Confira entrevista com Jaqueline Godoy Mesquita, presidente da Sociedade Brasileira de Matemática
Ela sempre gostou de matemática, e sua paixão pela área a levou longe: hoje, Jaqueline Godoy Mesquita é a terceira mulher (e a mais jovem) a ocupar o cargo de presidente da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM). E não só: também foi a única mulher latino-americana a receber o prêmio “Science, She says!” em 2023. Jaqueline Mesquita foi contemplada devido a seu trabalho envolvendo equações diferenciais funcionais com retardamento – área que vem ganhando projeção graças à grande aplicabilidade, especialmente em estudos que buscam compreender a evolução de doenças causadas por vírus (como Covid-19, AIDS ou Zika). Este não foi o primeiro prêmio concedido à pesquisadora por seu trabalho: em 2012, ano de conclusão de seu doutorado, ela foi contemplada com o prêmio internacional “Bernd-Aulbach prize for students” e em 2019, recebeu o prêmio “Para Mulheres na Ciência” oferecido pela L’Oréal, em parceria com a Unesco Brasil e a Academia Brasileira de Ciências (ABC). “A Matemática está em tudo que nos rodeia, e precisamos dela para executar desde atividades simples do nosso cotidiano até ações mais complexas”, afirma a pesquisadora. Em uma entrevista exclusiva, Jaqueline Mesquita compartilhou sua visão sobre a importância da diversidade para uma introdução mais eficaz da matemática nas escolas e na sociedade brasileira. Ela destaca que essa diversidade é crucial para superar os desafios enfrentados atualmente nesse campo no Brasil. “A diversidade traz diferentes olhares e perspectivas para o mesmo problema e isso é muito importante para a pesquisa em Matemática, pois um problema pode ser pensado e visto de vários ângulos”, defende. Jaqueline Mesquita, que é professora da Universidade de Brasília (UnB) e embaixadora do “Committee for Women in Mathematics” da União Internacional de Matemática (IMU), destaca a importância do papel das mulheres na ciência. “Devemos começar a caminhar com passos mais rápidos, precisamos de mais ações nessa direção, são muitos anos de desigualdade, são muitos estereótipos que precisam ser desconstruídos, tudo isso exige muita discussão e muitas ações nessa direção”.
Confira a entrevista completa!
Ciência & Cultura – Em um campo tradicionalmente dominado por homens, como você vê a evolução da presença e contribuição das mulheres na Matemática e em áreas STEM?
Jaqueline Mesquita – Considero que ainda é muito baixa a presença das mulheres na Matemática, especialmente nos cargos e posições de destaque. Estamos caminhando a passos muito lentos. Na Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), que em 2024 completará 55 anos de existência, tiveram apenas três presidentes mulheres, que é um número extremamente baixo. No Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), que é um instituto de pesquisa no Brasil de bastante prestígio na área de matemática, não teve até o momento uma mulher a ocupar o cargo de direção e possui atualmente apenas duas mulheres em seu quadro docente. Além disso, quando olhamos para o cenário internacional, para analisar a questão da representatividade, essa disparidade é ainda mais gritante. A matemática possui dois prêmios considerados o Nobel na área de matemática: a “Medalha Fields” e o “Prêmio Abel”. Quando olhamos para ambos, temos apenas duas mulheres ganhadoras na “Medalha Fields” e uma mulher ganhadora do “Prêmio Abel”. Apesar de estarmos evoluindo, o ritmo está muito devagar. Alguns estudos estimam que se continuarmos neste ritmo, só conseguiremos alcançar a paridade em 100 anos. Por outro lado, vejo muito positivo todo esse movimento e discussão que têm sido feitas nos últimos anos, mas não devemos estar conformados com isso. Devemos começar a caminhar com passos mais rápidos, precisamos de mais ações nessa direção, são muitos anos de desigualdade, são muitos estereótipos que precisam ser desconstruídos, tudo isso exige muita discussão e muitas ações nessa direção.
“É necessário haver um letramento de gênero obrigatório dentro das universidades para toda comunidade acadêmica.”
C&C – Quais são os avanços e desafios enfrentados pelas mulheres nesse ambiente científico?
