América Latina: integração e democracia

A estratégia de integração econômica deve estar aliada a mecanismos de salvaguarda da democracia

Resumo

A integração da América Latina aqui é examinada da perspectiva econômica, particularmente sob o ponto de vista da produção de mercadorias e do comércio intrarregional, a partir dos dados da CEPAL. A integração é uma etapa de agregação de interesses que leva à formação de “blocos econômicos”, que por sua vez, vão de zona de livre comércio, à união aduaneira, ao mercado comum e finalmente à união econômica e monetária. Neste sentido, o Mercosul é um processo, por exemplo. Outrossim, a estratégia de integração econômica deve estar aliada a mecanismos de realização da democracia, para gerar uma sociedade pluralista e participante. Aqui são avaliadas as condições de realização de ambas as dimensões.

A utopia de integração da América Latina vem do século 19, após o êxito dos movimentos independentistas, com a proclamação de repúblicas soberanas, com exceção do Brasil imperial. Conflitos internos e externos têm impedido esta movimentação integracionista, desde então. Aqui retomamos o caminho contemporâneo da integração, a partir das estratégias econômicas propostas pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL).[1] Depois analisaremos as perspectivas políticas e democráticas.

Entre 1995 e 2001, o valor das exportações regionais de manufaturas foi quintuplicado (CEPAL, 2022), passando a cerca de 800 milhões de dólares e totalizando 5% das exportações mundiais em 2021. As exportações da região cresceram mais do que o nível mundial devido ao papel do México, em franca integração com os Estados Unidos no âmbito do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA). Nas duas últimas décadas este dinamismo não foi mantido, havendo um déficit no comércio exterior de manufaturas, alcançando 6% do produto interno bruto (PIB) da região em 2021. As exportações (2021) de manufaturas da região correspondem a 66% do total exportado, mas que sem o México caem para 41%. As exportações de manufaturas estão concentradas no México e no Brasil; havendo saliência destas exportações também na América Central e no México, mais do que na América do Sul. Esta tem se especializado em matérias-primas, impulsionada pela demanda chinesa. A participação do Brasil nas manufaturas decresceu de 75% a 48% em 2019-2021. (Figura 1)


Figura 1. Encerramento do 38o Período de Sessões da CEPAL.
(Foto: CEPAL. Reprodução)

 

As relações da América do Sul têm no Mercado Comum do Sul (Mercosul, 1991) – composto por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, com Venezuela suspensa desde 2017 – uma instância estratégica, pondo em ação um projeto de zona de livre comércio, a primeira etapa das diferentes formas de integração entre dois ou mais países, compreendendo uma política comercial conjunta e uma tarifa externa comum (TEC), conformando assim uma união aduaneira. Todavia, mesmo no âmbito do Mercosul, as assimetrias entre os países são enormes e diferenciadas. O Brasil tem na região 14,1% de suas importações, principalmente da Argentina; enquanto 14,2% de suas exportações têm por destino a região. A Argentina importa 34,1% da região e exporta 31,6% de sua produção aos pares latino-americanos. Já o Paraguai exporta 74,3% para a região, dela importando 58,9%. E, em um caso extremo, a Bolívia importa 46,6% e exporta 74,3% de sua produção para a região, principalmente para o Brasil (gás).

Em contraste com América do Sul, o peso das manufaturas exportadas por Guatemala, Honduras e Nicarágua cresceu em função de maior integração centro-americana por meio do Tratado de Livre Comércio entre Centro América, República Dominicana e Estados Unidos (CAFTA, 2004). Insumos médicos e têxteis foram os produtos privilegiados.

Quanto ao México, seu segmento exportador é o de manufaturas de tecnologia média, destacando-se veículos e seus componentes, representando quase a metade do valor total das exportações mexicanas. Outrossim, há uma grande heterogeneidade nos padrões exportadores na região: as exportações de alta e mediana tecnologia alcançam o nível máximo com 80% para o México, indo para 40% para seis países e alcançando 10% em 11. A região só alcança superávits significativos em alimentos, bebidas, tabaco e automotores. Os déficits em química, farmácia, máquinas e aparelhos eletrônicos são notáveis nas duas últimas décadas.

