Altaci Rubim capa

“Precisamos de medidas emergenciais para salvaguardar todas as línguas indígenas”

Confira entrevista com Altaci Rubim, professora da UnB e representante da América Latina e do Caribe na Década Internacional das Línguas Indígenas da Unesco

 

Existem mais de sete mil línguas faladas no planeta. Dessas, mais de seis mil são indígenas, segundo a Unesco. No Brasil, são mais de 274 línguas indígenas, conforme dados do último Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Porém, muitas estão em risco de ser esquecidas – tanto por sua desvalorizando quanto pela morte de seus falantes. Para valorizar essa rica cultura, a Unesco proclamou o período entre 2022 e 2032 como a Década Internacional das Línguas Indígenas, alertando para a necessidade de preservá-las para as gerações futuras. “Quando você fala em fortalecimento linguístico, você fala de saberes que nos conecta com a mãe terra, com nossa ancestralidade, que está ligado com o bem viver dos povos”, afirma Altaci Rubim, professora do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas da Universidade de Brasília (UnB). Pertencente ao povo Kokama, da região do município de Santo Antônio do Içá, no Alto Solimões (AM), ela desenvolveu durante vários anos atividades de revitalização da língua de seu povo em comunidades de contexto urbano. Seus trabalhos levaram a ser a representante da América Latina e do Caribe da Unesco no Grupo de Trabalho (GT) Mundial da Década das Línguas Indígenas. “Essa valorização, essa promoção, essa presença das línguas nas escolas, nos centros, nas músicas, nos teatros, nos filmes, tudo isso faz com que cada povo se veja dentro desses espaços dessa sociedade”, defende a pesquisadora. Altaci Rubim também enfatiza a necessidade de políticas públicas para proteger as línguas e os povos indígenas, além de um diálogo constante com a sociedade. “O poder público deve assumir a importância da vida, da cultura e da língua dos indígenas”.

Leia a entrevista completa.

 

Ciência & Cultura – Muitas línguas indígenas estão ameaçadas, seja por sua desvalorização, seja pela morte de seus falantes. Como preservá-las e valorizá-las?

Altaci Rubim – Esse é um processo longo porque nós nascemos com essa concepção e ao longo da nossa formação, principalmente escolar, vai sendo exigido de nós colocar de lado todos nossos saberes que vêm do ventre da mãe. Em nossa saída para cidade, para o campo, para fora das aldeias, fora das nossas famílias, esse processo colonizador da sociedade vai de certa forma matando ou deixando adormecido nossos saberes. Então chega num ponto que você não consegue mais pensar sem citar um teórico porque senão seu conhecimento não é legitimado. Nós vamos sendo silenciados, não podemos falar de nossas experiências de vida porque não nos é colocado falar de experiências de vida, já que isso não cabe na academia, porque a academia é um local da ciência – e da ciência nessa visão ocidental, numa concepção totalmente diferente da concepção indígena. Então nesse cenário nós temos que fazer um caminho de volta. Nós saímos de nossas origens e temos que voltar a elas.

 

“Esse processo colonizador da sociedade vai de certa forma matando ou deixando adormecido nossos saberes.”

 

C&C – Estamos na Década Internacional da Língua Indígena, estabelecida pela Unesco. Como as sociedades e os governos podem contribuir para a promoção dessas línguas?

