segundo Ildeu de Castro Moreira, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente de honra da SBPC, e Luísa Massarani, coordenadora do Instituto Nacional de Comunicação Pública em Ciência e Tecnologia da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no artigo “Aspectos Históricos da divulgação científica no Brasil”, publicado no livro “Ciência e público: caminhos da divulgação científica no Brasil” (Casa da Ciência/UFRJ em parceria com o Museu da Vida/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2002). “No caso do Brasil, muito pouco se conhece sobre a história das atividades de divulgação científica aqui realizadas. Chega-se mesmo a imaginar que elas não existiram ou que foram insignificantes durante quase todo o período histórico brasileiro e que só após a década de 80 se poderia falar em uma divulgação científica digna desse nome”, afirmam os autores.
“A ciência e a tecnologia são ferramentas cada vez mais indispensáveis nas tarefas cotidianas, porém a maioria dos cidadãos ainda não consegue conectá-los com seu dia a dia.”
Esta história teve vários momentos, pontua Bueno. Inicialmente, era a própria comunidade científica divulgando para os pares. Com a Imprensa Régia e o surgimento dos primeiros jornais, como a Gazeta do Rio de Janeiro e O Patriota, esta divulgação se expande. Na segunda metade do século 19, havia no catálogo da Biblioteca Nacional cerca de 300 periódicos voltados para divulgação da ciência, de áreas como engenharia, ciências naturais e saúde. Do século 19 para cá, surgem algumas iniciativas relevantes de divulgação científica, incluindo as exposições, os museus (como Museu Nacional, no Rio de Janeiro; e Museu Emílio Goeldi, no Pará), as conferências e as fundações de fomento à pesquisa. “A partir daí podemos chamar efetivamente de divulgação científica voltada para o cidadão comum”, aponta Bueno.
A ciência era pauta nos primeiros jornais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, O Patriota e o Correio Braziliense (editado na Inglaterra). Em meados do século 19, com a revolução industrial na Europa, houve uma intensificação na divulgação científica, refletindo uma fase de muita credibilidade em relação ao progresso científico e técnico. Mas desde aquela época a pesquisa científica já era muito restrita a pessoas de elite ou a estrangeiros. As áreas de maior destaque eram astronomia, ciências naturais e doenças tropicais.
Em 1857, foi criada a Revista Brazileira – Jornal de Sciencias, Letras e Artes, que tinha aparência de livro. Com a ligação telegráfica do Brasil com a Europa por cabo submarino, em 1874, as informações passaram a chegar mais rapidamente, e as novas descobertas científicas se transformavam em notícia. Em 1876, foi lançada a Revista do Rio de Janeiro, também em formato de livro, onde 21% dos artigos publicados eram de divulgação científica, de acordo com Moreira e Massarani. Anos depois, em 1881, foi lançada a revista semanal Ciência para o Povo, onde mais da metade dos artigos eram sobre ciência, especialmente saúde e comportamento.
Entre 1886 e 1891, a Revista do Observatório, editada mensalmente pelo Imperial Observatório do Rio de Janeiro, inaugurou aqui uma apresentação gráfica mais moderna, com textos em colunas. Em 1873, surgiram as Conferências Populares da Glória, voltadas para divulgação científica com ampla diversidade de assuntos, entre eles o papel da mulher na sociedade. As conferências eram anunciadas nos grandes jornais. Duraram quase 20 anos.
Figura 1. Para melhorar a divulgação científica no Brasil é preciso investir na base da educação
(SBPC Vai à Escola reúne alunos do ensino básico nos campi da UnB. Foto: SBPC. Reprodução)
À medida que os jornais e revistas foram ganhando público, a ciência foi ganhando espaço nos grandes jornais porque muitas descobertas importantes começaram a acontecer. No século 20, faziam parte dos noticiários pautas sobre a corrida espacial, o DNA, Aids, biodiversidade, mudanças climáticas, e temas que permanecem até hoje, lembra Bueno. Em sua tese de doutorado, ele focou na corrida espacial e se aprofundou, por exemplo, nas coberturas da viagem do homem à Lua e da primeira mulher enviada ao espaço.
Novas tecnologias
O Museu Nacional e o Museu Paraense também exerceram papel importante na divulgação de ciência no Brasil. Em 1894, ficou instituído que deveriam promover o estudo, o desenvolvimento e a vulgarização da ciência.
Em 1916, foi criada a Sociedade Brasileira de Ciências, que seis anos depois passou a ser a Academia Brasileira de Ciências (ABC). Na sede da ABC, foi fundada a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, onde Albert Einstein proferiu seu discurso em alemão, traduzido para o português, em 1925. Einstein mencionou a importância da difusão cultural e científica pelo rádio. Em 1926, a visita de Marie Curie ao Brasil também teve ampla cobertura da imprensa. “Cresceu muito o interesse do cidadão”, diz Bueno. Houve um alargamento dos espaços na mídia e, mesmo com a precariedade do ensino de ciência, havia público.
“Falta ao cidadão comum o conhecimento de como a ciência funciona e como são os métodos científicos. Sem estes conhecimentos básicos, a interpretação será sempre de causa e efeito, por isso fica mais fácil acreditar em terraplanismos ou em teorias sobre dinossauros e campanhas antivacina.”
