Discussão coloca em debate o que significa dedicar-se à carreira científica
Ao longo do ano de 1944, houve uma intensa e, em alguns momentos, dramática, troca de cartas entre três físicos, naquela altura, vivendo e trabalhando na Argentina. As idades deles variavam entre os 24 e 40 anos. Dois eram argentinos, o terceiro era apátrida. Havia amizade e respeito mútuo entre os três. Além desses sentimentos, havia uma profunda vontade de fazer com que a Argentina progredisse. Apesar de todas essas características, a correspondência entre eles foi, em muitos momentos, tensa, pouco amistosa.
As cartas entre Guido Beck, Mario Bunge e Ernesto Sábato dizem respeito ao sentido e à origem da expressão “dedicação exclusiva”. Para o primeiro, ela significava não ter outra atividade que aquela conscientemente eleita; sua origem estava, portanto, em uma decisão deliberada em favor de uma prática, a qual poderia sustentar a escolha feita. Para o segundo físico, a ciência, sozinha, seria incapaz de sustentar e justificar tal escolha, uma vez que sofre ingerências externas, como da política. Finalmente, para o terceiro personagem, ainda que concordando com a necessidade de dedicação a uma única atividade, essa corresponderia a algo que existiria nos seres humanos, as vocações. Assim, a escolha seria incapaz de resultar de uma deliberação racional.
Ao chegar à Argentina em maio de 1943, Beck sabia ser imprescindível atuar no ambiente para ser bem-sucedido. Os anos passados em universidades no hemisfério norte, ensinaram-lhe que, sem o apoio do ambiente à ciência e aos cientistas, qualquer esforço seria inútil. Para o ambiente funcionar a contento era preciso que a ciência incorporasse os valores corretos, o que se daria através da própria prática. Beck pretendia ensinar física moderna com a transmissão de valores para uma prática científica sã e duradoura. No ano seguinte, Beck envolveu-se em dois conflitos com jovens colegas devido a diferenças concernentes à adoção de critérios, que via como imprescindíveis e pelos quais se batia em público, para a prática da ciência. O primeiro deles envolveu Bunge; o segundo, Sábato. As causas dos conflitos foram as mesmas: Beck não aceitava as indecisões de seus colaboradores, fruto da incapacidade de conduzir a atividade profissional escolhida a partir de critérios e valores pertinentes. (Figura 1)
Figura 1. Guido Beck, físico nascido no Império Austro-Húngaro, emigrou para a Argentina em 1943, onde foi um dos fundadores da Associação Argentina de Física. Em 1951 mudou-se para o Brasil, onde trabalhou no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e depois na Universidade de São Paulo (USP).
(Reprodução)
Bunge foi apresentado a Beck por Sábato.[1] Feitas as apresentações, Beck falou sobre problemas do seu interesse e que poderiam ser investigados pelo jovem físico, dando início a uma relação de orientador-orientando.
Beck sabia das outras atividades de seu orientando além da pesquisa para a tese de doutorado; não desconhecia a atração que aquele sentia pela filosofia a ponto de criar um periódico na área (Minerva). A leitura do primeiro número levou Beck, em 30 de maio de 1944, a advertir o futuro filósofo da ciência:
“Caro Gauchito.
Recebi o primeiro número de Minerva. Você sabe que eu não esperava nada de bom desta empreitada, mas tenho que dizer que foi um golpe muito forte para mim, foi muito pior do que eu esperava. (…) Considerando este artigo como uma reação nervosa, reação contra as necessidades de self-restriction indispensável na investigação (liberdade?), tenho que lhe dizer abertamente que, no ambiente alemão anterior a 1933, um tal artigo teria impedido automaticamente a carreira universitária de seu autor. Em qualquer outro país, um tal artigo não pode dar outro resultado que ser um handicap muito grave.”[2]
Beck formulou suas críticas sem dar margem a incompreensões:
“(…) se trata de um artigo com afirmações completamente falsas, sem nenhum sentido científico, que permite a conclusão de que seu autor não sabe o que é um trabalho científico. É particularmente perigoso em um ambiente jovem, sem tradições e sem espírito crítico bastante forte. Se permanece assim, exige um repúdio público claro.”[3]
Em ambientes sem tradição, a publicação desses textos seria prejudicial. Evitar danos seria através de declaração pública em repúdio ao artigo publicado para não deixar dúvidas acerca do caráter do seu autor: “Mas não há outro caminho, sem caráter forte não há ciência. Lamento muito ter que dizer tudo isto e sinto, parcialmente, como um fracasso pessoal dos meus esforços feitos após a minha chegada a este país.”[4]
A empreitada editorial de Bunge corroborou algumas apreensões acumuladas desde que chegou à Argentina. Apesar das facilidades materiais para a vida na Argentina daquela época, Beck achava que os jovens daquele país não se dedicavam o suficiente à ciência. A ciência era uma atividade complexa que exigia dedicação integral. (Figura 2)
Figura 2. Mario Bunge, físico, filósofo da ciência e humanista argentino. Foi membro da American Association for the Advancement of Science e da Royal Society of Canada.
