Financiamento é essencial para manter a produção científica e o desenvolvimento do país, mas cortes frequentes ameaçam a ciência brasileira
“A gente precisa ter o made in Brazil”. Foi o que enfatizou o atual presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Evaldo Ferreira Vilela, durante a 74º Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ocorrida entre 24 e 30 de julho deste ano em Brasília (DF).
Na ocasião, Vilela ressaltou que ciência e tecnologia são centrais para o desenvolvimento de uma nação: “nenhuma nação conseguiu sua soberania, sua independência, sem ter um plano, uma missão a ser cumprida”, disse. “É parte da soberania ter uma base tecnológica implantada no seu país”.
Não apenas para o desenvolvimento, a ciência e a tecnologia são centrais para superar a crise sanitária, social e econômica experimentada atualmente pelo Brasil – e globalmente. No cenário mundial contemporâneo, a ciência, a tecnologia e a inovação (CT&I) são instrumentos fundamentais para o desenvolvimento, o crescimento econômico, a geração de emprego e renda e a democratização de oportunidades.
Porém, se por um lado, apostar em CT&I é o caminho para superar as crises atuais, por outro, a contínua restrição orçamentária é um desafio para o desenvolvimento científico nacional.
Financiamento
A ciência no Brasil evoluiu significativamente nos últimos 40 anos. A primeira metade do século XX assistiu a um movimento de valorização das pesquisas científicas. No período também surgiram as primeiras instituições de pesquisa sistemática e, um pouco mais tarde, as primeiras faculdades de filosofia, ciências e letras. Com o fim do Estado novo e a reabertura democrática, houve um crescimento da comunidade científica, assim como de sua força política e de seu papel social, levando à criação de novas instituições de pesquisa, agências públicas de fomento e sociedades científicas.
Figura 1. Mais de 90% da pesquisa brasileira ocorre dentro de universidades públicas. Das 20 instituições brasileiras que mais publicam, 5 são universidades estaduais e 15 federais.
(Reitoria da Universidade Federal do Ceará, por Viktor Chagas. Reprodução)
O aumento da produção científica está diretamente associado ao crescimento da pós-graduação e ao financiamento da pesquisa pelas agências governamentais de fomento. Entre políticas de financiamento à pesquisa, destaca-se o I Plano Básico de Desenvolvimento em Ciência e Tecnologia (PBDCT), de 1973, que foi um importante impulsionador da angariação de recursos para a ciência. Mais tarde foram criados apoios financeiros a algumas instituições, principalmente as públicas, para constituição da infraestrutura de pesquisa, com foco para o desenvolvimento econômico aliado as tecnologias.
O período entre os anos 1950 e 1970 marcou a construção de uma infraestrutura de pesquisa e ensino, com destaque para a criação de duas importantes agências de financiamento em 1951: o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
O CNPq é ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e visa fomentar a pesquisa científica e tecnológica e incentivar a formação de pesquisadores brasileiros. A entidade concede bolsas para a formação de recursos humanos no campo da pesquisa científica e tecnológica, em universidades, institutos de pesquisa, centros tecnológicos e de formação profissional, tanto no Brasil como no exterior.
Já a Capes, uma fundação do Ministério da Educação (MEC), pretende expandir e consolidar a pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) no país. Suas principais atividades incluem bolsas de estudo e pesquisa em instituições brasileiras e estrangeiras; avaliação de programas de pós-graduação; acesso e divulgação da produção científica e promoção da cooperação científica internacional. A entidade também fomenta a formação inicial e continuada de professores para a educação básica nos formatos presencial e a distância.
“A produção científica brasileira vive ameaçada por um cenário caracterizado pela descontinuidade nos financiamentos para a pesquisa, pelos ataques à imagem da universidade pública e pela frequente substituição de quadros.”
Em 1967 foi criada a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), empresa pública que visa atuar na formulação e indução do ambiente tecnológico brasileiro. Dois anos mais tarde, foi criado o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), no contexto do Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED), com a finalidade de apoiar financeiramente projetos e programas de desenvolvimento científico e tecnológico. A Finep estabeleceu-se como elo central da rede de inovação do país e passou a ser responsável pela gestão do FNDCT. A combinação dos fundos das duas entidades transformou-se desde então na principal fonte de recursos de fomento à ciência.
As Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (FAPs) também são importantes financiadores da ciência no país. As entidades induzem e fomentam a pesquisa e a inovação científica e tecnológica para o desenvolvimento de cada Estado, bem como o intercâmbio e a divulgação da ciência e da tecnologia. As principais FAPs do país são a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).
Desafios
Entre os anos 1950 e 1970 os governos federais construíram e mantiveram uma agenda de política de C&T que estabeleceu uma infraestrutura de pesquisa e de educação superior. Porém, com a segunda crise do petróleo em 1979 e a elevação da taxa de juros nos Estados Unidos, o país experimentou uma forte crise de endividamento externo e de crescimento da inflação, diminuindo sua capacidade de investimento. Nesse contexto de escassez de recursos públicos o governo federal criou, em 1997, a Lei 9.478 que, entre outras medidas, definiu um percentual de repasse dos royalties de exploração de petróleo ao MCTI para financiar programas de amparo à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico. E, por meio do Decreto n.º 2.851/1998, os referidos royalties foram destinados ao FNDCT e passaram a ser administrados pela Finep. Essas medidas levaram à criação do Fundo Setorial de Petróleo e Gás Natural, cujo sucesso levou à criação de 16 outros fundos setoriais e permitiu resgatar a capacidade de financiamento do FNDCT.
No entanto, desde sua criação, os orçamentos desses fundos têm sofrido contingenciamento sistemático por sucessivos governos federais. No começo deste ano, mais da metade dos recursos previstos no FNDCT para serem investidos em pesquisa foram “bloqueados” pela equipe econômica do governo, sob a justificativa de evitar um estouro do teto de gastos do orçamento federal. De um total de R$ 4,5 bilhões de recursos não reembolsáveis disponíveis no orçamento do fundo, apenas R$ 2 bilhões poderiam ser efetivamente empenhados — uma redução de 55% na principal fonte de recursos para a ciência no País atualmente. As universidades federais, que são as principais instituições de pesquisa do Brasil, também sofreram com um “bloqueio” de R$ 1,6 bilhão no orçamento do MEC.
“Dados compilados pela SBPC apontam que o orçamento de Ciência e Tecnologia do MCTI, que já vinha caindo desde 2016, despencou nos primeiros três anos do atual governo.”
Depois de um verdadeiro “cabo de guerra” com o governo federal, as sociedades científicas conseguiram vitórias significativas, revertendo esses bloqueios. No entanto, recentemente, o FNDCT sofreu outro ataque com a Medida Provisória (MP) n.º 1.136, que bloqueia (novamente) os recursos do fundo. Do total de R$ 9 bilhões previsto na Lei Orçamentário Anual (LOA) 2022 para o FNDCT, a MP autoriza a liberação de R$ 5,5 bilhões. Desse montante, metade se destina às operações de empréstimos da Finep, e a outra para o financiamento de programas, estratégias e fomento à CT&I. A ação coloca em risco mais de 70 ações e programas executados pelo MCTI, CNPq, Finep e por outras organizações sociais.
“Essa ação parece obedecer à lógica de impedir nosso desenvolvimento científico, com forte impacto (negativo) sobre nossa economia. É espantoso que um governo que diz priorizar a pauta econômica, até mesmo sobre a preservação das vidas de nossos compatriotas, cometa o erro grosseiro de não perceber que a economia atual depende fortemente do conhecimento rigoroso, em especial o da ciência, e da melhor formação dos nossos jovens, em particular por uma educação de boa qualidade. Mas nem ciência, nem educação estão entre as prioridades da atual administração”, apontou Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, em nota publicada no dia 31 de agosto.
“A situação já era crítica no começo do ano, quando tínhamos o orçamento que foi aprovado pelo Congresso Nacional, e ficou muito pior depois que o governo fez esses cortes”, afirma Emmanuel Tourinho, reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA). Esse dinheiro é usado para contratar serviços de limpeza e vigilância, pagar energia elétrica e auxílios para estudantes em vulnerabilidade socioeconômica, bem como comprar insumos básicos. “Isso nos coloca numa situação de fechar o ano com muitos pagamentos pendentes”, diz. (Figura 1)
Indo além
A falta de financiamento é vista hoje como uma das maiores ameaças à produção científica brasileira. Mais de 90% da pesquisa brasileira é realizada nas universidades públicas, que dependem de verbas do MEC e do MCTI, destinadas a agências como Capes e CNPq. Os cortes de recursos para essas instituições são, portanto, uma real ameaça à continuidade do progresso da ciência brasileira. “O governo coloca a culpa no teto de gastos, mas o corte no financiamento da ciência vêm acontecendo há muito mais tempo”, afirmou Helena Nader, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) para o triênio 2022-2025, durante bate-papo no canal do Valor no YouTube. “Basta observar a lei orçamentária anual: o percentual da ciência vem caindo, tanto em valores nominais, quanto em juros. O orçamento do CNPq, que era próprio, hoje é irrisório, por conta dos contingenciamentos, e acabou tornando-se dependente dos recursos que vem do FNDCT, que foi criado para outras ações. Ou seja, o cobertor é curto e ainda se disputa as migalhas”, concluiu.