 

“Por meio de múltiplos Tratados e Acordos, a América Latina e o Caribe têm aumentado seus raios de ação.”

 

O destino das exportações regionais varia: incluindo México, 57% se destinam aos Estados Unidos, tendo a própria região como o segundo mercado com 15%, seguindo a União Europeia e Reino Unido com 7%. As exportações manufatureiras do México (84%), vão para os Estados Unidos. A própria região é o seu principal mercado das manufaturas. A China e os outros mercados asiáticos absorvem poucas manufaturas da região coberta pela CEPAL (3% e 4%, respectivamente), ainda que no caso da América do Sul a China alcance 10%.

A capacidade exportadora da região, em relação às manufaturas, varia muito dependendo do setor. O México representa quase 90% das remessas totais dos dois principais setores exportadores: automotor e eletrônica. Este país inclui também três quartos das exportações de maquinaria e equipamentos não elétricos, seguido do Brasil, com quase 20%. A origem das exportações é mais diversa nos alimentos, bebidas e tabaco, química e farmácia, confecções e calçados. O primeiro setor se deve aos recursos abundantes, especialmente na América do Sul. No caso de têxteis e calçados se deve aos países centro-americanos e caribenhos cujas exportações se dão sob regime de maquila e se orientam principalmente ao mercado norte-americano.

Por meio de múltiplos Tratados e Acordos,[2] a América Latina e o Caribe têm aumentado seus raios de ação. A conjuntura aponta para uma recuperação de certos setores, como o turismo e os serviços em geral, mas ainda não indicam solidez nas relações intrarregionais; com carente integração do bloco, ao contrário dos países da Ásia-Pacífico. A crise dos mercados e a covid-19 têm favorecido uma estratégia que desafia a globalização com as políticas de blocos regionais. Isso funciona como uma forma de defesa, favorecida pela contiguidade dos países envolvidos, superando em termos a tensão entre os conceitos de regionalismo aberto versus fechado, ao longo dos embates entre a CEPAL e os governos neoliberais da América Latina e do Caribe sobre o papel do Estado na política protecionista ancorada no desenvolvimentismo latino-americano.[3] Lembrando ainda que o Chile experimentou a primeira real experiência neoliberal ortodoxa mundial durante o regime Pinochet (1973-1990), com contraditórios resultados da inserção do país no mercado internacional.[4] Claro, também, é o crescente papel da China como exportadora e importadora de produtos na região, onde, de modo particular, rebaixa o papel do Brasil e da Argentina, por exemplo, como associados ao destino do bloco latino-americano. Ambos os países têm perdido mercados na região para os chineses, de modo crescente. Todavia, paradoxalmente, a China poderá beneficiar a integração da região por seus investimentos em infraestrutura (energia e transportes) no âmbito da política do silk road (rota da seda).

Este quadro indica enorme fragilidade da integração latino-americana no contexto econômico internacional. O comércio de bens e serviços entre os pares da América Latina e do Caribe aponta para uma crescente presença da China e igualmente para crescente integração do México e da América Central com a zona de influência dos Estados Unidos; bem como pela falta de complementariedade geral entre as economias nacionais. Isso se deve a vários fatores, indo do tamanho desigual dos mercados, territórios e populações até o fato da industrialização na região estar baseada nas estratégias próprias das empresas multinacionais, que obedecem às decisões de suas matrizes, sem maiores considerações de caráter macroeconômico. Fatores que estão longe de serem substituídos pelos requisitos das teorias cepalinas, ainda com força retórica nas disputas políticas regionais. As condições para um regionalismo fechado, com pretensões autonomista e protecionistas estão longe de alcançáveis. Agora a hegemonia ideológica e programática é na direção de um regionalismo aberto, com crescente adesão dos países da região às estratégias mundiais geradoras de valor, estejam onde estiverem. Por enquanto, isso leva à maior presença dos países do Leste Asiático, que juntamente com a União Europeia e os Estados Unidos, catalisam a importação dos bens e serviços latino-americanos.

