Confira entrevista com Elizabeth Macedo, professora do Centro de Educação e Humanidades da UERJ
Uma das principais pesquisadoras do campo dos Estudos Curriculares no Brasil, Elizabeth Macedo vem discutindo incansavelmente os caminhos da educação brasileira. Nos últimos anos, a professora do Departamento de Estudos Aplicados ao Ensino, do Centro de Educação e Humanidades da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), tem estudado os efeitos das recentes políticas curriculares e educacionais sobre os sujeitos, especialmente, dos chamados grupos minoritários. “Quando esses grupos saíram do lugar de silenciamento em que os colocamos por séculos, tivemos contato com cosmologias que podem nos ajudar muito a re-entender e re-encantar nossa ciência e nossa educação”, afirma. Além de desconstruir estratégias postas em ação para fixar a alteridade, suas pesquisas visam compreender como alunos e professores buscam se constituir em um espaço tão normalizado como as escolas. “Mesmo concepções que valorizam o conhecimento do aluno o tomam apenas como ponto de partida”, explica. Coordenadora do grupo de pesquisa “Currículo, Cultura e Diferença” do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Macedo celebra os avanços obtidos na questão de políticas públicas para ajudar na redução de desigualdades sociais, mas enfatiza que ainda há muito a se fazer – e refazer, posto que muito foi descaracterizado. A pesquisadora também destaca que educação não reduz desigualdades sociais: “esta é uma falácia economicista que lhe imputa um fracasso anunciado: efetivamente, o fracasso da gestão econômica que se transfere à escola”, enfatiza.
Confira a entrevista completa!
Ciência & Cultura – Como a diversidade cultural de quilombolas, extrativistas, povos indígenas e outras comunidades tradicionais do Brasil contribui ou poderia contribuir para o desenvolvimento da Educação e da pesquisa científica?
Elizabeth Macedo – Temos algumas respostas possíveis. Essas experiências têm “conteúdos” que, portanto, podem ser trabalhados na educação, como informam à ciência. Na minha visão, já temos sido mais inclusivos em relação a esses “conteúdos” tanto na educação quanto na ciência em relação há algumas décadas. O problema é que, com frequência, incluímos os “conteúdos” e, ao mesmo tempo, desvalorizamos os sistemas de pensamento em que eles estão inseridos. No caso da pesquisa científica, por exemplo, muitas pistas vieram e vêm das relações cotidianas que as comunidades estabelecem com a natureza. Essas pistas são tratadas segundo a lógica da ciência que, em muito, se erige na desvalorização dos saberes comunitários. Isso acaba refletido na escola, onde o conhecimento acadêmico é colocado em oposição ao conhecimento cotidiano. Mesmo concepções que valorizam o conhecimento do aluno, o tomam apenas como ponto de partida. Por isso entendo que a contribuição mais potente da diversidade cultural não está vinculada aos “conteúdos” das experiências, mas à possibilidade de aprender a borrar limites entre o saber científico e o comunitário, entre natureza e cultura, entre humano e mundo. Já desde algum tempo muitas teóricas feministas e queer têm buscado romper essas polarizações e dicotomias, pondo em questões narrativas que a Modernidade foi produzindo em prol da valorização da ciência. Recentemente, vêm sendo traduzidos alguns livros de Donna Haraway, um dos nomes mais importantes na defesa da necessidade de borrar fronteiras, que são muitas em nossa formação: entre natureza e cultura; entre homem, mundo natural e máquina; entre conhecimento e afetos; e por aí vai. Não se trata de juntar ou articular os polos, mas buscar outras formas de conceber nossa relação com o mundo. Dito de forma ainda mais radical, conceber as relações que nos produzem, assim como ao que chamamos de mundo.
“A contribuição mais potente da diversidade cultural não está vinculada aos ‘conteúdos’ das experiências, mas à possibilidade de aprender a borrar limites entre o saber científico e o comunitário, entre natureza e cultura, entre humano e mundo.”
C&C – Como a participação desses grupos vêm mudando uma visão “tradicional” de ciência?
EM – É preciso reconhecer que a visibilidade que essas comunidades vêm conquistando com muita luta política pelo direito de simplesmente existir colocou o universalismo da ciência ou do erudito, que se transforma em conteúdo escolar, em xeque. Ao ecoar, o grito dessas outras formas de existir no mundo torna qualquer pretensão universalista uma impossibilidade em si. Não tem mais volta e os genocídios que assistimos nos últimos anos, a eclosão do extremismo de direita, são a tentativa desesperada de voltar a um mundo impossível. Por outro lado, quando esses grupos saíram do lugar de silenciamento em que os colocamos por séculos, tivemos contato com cosmologias que podem nos ajudar muito a re-entender e re-encantar nossa ciência e nossa educação. E aí não se trata de “conteúdos”, mas de perspectivas onto-epistemológicas outras. Pensar o mundo de forma relacional, uma novidade na discussão teórica ocidental, por exemplo, é uma característica muito forte de cosmologias indígenas, de povos da floresta, da cultura negra e quilombola. Como e quando essas perspectivas vão entrar ou “tomar de assalto” a escola e a ciência é difícil prever, até porque são muitas as violências políticas que temos visto desde que essas populações começaram a conquistar reconhecimento e direito de existir. Ao mesmo tempo, trata-se de um movimento em curso – que possivelmente sempre esteve aí, mesmo que sufocado – que dificilmente poderá ser parado. Se a pesquisa científica quiser se manter relevante, ela precisa, como vem fazendo, romper com o antropocentrismo, a ideia de uma ciência que explora, para o bem do humano, o mundo/natureza. Quando ela faz isso, se aproxima das cosmologias que desprezou para constituir sua excelência. Se a escola quiser se manter relevante, ela precisa recuperar-se como lugar de relacionalidade com o outro (não apenas humano) e, possivelmente, irá se aproximar, cada vez mais, das formas de educar valorizadas pelas comunidades “tradicionais”.