AR – Começamos esse processo de discussão no Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) da Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032) estabelecida pela Unesco. A partir dessas discussões como indígenas começamos a ver que precisávamos apresentar para nós mesmos a nossa epistemologia. Daí sai a concepção de “língua espírito”. O primeiro ponto são justamente políticas públicas para apoiar as iniciativas dos próprios povos, assim também como políticas públicas para troca de experiências para que os povos que estão com dificuldade possam interagir com povos que estão com boas práticas de ensino e aprendizagem de línguas e, nesse sentido, dar condições para desenvolver. Nós sabemos a importância da política pública do governo para fortalecimento das línguas indígenas, mas até aquele momento, pela visão ocidental, não teríamos política para isso porque a própria academia tirava isso dos povos ao afirmar não era possível. O poder público deve assumir a importância da vida, da cultura e da língua dos indígenas. Sem essas políticas públicas, nós, povos indígenas, vamos cada vez mais estar à mercê de políticas dominantes que fazem com que as línguas sejam apagadas. A mudança de status da língua é de suma importância. Essa valorização, essa promoção, essa presença das línguas nas escolas, nos centros, nas músicas, nos teatros, nos filmes, tudo isso faz com que cada povo se veja dentro desses espaços dessa sociedade ao invés de ver como “privilégio” ter a língua portuguesa ou outras línguas dominantes como status. Porque eu posso falar 10 línguas indígenas, mas eu não sou considerada inteligente. Eu vou ser considerada inteligente se eu falar português, inglês, espanhol, francês. Aí eu vou ser considerada uma pessoa bilíngue, letrada e tudo mais. Então essa mudança de status dentro da sociedade é importante também para que as línguas passam ter força para continuarem vivas.

 

C&C – Quais são as maiores ameaças à língua – e ao povo – indígena?

AR – Durante a pandemia de covid-19, nós perdemos muitos anciões do meu povo. Foram mais de 70 indígenas. E nós estamos num processo de fortalecimento a língua. O povo Yawalapiti, do alto Xingu, tem apenas dois falantes. Eram três, mas um ancião morreu de covid. Então precisamos de medidas emergenciais para salvaguardar todas essas línguas. Através do fortalecimento e da documentação isso pode ser feito, pode se manter esse conhecimento para os demais membros da comunidade daquele povo que fala aquela língua. As doenças, o retorno dos anciãos para nossa ancestralidade, o tempo dos nossos ancestrais, isso faz com que as línguas fiquem cada vez mais enfraquecidas porque, como não há uma política de fortalecimento das línguas indígenas, quando um ancião se vai, muitas vezes os mais jovens não querem continuar esse processo. Há uma interrupção geracional. A grande ameaça está primeiro da demarcação de terras, porque sem a terra não há população indígena. Precisamos do território não somente para que os anciãos possam ter uma condição de vida dentro da sua cultura, mas também para que eles não fiquem sofrendo ameaça de invasão, da mineração, das queimadas, etc. Se já sofrem tantas agressões em terras que demarcadas, imagine nas terras que não são demarcadas.

 

“A grande ameaça está primeiro da demarcação de terras, porque sem a terra não há população indígena.”

 

C&C – Durante muitas décadas as línguas indígenas eram exclusivamente estudadas e sistematizadas por não indígenas. Você é uma das pioneiras como linguista indígena, dentro da academia ocidental. Como foi seu ingresso neste campo?

AR – A minha “volta” acontece depois de 2000, quando eu entro em contato com o fortalecimento da língua do meu povo. E as concepções ocidentais são muito negativas em relação à retomada e revitalização das línguas indígenas no sentido de não acreditarem nesse processo. Porque ele não tem explicação na ciência produzida por eles. Então nós seguimos primeiramente essas vozes fora do nosso contexto cultural, que são os professores que trabalham com línguas, mas quando nos voltamos para nós mesmos, o que antes era animador acaba se tornando um obstáculo. Ouvimos muitos “isso não vai dar certo”, “você não vai conseguir”. E durante um tempo acreditamos mais nessa ciência do que nos nossos anciãos, porque o processo colonizador deslegitima tudo o que não consegue enquadrar. Mas, passando por formações e discussões entre meu povo, acabei fundando um espaço, o Centro de Ciências e Saberes Tradicionais Kokama Lua Verde, em Manaus (AM), para testar as metodologias. Eu queria entender porque nós não conseguíamos avançar. Ao discutir isso dentro desse centro e testar metodologias, eu vou começando a entender que todo o caminho que tínhamos trilhado até ali não era nosso. Nós estávamos tentando imitar uma metodologia que não dava certo, tentando encaixar nossos conhecimentos, nossa forma de educar, dentro dessas metodologias. Com isso eu vou para o mestrado em linguística e línguas indígenas, onde é o espaço que a gente estuda as epistemologias, e aí eu começo realmente a ver o que estava fazendo. E eu venho fortalecer essa visão, essa epistemologia indígena. Porque quando você fala em fortalecimento linguístico, você fala de saberes que nos conecta com a mãe terra, com nossa ancestralidade, que está ligado com o bem viver dos povos, seja na alimentação, seja na cura física e espiritual, estamos todos conectados.