Dados compilados pela SBPC confirmam essa informação, apontando que o orçamento de Ciência e Tecnologia do MCTI, que já vinha caindo desde 2016, despencou nos primeiros três anos do atual governo. Para este ano, a expectativa era de recuperação, graças à liberação de recursos do FNDCT, mas grande parte desse ganho acaba sendo anulada pelos frequentes bloqueio. (Figura 2)
Figura 2. Orçamento aprovado na Lei Orçamentário Anual (LOA) de 2002 a 2022
(Fonte: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC. Reprodução)
Porém, o problema vai além da simples necessidade de investimento. Para Ivan Emilio Chambouleyron, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp, não basta injetar recursos em programas que visam equipar alguns laboratórios considerados de excelência. Ele aponta que problemas enfrentados no desenvolvimento da ciência e no aproveitamento dos frutos da pesquisa científica são quase sempre problemas de recursos humanos – e isso inclui investir em educação, especialmente educação básica. “É essencial para que os recursos investidos na pesquisa possam, de fato, frutificar, tanto em relação à contribuição que a ciência dará para o avanço do conhecimento como em relação à melhoria da qualidade de vida de nossa população”, afirma em seu artigo “Desafios da pesquisa no Brasil: uma contribuição ao debate”.
“Durante sua reunião anual, a SBPC lançou o caderno ‘Projeto para um Brasil Novo’, que apresenta sugestões para candidatos à presidência da República de medidas que ajudariam a reverter a crise.”
“A educação é certamente uma questão crucial. Desde sempre trabalhamos para melhorar a formação científica nas escolas. A SBPC sempre se manifestou, e mesmo a BNCC incorporou apenas uma parcelazinha do que propomos, quando precisamos de uma revolução. As pessoas precisam ter uma percepção melhor do que é a ciência”, afirmou Ildeu de Castro Moreira, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente de honra da SBPC, em entrevista à Revista Ensino Superior digital.
E daqui para frente?
Durante sua 74.ª reunião anual, a SBPC lançou o caderno “Projeto para um Brasil Novo”, que apresenta sugestões para candidatos à presidência da República de medidas que ajudariam a reverter a crise. (Figura 3). O documento sugere aumentar para 2% o percentual do PIB brasileiro investido em CT&I, que hoje gira em torno de 1% enquanto a média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 2,7%. Além disso, os documentos recomendam o reconhecimento do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT) como a instância onde devem ser formuladas as políticas públicas para o setor; o aumento das bolsas de mestrado e doutorado e a valorização do MCTI, do MEC e de suas agências de fomento vinculadas. “Nós estamos numa situação bem crítica, a reconstrução vai ter que ser profunda porque o desgaste é enorme”, afirma Fernanda Sobral, professora emérita do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e vice-presidente da SBPC.
Figura 3. Durante sua 74a Reunião Anual, a SBPC lançou o caderno “Projeto para um Brasil Novo”, que apresenta sugestões para candidatos à presidência da República de medidas que ajudariam a reverter a crise atual
(Capa do caderno “Projeto para um Brasil Novo”. SBPC. Reprodução)
Outra estratégia tem sido aumentar a presença de cientistas nas bancadas do Congresso Nacional, como no caso do manifesto “Educação e Ciência para Reconstruir o País”, lançado também em julho, em que mais de 100 pesquisadores, ex-reitores e professores apresentam suas pré-candidaturas ao Congresso Nacional e Assembleias Legislativas. “Cada vez mais é necessário aproximar a ciência e a política”, afirma Sobral. “Eu acredito que a ciência mostrou seu valor agora na pandemia e acho que esse impacto vai afetar as campanhas e depois a atuação tanto do Executivo quanto do Legislativo”, conclui.