 

 

Enquanto assim se configura a integração do ponto de vista econômico, resta a exploração do espaço político ocupado pela região, no que concerne à solidificação da democracia. Realizar a democracia, como ideia-força, exige esclarecer procedimentos e políticas. No sentido comum, a formalização de procedimentos típicos ao conceito de democracia, como a realização de eleições periódicas, poderia ser suficiente. Todavia, na verdade o conceito democrático exige condições que ultrapassam esta dimensão, pois a legitimação dos regimes democráticos também abarca a existência necessária de políticas públicas de proteção social, de formas previstas de participação popular para garantir a cidadania, e assim por diante. Tudo isso exige a conformidade com a contemporaneidade mundial, que tem destacado a emergência de novos processos de formação da opinião pública, com o uso de redes sociais, campanhas politicas com apelo à psicologia comportamental, uso de inteligência artificial partindo de dados publicamente disponíveis sobre perfis dos cidadãos e de grupos. e outros recursos disponíveis pelo acervo das ciências sociais contemporâneas.[5]

Além disso, o contexto é marcado pelo ressurgimento, após a terceira onda de democratização pós-fascismo europeu e ditaduras na América Latina, de ideologias caracterizadas por adesão à xenofobia, misoginia e outras virtualidades.

Estas características açulam sentimentos atávicos de busca de identidade e participação social efetiva em um quadro de instabilidade criado pelas dimensões de insegurança econômica (inflação, crises cíclicas, mudança de moedas, etc.), incertezas sociais valorativas diante de novos padrões civilizatórios, quebra dos caminhos tradicionais de mobilidade social através de gerações e assim por diante. Trata-se de um conjunto de novos ingredientes nas conjunturas conhecidas pós-Segunda Guerra Mundial: a revivescência de movimentos integristas oriundos do pensamento católico tradicional, cruzados com ondas do novo evangelismo e, curiosamente também ancorados em formas perversas de realização socialista (Venezuela e Nicarágua). Afinal, um corpo ideológico antiliberal que desafia até mesmo as mínimas formalidades dos procedimentos democráticos, como a realização de eleições periódicas. Por enquanto, eleições são toleráveis, mas seus resultados estarão sempre sob suspeição, independentemente das circunstâncias, como ocorre no Brasil pós-Bolsonaro.

No caso latino-americano, um caminho interessante a ser explorado está nas relações entre um lento e acidentado processo de solidificação democrático – sempre sob contestação – e suas relações com um híbrido sistema produtivo, onde Estado e empresas privadas, com forte presença de multinacionais, compartilham a hegemonia econômica. As relações entre o capitalismo peculiar latino-americano e a democracia liberal que tenta se impor devem ser vistos em suas imbricações práticas.

 

“Tem havido crescente desnacionalização do parque produtivo latino-americano, alta concentração econômica e aumento das dívidas públicas frente ao PIB regional. Situação que convive com pressões políticas e sociais que desembocam em violentos eventos eleitorais em todo o território.”

 

Neste sentido, Brasil e Chile oferecem exemplos de relações estreitas entre autoritarismo e projetos econômicos, gerando resultados de largo alcance. O Brasil com o regime militar (1964-85) estabelecendo novos padrões de ocupação econômica do território (Itaipu, regiões metropolitanas como eixos de desenvolvimento urbano, energia nuclear, energia de fontes alternativas, etc.), levando o país a altos níveis de crescimento, com altas taxas de repressão e controle político. Um caso de estreita relação entre ditadura e economia. Já o Chile de Pinochet (1973-90) foi o primeiro experimento mundial de política neoliberal na conformação de um novo Estado privatizador e altamente repressivo. Pinochet, com os Chicago Boys, antecedeu Margaret Thatcher (Reino Unido, 1979-90)[6] e Ronald Reagan (Estados Unidos, 1981-89) na aplicação do receituário neoliberal, sob a égide do Consenso de Washington. Ambos os casos, Brasil e Chile, são exemplos em que as condições políticas repressivas funcionam como o suporte institucional para reversões de políticas econômicas. Sem as respectivas ditaduras, mudanças econômicas não poderiam ser realizadas – pelo menos no relativamente curto período de implantação que ocorreram. O custo de transação foi alto, com violência institucional disseminada, nos dois casos exemplares. Realizar a democracia em consonância com políticas de desenvolvimento econômico aceleradas é sempre um desafio hercúleo. A solução latino-americana foi conseguida por meio de sistemas ditatoriais, com perseguição aos movimentos sociais organizados, aos sindicatos e com variados graus de desnacionalização e concentração econômica.

