Anita Benite capa

“Ser uma cientista negra é travar uma batalha que é ideológica e se afirmar enquanto produtora intelectual”

Confira entrevista com a química e ativista Anita Canavarro Benite, professora do Instituto de Química da UFG

 

Quando era criança, Anna Maria Canavarro Benite viu sua mãe improvisar um cano para fazer a água de um poço chegar até a casa sem encanamento. Não foi um fato inédito: sua mãe, que era professora de ciências mesmo sem ter ensino superior, sempre buscava soluções criativas, modificando os objetos para solucionar os problemas do dia a dia. Foi assim que despertou seu interesse pelas transformações dos materiais – e pela ciência. Seguir a carreira acadêmica parecia um sonho distante para uma menina negra e pobre da baixada fluminense. Mas Anita, como é conhecida, não desistiu: cursou doutorado e mestrado em Ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e hoje é professora do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás (UFG). Destacando que o estudo faz promoções em termos de mobilidade social na vida de pessoas negras e pobres, Benite é ativista do Grupo de Mulheres Negras Dandara no Cerrado e coordenadora do Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão (LPEQI). “Nós produzimos uma ciência que é localizada e que precisa sim ter compromisso com as relações sociais, sejam de gênero ou de raça. A ciência não é apartada de uma sociedade”, afirma. Além disso, idealizou o Projeto Investiga Menina, que busca inspirar alunas negras a seguirem carreiras nas áreas exatas e científicas, e instituiu, em 2009, o Grupo de Estudos sobre a Descolonização do Currículo de Ciências (Coletivo CIATA), cujas ações desenvolvidas renderam o Diploma de Reconhecimento por ação cotidiana na luta pela defesa, promoção e proteção dos direitos humanos em Goiás (2013) e Honra ao Mérito pela Assessoria Especial para Direitos Humanos e Cidadania (2014). “Ser uma pesquisadora negra é um ato contra-hegemônico, é um ato de resistir, é um ato de produzir dentro dessa lógica pensando em projetos coletivos de libertação para quem você de fato representa”, conclui.

Confira a entrevista completa!

 

Ciência & Cultura – Sua formação é em Química. Quais desafios que enfrentou – e que a maioria das mulheres enfrenta – em uma área tradicionalmente constituída por uma maioria masculina?

Anita Benite – Eu sou química, fiz bacharelado e licenciatura em química, e mestrado na área de ciências. Eu trabalhei com bioinorgânica medicinal com desenvolvimento em silício de protótipos para candidatos a fármacos. Quando estudei esta área, há 15 anos, era uma área de ponta e permanece sendo até hoje porque a modelagem otimiza processos de criação de novos produtos. Os desafios são os mesmos para todas as mulheres que trilham uma carreira que não está ligada à manutenção do cuidado. Portanto, nós precisamos provar nossa capacidade, nossa criatividade, nosso empenho laboral o tempo todo. Temos que provar que somos capazes, gritar para se fazer ouvir. A falta de representatividade feminina nessas áreas as tornam também menos receptivas e menos empáticas. Com as nossas presenças, precisamos nos afirmar e afirmar nossas produções e nossa inteligência o tempo todo.

 

“Ser uma cientista negra é travar uma batalha que é ideológica e se afirmar enquanto produtora intelectual frente ao recrudescimento do racismo por sua própria manifestação epistemicida curricular ao não se ver no currículo, não se ler nos artigos, não encontrar alguém que tenha produzido e que seja igual a você.”

 

C&C – Como foi para você, enquanto mulher negra, se estabelecer como uma pesquisadora renomada nesta área?

AB – Ser uma pesquisadora negra significa basicamente entender uma questão: a ciência condicionou o racismo. Essa “condição mítica” de que negro não tem alma e por isso pode ser escravizado recebeu uma justificativa racional da ciência. A psicologia, a medicina, o direito, a biologia, a química constroem esse arquétipo da justificativa racional. Eu fui presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), uma associação que congrega mais de quatro mil pesquisadores, de 2016 e 2018, além de secretária-executiva de 2018 a 2020 e editora chefe da revista de 2020 a 2022. A ABPN é uma associação científica que assume a categoria raça como critério e é composta em sua maioria por mulheres negras. Pensando nisso, ser uma cientista e pesquisadora negra significa reconhecer a interdição de acesso a negros e negras nas esferas de poder. E reconhecer que isso acontece por uma configuração da própria sociedade moderna. Essa interdição nas esferas de poder é bem recente. Ela que inaugura a dicotomia entre estado-nação e subalternizado, entre colonizadores e colonos, entre ser racional e ser selvagem. Tudo isso é produto de uma estrutura social que se repete nas diferentes configurações de sociedade, portanto as pesquisas e as sociedades científicas em si não estão alheias a isso. Então, ser uma pesquisadora negra é um ato contra-hegemônico, é um ato de resistir, é um ato de produzir dentro dessa lógica pensando em projetos coletivos de libertação para quem você de fato representa. Assim, ser uma cientista negra é travar uma batalha que é ideológica e se afirmar enquanto produtora intelectual frente ao recrudescimento do racismo por sua própria manifestação epistemicida curricular ao não se ver no currículo, não se ler nos artigos, não encontrar alguém que tenha produzido e que seja igual a você. Pensando em um currículo intercultural, em um currículo que se comprometa com quem nós somos, que nos represente – e tendo em mente que a pesquisa no Brasil é produzida dentro das instituições de ensino (96% do que produzimos de conhecimento científico é feito dentro de instituições de ensino superior) – então nós estamos falando ainda de travar uma batalha que é também curricular.