Em 1929, foi criada a revista Sciencia e Educação com objetivo de divulgar ciência articulada com a educação. Em 1937, nascia o Instituto Nacional do Cinema Educativo (Ince), dirigido por Roquette Pinto, voltado para produção de filmes curtos de ciência e educação. Nos anos 40, um dos pioneiros do jornalismo científico no Brasil, José Reis, começou a atuar. Considerado o pai da divulgação científica no Brasil, José Reis foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 1948, e participou do grupo que criou a revista Ciência & Cultura, em 1949.
Na TV, surgiu em 1979 o programa Nossa Ciência, do canal educativo do governo. Na Globo, foi criado o Globo Ciência em 1984. Também visando divulgar ciência, foi criada em 1982 a revista Ciência Hoje, da SBPC, que atingiu 70.000 exemplares por mês. Em 1986, nascia a revista Ciência Hoje das Crianças. No mesmo período, surgia o Jornal da Ciência, um informativo quinzenal. Outras revistas surgiram depois, como Globo Ciência (que virou Galileu) e Superinteressante.
Fake news
“Hoje estamos numa situação generosa, com podcasts, mídias sociais, e uma ampliação muito grande, mas a falta de ensino de ciência na educação básica não permite o letramento científico, e isso favorece o consumo de fake news”, avalia o Bueno. Em bons colégios ou em cursos superiores é possível promover o despertar para a ciência, mas junto às classes populares ou na imprensa comunitária isso não acontece, afirma. Segundo Bueno, falta ao cidadão comum o conhecimento de como a ciência funciona e como são os métodos científicos. Sem estes conhecimentos básicos, a interpretação será sempre de causa e efeito, por isso fica mais fácil acreditar em terraplanismos ou em teorias sobre dinossauros e campanhas antivacina. “A pessoa fica a mercê da espetacularização.”
Para Graça Caldas, professora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a educação também determina a forma como se difunde a ciência. É preciso investir na tríade educação, cultura e ciência & tecnologia, diz. “Se nós pensarmos em políticas públicas para estas três áreas, vamos voltar a melhorar o país.” Caldas também defende a democratização e popularização da ciência. “Nesse momento que estamos comemorando o bicentenário da independência do Brasil, acho que retomar esta discussão para além da pandemia é fundamental, para que possamos discutir a democratização da comunicação, para além da área de saúde.”
Figura 2. Capa da Revista Brazileira – Jornal de Sciencias, Letras e Artes, criada em 1857
(Reprodução)
Fernanda Sobral, professora emérita do programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e vice-presidente da SBPC, pontua que se a divulgação científica já era importante para levar a ciência para além das páginas das revistas acadêmicas e dos muros das instituições de pesquisa, com a pandemia ela se tornou ainda mais essencial para elencar os estudos relevantes e combater a desinformação. “Agora, estamos em um momento de recuperação da autoridade científica, e a divulgação tem um papel importante nisso. Tenho visto pessoas que não são da área científica discutindo sobre a vacina da Rússia, falando que não tem publicação sobre, por isso não é baseada em resultados e evidências científicas. Pessoas leigas estão conhecendo como se faz ciência”, apontou em reportagem para o Jornal da Universidade – UFRGS.
O que fazer?
“Nós caminhamos muito pouco, porque a divulgação científica aumentou muito, chegou à grande mídia, mas sempre localizada para pessoas de maior poder aquisitivo e mais letradas. As pessoas pouco letradas continuam desassistidas. O jornalismo científico tem o desafio ainda de chegar ao cidadão comum”, afirma Bueno. Para aproximar a ciência do cotidiano do cidadão e fazer chegar a ele as informações científicas, é preciso que haja ações junto às comunidades e aos sindicatos.
Segundo Maíra Baumgarten, professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Centro de Estudos e Difusão em Conhecimentos, Inovação e Sustentabilidade (CEDCIS), os processos de informação e comunicação pública baseados em conhecimento científico viabilizam e incentivam o debate público sobre ciência, tecnologia e saúde constituído por grupos sociais, mídias e redes sociais – e são essenciais para a democracia. “A comunicação pública é indicativa da qualidade das democracias, posto que obedecer e responder ao interesse público é uma exigência normativa a ser cumprida através da comunicação desenvolvida pelos governos e instituições estatais”, afirma em seu artigo “Ciência, informação e política na pandemia brasileira”.
Caldas defende a democratização da informação para promover o avanço da divulgação científica no Brasil. “Há uma série de frentes possíveis. Eu acho que a democratização do conhecimento começa pelos jovens, mas não apenas”, diz a pesquisadora. “A democratização do conhecimento passa pela percepção do papel da política, percepção da cidadania, percepção de que a política científica está junto com o ser político.”
“Para aproximar a ciência do cotidiano do cidadão e fazer chegar a ele as informações científicas, é preciso que haja ações junto às comunidades e aos sindicatos.”
Para a jornalista de ciência e professora, as políticas públicas são uma das questões mais importantes quando se trata de divulgação científica. “Precisamos retomar as políticas de divulgação científica, e os governos precisam retomar as políticas para C&T, porque são fundamentais, mas não apenas nas áreas prioritárias”, afirma. Segundo Caldas, para entender uma sociedade é preciso que haja acesso à informação de ciência, tecnologia, cultura e inovação, “inclusive para você se posicionar e participar de decisões nas questões científicas fundamentais, como as mudanças climáticas e as energias renováveis. Esta relação dá a real dimensão da importância da divulgação científica”.