Quando as disciplinas da ciência básica saem dos laboratórios, seus contornos tornam-se porosos pela força da transdisciplinaridade e de novas perspectivas coletivas que atravessam os campos da educação, saúde e meio ambiente.
Produto primeiro da curiosidade humana, chave para a compreensão do mundo, acervo do conhecimento para as próximas gerações. São várias as poéticas utilizadas ao se dissertar sobre as ciências básicas. Essa forma de classificar e compartimentar o conhecimento científico está no centro dos debates do Ano Internacional das Ciências Básicas para o Desenvolvimento Sustentável (IYBSSD 2022, na sigla em inglês). A proposta foi lançada por Michel Spiro, presidente da União Internacional de Física Pura e Aplicada (IUPAP) e abraçada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), embalando uma vasta agenda de atividades desde seu lançamento, em 8 de julho de 2022, até julho deste ano.
As ciências básicas, contudo, têm suas fronteiras borradas quando convergem e encontram com as vivências da educação, da saúde e do meio ambiente diretamente impactados pela realidade social de um país de renda média e grande desigualdade como o Brasil.
As ciências básicas na escola: da organização gradual e seriada à complexa e ininterrupta integração do conhecimento
Galáxias consideradas as mais antigas do universo são descobertas pela emissão de luz e radiação captadas por super telescópios; proteínas terapêuticas são ativadas por meio de vacinas feitas com material genético e complexos modelos de linguagem em Inteligência Artificial (IA) tornam-se acessíveis em telefones celulares. Ainda é válido explicar e ensinar esse complexo mundo a partir da separação dos conhecimentos de base lógica, apoiados na ideia de physis, dos pragmáticos, orientados pela ideia de techne?
Naomar de Almeida Filho, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), vê nessa distinção as marcas históricas da Revolução Industrial, de uma visão processual fatiada e linear da organização do trabalho e do mundo, que além de não representar mais o conhecimento contemporâneo, impacta negativamente a educação ao manter uma antiga ideia de complexificação gradual, na qual é preciso ensinar o mais simples primeiro para que o complexo venha somente numa etapa posterior. “Isto traz um desafio de como formar sujeitos capazes de pensar na complexidade e expõe uma certa mitologia, uma aplicação da visão linear como se fosse necessário às disciplinas serem tratadas em separado para depois se somarem. Só que não tem um depois, pois a integração do conhecimento acontece o tempo inteiro”.
“Isto traz um desafio de como formar sujeitos capazes de pensar na complexidade e expõe uma certa mitologia, uma aplicação da visão linear como se fosse necessário às disciplinas serem tratadas em separado para depois se somarem. Só que não tem um depois, pois a integração do conhecimento acontece o tempo inteiro.”
O titular da Cátedra de Educação Básica da USP localiza no arcabouço educacional brasileiro a origem dessa visão linear, num desenho curricular cujas matérias do ensino fundamental passam a se organizar em áreas no ensino médio. Na universidade, quando seria esperado um novo olhar sobre a especialização do conhecimento para a formação profissional, o mesmo processo reticulado e fragmentado é novamente reapresentado em cadeiras seriadas, presentes na maioria dos currículos dos cursos superiores. “O curioso a se pensar é que, pelo menos na organização curricular atualmente vigente no Brasil, é justamente na educação infantil em que se aplica essa indiferenciação necessária para o pensamento da complexidade, quando se estimula um pensamento mais rico e sofisticado”, reforça Almeida Filho.
Essa sofisticação e riqueza do pensamento científico, para Adriana Mohr, professora do Departamento de Metodologia de Ensino e Programa de Pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acontece quando os estudantes são apresentados a problemas, sejam eles cotidianos, práticos ou abstratos, e que, para solucioná-los, consigam ir além das fronteiras disciplinares, transformando informação científica em conhecimento. “O central é fazer o conhecimento significativo para aquele grupo de alunos e problematizá-lo. Ao trabalhar com problema de um esgoto em frente à rua, por exemplo, poder pensar esse mesmo esgoto e transformá-lo num modelo do mundo microbiano, num problema intelectual para os alunos, e assim discutir o que são microrganismos e articular outros conhecimentos, como compreender a distribuição territorial da cidade pelas redes pluviais. É pensar num problema intelectual para além do operativo”.
A pesquisadora destaca que essa articulação está na base do papel primeiro das ciências na formação de cidadãos mais críticos e precisa dialogar com as realidades e a diversidades do ambiente escolar. “Então, química, física e biologia, assim como geografia e história precisam ser trabalhadas no contexto da escola, onde se encontram sujeitos distintos, um ambiente muito rico em termos de diversidade, com crianças, jovens e adultos com outras expectativas, com outras realidades”, completa Mohr.
As ciências básicas na saúde e no meio ambiente: coletividade e solidariedade na produção de novos sentidos para a sociedade
Os conhecimentos em saúde e em meio ambiente quando em contexto social também exigem uma ciência que queira ser mais do que básica.
“Química, física e biologia, assim como geografia e história, precisam ser trabalhadas no contexto da escola, onde se encontram sujeitos distintos, um ambiente muito rico em termos de diversidade, com crianças, jovens e adultos com outras expectativas, com outras realidades.”