De outro lado, e, em geral, as condições políticas oferecidas pela América Latina, após um período de normalidade e de paz relativa (anos 1980), não são as melhores. Há uma instabilidade econômica evidente devido à inflação alta (Argentina), dolarização (Equador) e bitcoin (El Salvador), fraturas entre as elites (Peru), dificuldades no âmbito das coalizões vencedoras para estabelecer prioridades (Colômbia e Chile) e – em quase todos os casos – crescente presença do narcotráfico em eventos eleitorais, como tem sido o caso do Equador, com assassinatos de candidato a presidente e outros militantes, e assim por diante.

Parte das causas desta situação recorrente tem sido posta à luz pela crescente globalização da economia, com seus efeitos pertinentes na região.[7] Tem havido crescente desnacionalização do parque produtivo latino-americano, alta concentração econômica e aumento das dívidas públicas frente ao PIB regional. Situação que convive com pressões políticas e sociais que desembocam em violentos eventos eleitorais em todo o território.[8] (Figura 2)


Figura 2. América latina enfrenta desnacionalização de sua indústria.
(Foto: Agência de Notícias da Indústria. Reprodução)

 

As condições atuais de integração não podem mais ser satisfeitas pela mera contiguidade territorial entre países. Hoje a conformação de blocos econômicos – uma forma superior de integração – é bastante frágil ainda na América Latina, agravada que é pela maciça presença chinesa como importadora de commodities e exportadora de bens manufaturados, bem como gigantescos investimentos em infraestrutura (comunicações e energia principalmente), em prejuízo de maior comércio intrarregional. Do ponto de vista político, a região convive entre formalismos eleitorais e profundas clivagens ideológicas, que provocam uma consistente má qualidade da democracia.[9] Estamos longe da integração e da democracia desejadas na América Latina.

 

Capa. a estratégia de integração econômica deve estar aliada a mecanismos de realização da democracia
(Foto: wirestock/ Freepik. Reprodução)

PENA-VEGA, Alfredo. Welcome à era da incertezauma reflexão antropolítica sobre um futuro global. Cienc. Cult. [online]. 2023, vol.75, n.3, pp.1-15. ISSN 0009-6725.  http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230034.
[1] Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), Perspectivas del Comercio Internacional de América Latina y el Caribe, 2022 (LC/PUB.2022/23-P), Santiago, 2023.
[2]ALMEIDA, P.R., Integração Regional . São Paulo: Saraiva, 2013,171 p. ; GARCIA, E.V. , Cronologia das Relações Internacionais do Brasil . Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, 336 p.
[3] LOVE, J., A Construção do Terceiro Mundo . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, 643 p.
[4] EDWARDS, S., The Chile Project. Princeton: Princeton University Press, 2023, 442 p.
[5] HELD, D., La Democracia y el Orden Mundial . Barcelona: Paidós, 1997, 381 p.
[6] KISSINGER, H. Liderança, seis estudos sobre estratégia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2023, 454 p.
[7]BELLUZZO, L.G. & GALIPOLO, G. A Escassez na Abundância Capitalista. São Paulo: Conracorrente,2019. 207 p.
[8]LATINOBAROMETRO. Informe 2023. Santiago, 2023, 167 p.
[9] SCHMIDT, B.V. & MACHADO, L.Z. Desafios à Democracia no Brasil, in XAVIER, L. et al, A Qualidade da Democracia no Brasil. Curitiba:CRV, 2019, pp.25-48, 597 p.
Benício Viero Schmidt é doutor em ciência política e professor aposentado da Universidade de Brasília (UNB). Foi diretor de cooperação internacional da CAPES (2004-2006).

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