(Reprodução)
Um dia após a carta de Beck, Bunge respondeu ao seu orientador:
“Meu querido Dr. Beck:
Lamento muito que “Minerva”, em particular o meu artigo, tenham o impressionado tão mal. Na verdade, eu não esperava outra coisa de um inimigo declarado da filosofia (…). Parece-me inútil discutir estas coisas convosco: se fosse um artigo científico, eu me submeteria com prazer à sua opinião, mas se trata de um trabalho filosófico.”[5]
Bunge recusou o pedido e os argumentos de Beck, defendendo que o seu caso não contaminaria o ambiente científico, a ponto de afetar outros jovens:
“Lamento muito que vós considereis este artigo como um fracasso parcial de seus magníficos esforços feitos na Argentina. (…) convosco eu quis aprender física, mas não filosofia, nem métodos seguros e baratos para fazer uma “carreira universitária”, o que não me interessa.”[6]
Os termos usados pelo futuro filósofo são eloquentes. A carta de Bunge não ficou sem reposta. Escrita em 4 de julho, Beck manteve o tom cordial, ainda assim ele repetiu as razões pelas quais reagiu de forma dura ao artigo de Bunge, explicando as motivações para a crítica ao artigo sobre epistemologia. O incômodo foi provocado pela presença de valores equivocados. Os valores corretos não foram assimilados e, pior, Bunge não queria incorporá-los. A origem da sua reação é a falta de rigor de seu orientando com o seu próprio trabalho. A não assimilação dos valores corretos impediria a formação de uma comunidade, já que os vínculos entre os seus membros seriam débeis e sujeitos a pressões externas:
“Segundo nossos costumes e tradições, a direção de trabalhos científicos de um aluno implica a obrigação de defendê-lo sempre que seja atacado. Como posso vos defender, se reprovais os pontos acima mencionados? Vós me dizeis que não vos interessa uma tal defesa. Pode ser. Mas não se trata de sua obrigação, trata-se de uma obrigação pela qual eu sou o responsável.”[7]
Não seriam os alunos os responsáveis pela autorização para defendê-los; esta é uma obrigação dos professores, estes sabem quando e por que defender os seus alunos. Tal defesa não focaria os resultados científicos, ela diria respeito a valores e atitudes da prática científica. No último trecho de sua carta, Beck insiste na necessidade das escolhas acertadas:
“Insisto particularmente no fato de que a minha decisão não tem que ver com os trabalhos que vós realizastes sob minha direção. (…) se vós considerais a filosofia como mais importantes e como mais urgente que a física, eu considero como seu dever consagrar toda sua energia e todo seu tempo à filosofia. Mas trabalhando bem, com sumo cuidado e de maneira científica, não como em seu artigo.”[8]
Acima, sobressai a importância de as pessoas dedicarem-se integralmente às escolhas feitas, bem como a necessária adoção de bons parâmetros para avaliar os resultados alcançados. Em 6 de junho, Beck informava que não via condições de prosseguir como orientador de Bunge.[9] Três meses depois da interrupção da orientação, Bunge procurava Beck, pedindo para reconsiderar sua decisão. Seu pedido de armistício foi aceito.[10]
A comunidade física argentina era pequena nessa altura. Bunge, entre os jovens físicos, era considerado uma promessa. O rompimento da orientação por parte de Beck tornou-se pública. Bunge recorreu a dois matemáticos, Júlio Rey Pastor e Manuel Sadosky, a fim de saber se haveria algum erro técnico nas aplicações daquele “cálculo” à epistemologia.[11] Ambos os matemáticos escreveram a Beck, lamentando o rompimento da orientação. Rey Pastor não se satisfez em externar a sua contrariedade com o episódio. Ele procurou contribuir para a superação das diferenças entre Beck e Bunge. O matemático espanhol solicitou a Beck reconsiderar sua decisão e retomar a orientação. Talvez sem saber que Bunge já tinha feito o mesmo pedido, Rey Pastor escreveu a Beck, em 6 de outubro de 1944 uma carta em tom leve e amigo:
“O simpático Mario Bunge falou comigo, muito triste com a sua severidade, por quem sente o maior respeito e grande admiração.