Yeimi Alzate López, antropóloga sanitarista e docente do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, coordena o Construindo Comunidades Saudáveis. O projeto de pesquisa em saúde e ambiente é integrado ao Periferias em Todos os Cantos (PETOC), articulação interdisciplinar e intradisciplinar de diversos projeto de extensão liderados pela UFBA e presente nas comunidades soteropolitanas. Ela e sua equipe realizam um trabalho há mais de cinco anos em duas localidades que, por meio de metodologias como mapeamento colaborativo, cartografia afetiva, memorial comunitário e inquérito sorológico conseguem produzir dados científicos consistentes e debater conceitos básicos da biologia e da saúde, como noções como risco, prevenção, vetor e transmissão de doenças infecciosas como a leptospirose. “Conseguimos ampliar a visão e perceber que, mesmo falando de saúde e ambiente, a gente ficava correndo atrás da doença. No entanto, as comunidades têm outras questões relacionadas à saúde que não são necessariamente as doenças, que são importantes e estão ligadas aos processos de vulnerabilização, às questões das desigualdades sociais e da formação das periferias”. (Figura 1)
Figura 1. Projeto de pesquisa em saúde e ambiente Construindo Comunidades Saudáveis, integrado ao Periferias em Todos os Cantos (PETOC)
(Foto: Nana Moraes. Reprodução)
Por motivos alheios à pandemia, mas sincrônicos a ela, as comunidades Alto do Cabrito e Pau da Lima foram escolhidas para um aprofundado de pesquisa participante com os princípios freireanos, envolvendo todas as ciências, incluindo as mais duras, como epidemiologia e ecologia. A mudança provocou um embate sério nas relações entre as disciplinas, e todos os participantes, de pesquisadores a mobilizadores comunitários, tiveram de fazer treinamentos e vivências em Educação Popular em Saúde. Para López, foi a partir dessas escolhas e tensões que os “cliques” sobre as melhores formas de se debater ciência aconteceram. “Não adianta ficar empurrando conteúdo, por exemplo, se uma questão é da ciência básica, pois assim não vão ter interesse. Quando a gente falava de mapeamento colaborativo, parecia uma coisa de brincadeira, isso já despertou o olhar. Depois, a gente explicou que aquilo era uma técnica de pesquisa, que eles estavam sendo pesquisadores com a gente, entrevistando as pessoas da comunidade, tornou-se uma brincadeira legal e foram chamando outros jovens. É uma forma de as pessoas voltarem a ter um sonho da ciência, porque a ciência foi ficando excludente, a educação foi ficando distante de muitas realidades. Então, as pessoas já não sonham mais com a ciência”, conclui.
Trazer as experiências da comunidade para o debate da ciência também é um movimento vivenciado nas ações em meio ambiente, como aponta Celso Sánchez, atual presidente da Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (Abrapec). Biólogo de formação e doutor em educação e com atuação nas temáticas do meio ambiente, o pesquisador vai além e reivindica uma mudança de compreensão epistêmica e de protocolos nos processos metodológicos da produção acadêmica para uma ampla participação de quilombolas, lideranças comunitárias, indígenas e movimentos sociais como integrantes de copesquisa, coautoria, colaboração e composição das bancas. “Isso significa uma mudança paradigmática bastante significativa. Não é fácil, não é um projeto simples, mas estou absolutamente convencido de que é fundamental, se a gente quiser de fato fazer com que a ciência básica seja um espaço de reverberação e de sentido”, defende Sánchez. (Figura 2)
Figura 2. Quilombolas, lideranças comunitárias, indígenas e movimentos sociais devem ter ampla participação como integrantes de copesquisa, coautoria, colaboração e composição das bancas.
(Foto: Emerson Silva / Governo do Tocantins. Reprodução)
Independentemente da radicalidade da proposta, o que Yeimi Lopéz e Celso Sánchez sinalizam é a centralidade de uma perspectiva transdisciplinar e coletiva – para além dos tradicionais pares – no fazer científico. Esta forma de compreensão vai em direção contrária ao individualismo e empreendedorismo hegemônicos, como analisa Naomar de Almeida Filho. “A inter-transdisciplinaridade é o grande desafio e precisa ser tratada como uma estratégia de transversalidade. As discussões sobre essa forma de envolver os conhecimentos são debatidas no campo da educação como se fossem uma referência meramente individual. Só que essa interpretação tem a premissa equivocada, de que a promoção de uma prática inter-transdisciplinar trata de uma síntese individual, enquanto essa é uma premissa que precisa articular as ideias de coletivo e solidariedade”, reforça, defendendo a incorporação de tais práticas como a ideia de ciência, entendida como um modo de produzir conhecimento, dentre vários outros, e não como um conjunto maior ou menor de conteúdos e conclusões estanques e segmentados.
“As comunidades têm outras questões relacionadas à saúde que não são necessariamente as doenças, que são importantes e estão ligadas aos processos de vulnerabilização, às questões das desigualdades sociais e da formação das periferias.”
Para que o conhecimento científico produza sentido para a sociedade, faz-se necessária a superação das divisões tradicionais do conhecimento, entre básicas e aplicadas, ou duras e leves, ou exatas, agrárias, da natureza e humanidades. Acima de todas as segmentações, precisamos de uma ciência cidadã.
Capa. Um dos objetivos do Ano Internacional da Ciência Básica para o Desenvolvimento Sustentável é promover a educação e a formação científica.
(Foto: Divulgação/Agência Brasil)
DIAS, Bruno Cesar. Fronteiras borradas: quando a ciência básica encontra a realidade social brasileira: quando as disciplinas da ciência básica saem dos laboratórios, seus contornos tornam-se porosos pela força da transdisciplinaridade e de novas perspectivas coletivas que atravessam os campos da educação, saúde e meio ambiente. Cienc. Cult. [online]. 2023, vol.75, n.2 [citado 2023-10-16], pp.01-04. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252023000200010&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0009-6725. http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230026.