 

C&C – Vivemos um momento no qual o conservadorismo ganha força e os direitos das mulheres, conquistados com muita luta, são atacados. Como você vê este momento histórico? Quais os caminhos para minimizarmos os impactos deste ataque conservador?

AB – Se vivemos um momento em que o conservadorismo ganha força e o direito das minorias são atacados, por outro lado, este momento histórico também é o momento revisional que questiona a própria natureza da ciência. Nós observamos o que aconteceu na histórica recente: o retrocesso com a pandemia e todos os males que ela nos trouxe, sobretudo quando uma direita conservadora ataca a ciência. Então, em pouco tempo nós assistimos no Brasil alguém que estava à frente do país conseguindo dar tanto demérito às nossas produções científicas, causando um dos maiores impactos no calendário de vacinação de nossas crianças. Se por um lado o conservadorismo tenta avançar no que diz respeito ao controle de corpos, é esse mesmo o conservadorismo que ataca a ciência, que questiona e faz o cientista se questionar se esse modelo de fato está conversando com quem nós somos. Porque se esse modelo não dialoga, não atende esses grupos. Assim, por outro lado, a ciência está se questionando nesse exato momento como fazer para estabelecer esses vínculos. Porque é preciso questionar esse modelo de ciência que se diz neutro, esse modelo centrado nas produções de homens brancos europeus. O que ela fez para perder a credibilidade em tão pouco tempo passa por uma discussão de diversidade como quesito de inovação dentro do modelo científico. Esse modelo pobre, produzido a partir de visão de sujeito universal, se mostrou ineficaz – sobretudo no diálogo com a própria população, com quem paga impostos para que essa ciência seja produzida. Então incluir diversidade dentro do modelo científico significa aumentar a resposta do modelo. O modelo universal é pobre, é dogmático. Um modelo que inclua diversidade, por outro lado, aumenta as possibilidades de diálogo dessa ciência com mais pessoas através da promoção de modelos mais robustos, que seriam os modelos que fornecem respostas maiores para os problemas da humanidade. Mas está nas próprias relações sociais e essas relações se estabelecem também dentro de mecanismos de produção de ciência e sobretudo na educação.

 

“Um modelo que inclua diversidade, por outro lado, aumenta as possibilidades de diálogo dessa ciência com mais pessoas através da promoção de modelos mais robustos, que seriam os modelos que fornecem respostas maiores para os problemas da humanidade.”

 

C&C – Por outro lado, há também uma luta cada vez maior pela diversidade e pela inclusão. Quais os benefícios dessa diversidade na ciência e na educação?

AB – A educação científica tem um papel primordial de estreitar os laços entre o que a gente produz dentro do conhecimento científico e a sociedade brasileira. Nós vivemos numa sociedade que taxa impostos regressivamente, então os produtores e os gestores dos processos pagam pouco e quem compra as mercadorias de fato, que é a maior parte da população – sobretudo a população negra – paga muito mais. E são esses impostos que garantem a manutenção da ciência brasileira. Por isso é preciso que encurtemos esses laços para alcançar esse diálogo e para de fato reverberarmos aquilo que fazemos. Eu penso muito no que passamos agora tão recentemente, com duros ataques à nossa existência e a sociedade brasileira deixando de reconhecer a credibilidade do que a ciência faz. Isso tem um efeito até hoje na saúde e na qualidade de vida da nossa população. Então, a educação científica tem um papel primordial nesse lugar de combater a ignorância, de combater o dogma, de combater esse adoecimento que coloca a ciência brasileira num lugar ruim, num lugar de demérito. Só através dessa educação é que conseguiremos minimizar um pouco dos males causados.

 

C&C – Como a universidade pode contribuir para essa discussão sobre diversidade, inclusão e mesmo sobre democracia?

AB – A universidade, por sua vez, deve contribuir para essas discussões inserindo sobretudo questionamentos sobre esse modelo único e neutro de produção de ciência. É nesse momento que a universidade brasileira precisa dar um salto e discutir as relações. Nós não produzimos ciência com mecanismos isolados, de maneira isolada. Não produzimos ciência sem levar em conta a própria existência do cientista e os universos sociais políticos e econômicos que permeiam essa existência. Nós produzimos uma ciência que é localizada e que precisa, sim, ter compromisso com as relações sociais, sejam de gênero ou de raça. A ciência não é apartada de uma sociedade. Sobretudo por que vivemos num país racista. Se nós vivemos numa sociedade adoecida, a ciência é um microcosmos que vai repetir esse adoecimento. Então, nesse lugar do que é discutível, do que é dinâmico, do que está em construção, precisamos inserir essa contribuição, questionando modelos neutros descomprometidos com quem nós somos.

 

“A educação científica tem um papel primordial nesse lugar de combater a ignorância, de combater o dogma, de combater esse adoecimento que coloca a ciência brasileira num lugar ruim, num lugar de demérito.”

 

C&C – O que fazer, em termos de políticas públicas, para diminuir a violência e aumentar a inclusão de mulheres, negros, indígenas, população LGBTQIA+ no ensino superior e na ciência (assim como em outros setores)?

AB – Em termos de políticas públicas, penso que precisamos garantir editais não só de acesso, mas também de permanência. Precisamos garantir editais de manutenção de bem-estar das minorias – que, quando juntas, são maioria de fato no ensino superior e na ciência. Precisamos garantir paridade nos comitês de avaliação dentro das agências de fomento, garantindo diversidade nesses comitês. Precisamos garantir editais que tenham o recorte de reserva de vagas para mulheres, para negros e negras, para populações indígenas, para terem acesso a projetos que estabeleçam de fato relações com as discussões sobre essas relações sociais. E é dessa maneira que nós vamos poder avançar um pouco mais.

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