Eu o fiz ver alguma confusão no famoso parágrafo booleano (…). Apesar de sua grande autoestima, reconheceu nobremente minhas críticas, que em parte coincidem com as suas, mas parece muito difícil, dados os costumes argentinos, obrigá-lo a fazer uma retratação pública. Há um antigo apotegma, que sempre serviu de padrão de conduta para os fidalgos castelhanos, segundo o qual, quando erram, a honra exige “sustentá-lo e não emendá-lo”. Essa regra me parece muito absurda, mas foi herdada por falantes de espanhol, que entendem a honra desta forma e é difícil ir contra os costumes de cada país, por mais absurdos que sejam. (…) atrevo-me a pedir-lhe que lhe dê a absolvição…”[12]
Vejamos, agora, o outro entrevero vivido por Beck em seus primeiros anos na Argentina. A segunda situação colocou-o em confronto com Sábato, que era ainda físico. (Figura 3)
Figura 3. Ernesto Sábato, romancista, ensaísta e artista plástico argentino, foi um dos maiores autores argentinos do século XX.
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Sábato, segundo ele mesmo, tinha, desde cedo, interesse por literatura, pintura, como também por ciências e matemática. Na escola, teve bons professores de física, os quais, aliados ao gosto em pensar de forma lógica e estruturada, fez com decidisse seguir carreira em física e matemática. O início da sua trajetória acadêmica foi exitoso. Sábato foi visto como uma promessa entre os jovens argentinos. Após estagiar em lugares como o laboratório Curie, em Paris (França), e o MIT, em Massachusetts (EUA), foi nomeado professor na Universidade de La Plata.[13]
Na segunda metade dos anos 1930, Sábato começou a pensar em se dedicar profissionalmente à literatura. O anúncio de que pretendia trocar a física pela literatura provocou reações, conforme registrou em sua autobiografia:
“Quando, no início da década de 40, tomei a decisão de abandonar a ciência, recebi duríssimas críticas dos cientistas mais destacados do país. O doutor Houssay negou-me o cumprimento para sempre. O doutor Gaviola, então diretor do observatório de Córdoba, que tanto me estimara, disse: ‘Sábato abandona a ciência pelo charlatanismo’. E Guido Beck (…) em uma carta lamenta-se dizendo: ‘Em seu caso, perdemos um físico muito capaz em quem depositamos muitas esperanças’.”[14]
Três importantes figuras do cenário científico argentino reagiram negativamente. As palavras de Sábato permitem inferir que a mais suave foi a do antigo assistente de Heisenberg. As cartas entre Beck e Sábato são claras para que se perceba que o primeiro não se opunha à escolha do segundo. Ao contrário, percebe-se nelas um apoio ao futuro autor de “O Túnel”. Nem poderia ser outra a sua atitude. Desejando convencer pelo exemplo, Beck reconhecia o direito de Sábato escolher a profissão que mais lhe agradasse.
Se o “entrevero” com Sábato fosse relativo apenas à escolha de uma profissão, o roteiro seria o mesmo da “guerra” entre Beck e Bunge. No entanto, houve um ingrediente a mais: os padrões de qualidade literária a serem respeitados. A questão dos critérios foi explicitamente mencionada por Beck e Gaviola. Eles não admitiam critérios “ambíguos” e “insuficientes”. Continuemos com o relato de Sábato sobre as reações dos seus colegas ao serem informados da sua decisão:
“Enfurecidos pelo que chamavam de minha pirraça, em reiteradas ocasiões o doutor Gaviola, junto a Guido Beck, foram até nosso rancho para tentar convencer minha mulher [Matilde] da loucura que eu estava cometendo, justo quando o país mais precisava de cientistas. E embora houvesse tentado explicar-lhes minha crise espiritual, e convencê-los de que minha verdadeira vocação era a arte, não conseguiram me entender, pois, para esses homens, a ciência é a criação suprema do homem. Guido Beck atribuía minha decisão à superficialidade sul-americana, e Gaviola disse que me perdoaria se algum dia eu conseguisse escrever algo como ‘A Montanha Mágica’.”[15]
Nesta passagem, há três elementos relevantes para o entendimento da personalidade de Beck e o tipo de ação que queira transmitir aos jovens, esclarecendo quais valores Beck gostaria de ver presentes na ciência. O primeiro dos elementos a ser destacado é a vocação. O segundo é a superficialidade da sua decisão. O último concernia à qualidade da literatura a ser produzida: era fundamental seguir exemplos de excelentes escritores.