C&C – Que balanço pode ser feito atualmente das políticas públicas brasileiras direcionadas à superação das desigualdades sociais no Brasil?
EM – Esta pergunta ajuda a diminuir o perigo de uma leitura muito efusiva do que eu disse anteriormente, mesmo que eu tenha chamado a atenção para as violências a que os sujeitos “outrificados pela norma” são submetidos cotidianamente. Acho que é desnecessário dizer que não houve políticas para redução de qualquer desigualdade no Brasil dos últimos anos ou, ainda pior, houve um desmantelamento das poucas políticas que a sociedade brasileira tinha conseguido erigir nas duas últimas décadas. Não considerando os últimos anos, podemos talvez dizer que fizemos um importante trabalho no sentido de botar em ação políticas públicas que ajudaram na redução de desigualdades sociais. Tivemos políticas importantes para as populações de baixa renda que, se não necessariamente reduziram o tamanho da desigualdade, criaram condições de vida mais dignas para uma parcela mais pobre da população. Nossa desigualdade social é enorme, de modo que muito ainda precisa ser feito (mesmo antes do ultraliberalismo recente). E a desigualdade não é apenas social, o Brasil é estruturalmente racista, oligárquico, machista, homofóbico. O muito que precisa ser feito não depende apenas de governos, ainda que uma maior representatividade da diversidade da população no sistema político e jurídico seja imperativa. Há que se considerar também que nosso lugar na geopolítica mundial é outro elemento que dificulta a efetivação de mudanças estruturais necessárias.
“A visibilidade que essas comunidades vêm conquistando com muita luta política pelo direito de simplesmente existir colocou em xeque o universalismo da ciência ou do erudito que se transforma em conteúdo escolar.”
C&C – E em relação à educação, mais especificamente?
EM – É importante destacar que educação não reduz desigualdades sociais. Esta é uma falácia economicista que lhe imputa fracasso anunciado: efetivamente, o fracasso da gestão econômica que se transfere à escola. Desde os anos 2000, as políticas educacionais vêm buscando atacar os desdobramentos, no campo da educação, das elevadas desigualdades sociais no Brasil. Novamente, não estou considerando os retrocessos nos últimos anos, amplificados pela pandemia. O grande destaque foi a universalização do acesso à educação fundamental e uma melhora considerável do acesso ao ensino médio. Também a criação de uma política de redistribuição de fundos para a educação básica, com determinação de uma alocação mínima de verbas para que estados e municípios possam fazer face às necessidades de financiamento da educação, foi um ganho enorme. Nesse aspecto quero destacar que, com toda a pressão de desmantelamento do Estado que vimos nos últimos anos, uma nova legislação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) foi aprovada, garantindo a chegada de recursos na ponta do sistema. O piso salarial do magistério, atrelado ao fundo, é outra medida que contribui para um sistema educacional menos desigual. Ao longo do período, vimos também discussões importantes de raça, gênero, sexualidade chegarem às escolas – ainda que a via de currículos nacionais não me pareça a mais apropriada. A formação de professores para lidar com estes conteúdos, ainda que aquém do necessário, contou com diferentes políticas de produção de material e oferecimento de cursos. Estruturou-se um sistema de avaliação, que considero controverso, mas que, com a ampliação de universidades públicas e institutos tecnológicos, criou condições de acesso de muitos ao ensino superior. As leis de cotas aos poucos vêm se firmando no cenário nacional, tanto para o acesso ao nível superior quanto aos postos de trabalho. Vou parar por aqui na enumeração que trouxe para mostrar o quanto se avançou com políticas públicas de redução de desigualdades no campo da educação. Se elas parecem agulha num palheiro, é porque os níveis de desigualdade da sociedade brasileira são abissais.
“A desigualdade não é apenas social: o Brasil é estruturalmente racista, oligárquico, machista, homofóbico.”
C&C – Nesse contexto, o que poderia/ deveria ser feito para avançar as discussões – e as políticas públicas – em relação à educação?
EM – Ao mesmo tempo em que celebro o que foi feito, também destaco o que há para fazer – e refazer, posto que muito foi descaracterizado. Mas também quero falar do que os resultados de pesquisa indicam que não ajudam. Centralização curricular, na forma de currículos e/ou de livros/apostilas, não contribui para a redução de desigualdades. Muitas pesquisas norte-americanas, onde estudos de medida de desempenho correlacionados com desigualdade são comuns, mostram que, no geral, não há redução de desigualdades quando essas estratégias são adotadas. Em muitos casos, ocorre exatamente o inverso. Testagens nacionais centralizadas também não têm se mostrado um instrumento poderoso no sentido de reduzir desigualdades, muitas vezes servindo mesmo para cristalizá-las. E é relevante destacar que com todas as políticas que celebrei acima, um dos núcleos duros de nossas políticas educacionais dos anos 2000 tem sido constituído de currículo nacional-testagem. É uma dupla que tem sido deixada de lado em muitos países que celebraram resultados no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) no início das testagens e, paulatinamente, foram recentrando sua educação nas escolas e nas experiências que aí ocorrem. No Brasil, acirramos a lógica de controle, em muito em função da participação acintosa de fundações ligadas ao mercado econômico e produtivo na “cogestão” da educação pública. E não se trata de uma posição contrária à atuação de entidades filantrópicas, mas da defesa de um debate aberto em que pesquisas divergentes possam ser trazidas à mesa em que políticas públicas são formuladas.