 

C&C – Como a sua presença como professora em uma universidade pode contribuir para que outros indígenas trilhem o mesmo caminho?

AR – Eu tenho a felicidade de ouvir as pessoas falarem que a minha entrada nesse espaço foi importante. Não somente eu ganhei entrando na universidade, mas a própria universidade ganhou ainda mais comigo e com meus alunos, tanto na diversidade quanto nos trabalhos que fazemos. Até no meu próprio povo eu ouço muitas mulheres jovens falando “eu quero ser como a professora Altaci. Ela não abandonou o povo, ela continuou mesmo estando na universidade”. Porque mesmo estando na Universidade de Brasília (UnB) eu continuo conectando meus trabalhos com meu povo. Também achei interessante uma parente falar “professora, você fez com que os Kokama voltassem a se apaixonar pela língua”. Porque nossa caminhada inspirou outros movimentos. Hoje existem vários movimentos em processo de fortalecimento linguístico do povo Kokama e também de outros povos que nos viram fazer esse esforço e muitas vezes pedem para nós compartilharmos nossos saberes com eles. Então eu sempre falo para minha família que se eu morrer eu morro muito agradecida, porque acredito que a caminhada que fizemos não tem mais volta. Essa pequena caminhada mudou o destino da nossa vida, o destino da nossa língua.

 

“Agora é tempo de reconstrução, de reflexão e de constituição de políticas que vão ficar para a futura geração.”

 

C&C – Por que é importante a presença dessa diversidade (que inclui povos originários, negros, população LGBTQIA+) na universidade? E como as políticas de ações afirmativas são importantes para isso?

AR – Hoje temos uma política de acesso. Mas também ainda temos muita luta. Esse processo está possibilitando problematizar a questão de gênero e levar as mulheres para ciência. Está dando acesso ao conhecimento a jovens negros e indígenas. Antigamente nem sonhávamos com isso, não tínhamos condições de sair da aldeia e acessar as informações. E quem tinha acesso à informação não sabia como aproveitar. Então hoje, quando eu falo de fortalecimento linguístico não significa que vamos sobreviver só dentro da epistemologia indígena, mas nesse diálogo cultural com essa sociedade. Nós precisamos entender essa sociedade para que possamos pensar juntos políticas públicas, logicamente sem abandonar nossos saberes, sem nos sentimos inferiorizados. Então essas possibilidades de problematizar, de estar nesses espaços, de discutir tomada de decisão, é uma mudança, é uma virada de chave nesse século. É uma conquista coletiva de todos os movimentos, de cada um que se articulou da melhor forma. Ocupar os espaços nesse ambiente da universidade e em todas as outras instituições, seja por meio de concurso público, seja na possibilidade de tomar uma decisão que sirva coletivamente para os direitos humanos, os direitos dos povos, estão lá representados.

 

C&C – Como essa diversidade pode influenciar o fazer científico?

AR – É muito importante ocupar esse espaço na universidade, porque é a cosmovisão dos povos colocada no processo de ensino-aprendizagem. Isso muda a visão que os estudantes têm ao chegar à universidade sobre os povos indígenas, sobre a forma de ensinar. Essa conexão que estabelecemos com esses alunos transforma. Com o tempo, eles vão tendo sensibilidade com a questão indígena, com o ensino, e entendendo um pouco mais da percepção do que é ensinar de forma significativa. Porque para nós, povos indígenas, o que nós fazemos é significativo. A aprendizagem acontece por meio da oralidade, mas essa oralidade não fica abstrata como no conhecimento ocidental: ela se materializa. Então é um divisor de águas dentro da universidade. Nós estamos avançando. Falta avançar muito, mas o que estamos conquistando hoje, nós nem sonhávamos que aconteceria. Porque nós saímos de um governo genocida que deixou de lado as políticas sociais, as políticas públicas para povos como nós. Então acho que agora é tempo de reconstrução, de reflexão e de constituição de políticas que vão ficar para a futura geração.

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