Sábato abordou em cartas a sua crise espiritual. A primeira, de 3 de junho de 1944, foi escrita em tom franco e cordial. É inegável o respeito e a estima que o escritor argentino sentia pelo emigrado de origem austríaco, no que era correspondido. Sábato não via sentido em dedicar-se a uma atividade que não corresponde à sua verdadeira vocação. Sem o respeito a esta última, os resultados alcançados não seriam autênticos:
“Meu querido Beck:
[…]
“Conheço o seu pensamento a respeito e concordo totalmente com você que a física é uma coisa muito séria para ser considerada um hobby. […] A vocação [é] uma força interior que manda fazer algo, contra todas as dificuldades que a vida pode colocar à frente. Ou seja, é o completo oposto de facilidade e esforço mínimo. É a dificuldade e o esforço máximo. Você, por exemplo, não parou de trabalhar em suas teorias, apesar da guerra e dos campos de concentração; vive para a física, sonha com a física e até seria capaz de morrer pela física. Essa é a vocação. […] concordo plenamente com você que não dá para ser sério em nenhum ramo da atividade humana se não se dedicar totalmente a ele.”[16]
Além da cordialidade, também a franqueza com a qual Sábato descreve a sua situação merece ser considerada. Ele sabia que a sua decisão repercutiria nos esforços de Beck e Gaviola pela criação de uma comunidade em física. Sábato valorizava a amizade e o comportamento de Beck a ponto de solicitar que a sua decisão fosse avaliada com equilíbrio. Menos de uma semana depois de receber a carta acima, Beck redigiu sua resposta: “Recebi sua carta e agradeço sua confiança. Parece-me que nos entendemos muito melhor do que vós pensais (…). Nunca quis mais do que uma decisão acertada, seguida de um esforço completo.”[17]
Repete-se a defesa de uma decisão clara e inequívoca, capaz de provocar ações coerentes. Beck mostrava-se satisfeito por Sábato ter um propósito. Apesar de os dois concordarem em pontos relevantes, em outros, percebem diferenças sutis entre eles. Uma delas diz respeito à existência de vocações. Beck não dava importância a elas. Já Sábato acreditava que, sem o respeito às vocações, os seres humanos estariam condenados a viver de modo fútil e inútil. Beck é menos rígido neste ponto:
“Não conheço ‘vocações’, o que conheço são desejos e contradições entre elas. Você tem que escolher um, tem que cuidar desse desejo, tem que desenvolvê-lo, tem que lutar por ele e tem que matar todos os outros desejos contrários.”[18]
As palavras de Beck mostram que o seu tom foi distinto daquele que o futuro escritor lhe atribui na sua autobiografia. O físico austríaco não parou aí, emitindo sua opinião sobre a questão dos padrões adequados:
“Sacrificar um desejo forte é um processo complicado. Há que se aproveitar ao máximo esse sacrifício. Há que saber por que esse sacrifício é feito. No seu caso, como perdemos em vós um físico muito capaz, em quem tínhamos grandes esperanças, isso significa que há que seguir bons padrões na literatura. Sacrificar a física, tomando a literatura argentina como padrão? Não. Tomando a literatura castelhana como padrão (ou mais)? Sim.”[19]
Beck repete a posição de Gaviola sobre a importância de escolher excelentes padrões, necessários para avaliar corretamente os resultados obtidos. Os eventos de 1944 fizeram com que Beck não se iludisse sobre as dificuldades do trabalho ainda a ser feito, já que envolveram duas promessas da física argentina.
A análise da correspondência entre os nossos personagens evidencia que os três concordavam quanto à necessidade de dedicação exclusiva. Onde estaria, então, a raiz das disputas e diferenças entre eles? Arriscamo-nos a afirmar que o desacordo estava na (in)capacidade de a ciência ser capaz de dar vazão, independentemente da literatura e filosofia, àquilo que pode ser genuinamente qualificado como humano.
Agradecimentos
Antonio Augusto Passos Videira agradece as bolsas de pesquisa concedidas pelo CNPq (nº 306.612/2018-6) e UERJ (Prociência). Rafael Velloso agradece a bolsa de doutorado concedida pela Capes (nº de processo 88887.621975/2021-00).