JM – Os desafios enfrentados pelas mulheres neste ambiente científico são inúmeros. Quando as mulheres entram na graduação, já existe uma falta de representatividade que faz com que muitas mulheres tenham sensação de não-pertencimento àquele ambiente. O fato de ter poucas professoras mulheres na área também é um desafio, pois as mulheres têm poucas referências de modelos para se inspirar. À medida que as mulheres vão subindo na carreira, esses desafios vão aumentando, pois temos uma representatividade ainda menor: é o famoso “Efeito Tesoura”, que vai cortando as mulheres à medida que elas vão avançando em suas carreiras, excluindo-as dos cargos de poder e de tomada de decisão, tornando o ambiente muito mais masculinizado. O assédio moral e sexual infelizmente ainda é recorrente nas universidades, e atinge em sua maioria as mulheres. Uma pesquisa recente da Folha de São Paulo e uma pesquisa recente dos membros afiliados da Academia Brasileira de Ciências (ABC), da qual fiz parte, trouxeram índices bastante assustadores. Essa falta de medidas protetivas eficientes para as vítimas deste tipo de situação de violência faz com que muitas mulheres desistam de suas carreiras, sem nem sequer denunciar por receio, levando a academia a perder potenciais talentos por questões de gênero. Por outro lado, apesar dos desafios ainda existentes, avançamos bastante, mas o caminho ainda assim é muito longo. Recentemente, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) criou um campo no currículo Lattes para as mulheres poderem colocar o período da licença maternidade e isso passou a ser considerado nas últimas avaliações de pedido ao CNPq e outras agências de fomento. Também, o último edital Programa de Apoio a Eventos no País (PAEP) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), lançado em 2023, possibilitou que eventos científicos gastassem parte do recurso com brinquedotecas para que mães e pais pudessem levar seus filhos para o evento, permitindo assim que esse público que muitas vezes não participava das conferências devido à parentalidade, pudesse participar. Além disso, observamos que existe bastante discussão sobre as questões de gênero, com organização de diferentes eventos científicos em várias partes do Brasil para evidenciar o problema e pensar em soluções.
C&C – A diversidade é crucial para o avanço da ciência. Como a inclusão de diferentes perspectivas, incluindo a presença de mulheres, afeta a qualidade e amplitude das pesquisas em Matemática e em disciplinas STEM?
JM – Existem pesquisas recentes que mostram que quando incluímos mais diversidade, o ambiente se torna mais eficiente e produtivo. Isso porque a diversidade traz diferentes olhares e perspectivas para o mesmo problema e isso é muito importante para a pesquisa em Matemática, pois um problema pode ser pensado e visto de vários ângulos e nem sempre a melhor solução é a mais complexa, às vezes enxergar o problema sob outra ótica pode levar a soluções geniais.
“Todos os indicadores mostram que enfrentaremos desafios globais nos próximos anos que precisarão do diálogo de diversos cientistas e especialistas das diferentes áreas do conhecimento para trazer soluções em tempo recorde.”
C&C – Quais desafios específicos as mulheres enfrentam ao ingressar e progredir em carreiras STEM?
JM – São vários desafios: primeiro a falta de representatividade, justamente por ter poucas mulheres atuando em carreiras STEM. Também, muitas mulheres não têm apoio ao ingressar em carreiras STEM, mas ao contrário, são desestimuladas, devido aos diversos estereótipos colocados na carreira de STEM. Além disso, infelizmente as mulheres estão mais sujeitas a enfrentarem situações de assédio, tanto moral quanto sexual, que tem implicações muito graves e sérias, pois pode levar a um adoecimento da vítima, evasão das mulheres e ainda, dificuldade de progressão na carreira. Também, o ambiente acadêmico é pouco acolhedor com as mulheres, não sendo eficientes em apurar denúncias de violência contra as mulheres no âmbito profissional, tornando todo o processo de denúncia doloroso para a vítima, fazendo com que muitas mulheres se calem. Outro desafio enfrentado é a maternidade. O amparo e acolhimento no ambiente acadêmico para maternidade ainda são insatisfatórios. A maior parte dos banheiros da universidade não têm trocador de bebês, bem como a maior parte das universidades não possuem espaços para amamentação e ainda, nem sempre creches são disponibilizadas para as mães poderem deixar seus filhos, enquanto estudam e/ou trabalham.
C&C – Como a comunidade científica e as instituições podem apoiar a presença e a ascensão de mulheres nesses campos?
JM – Para apoiar mais as mulheres, precisamos de medidas efetivas que acolham e protejam as mulheres nas instituições. É necessário haver um letramento de gênero obrigatório nas universidades para toda comunidade acadêmica. Deveriam ter cursos periódicos obrigatórios para todos os docentes, funcionários e discentes que discutam ética, moral, assédio, gênero, diversidade, entre outros temas. Isso é fundamental para trazer uma consciência coletiva com relação ao problema e pensar em mais soluções. Também, é importante que nossas instituições tenham formas mais eficientes de apurarem denúncias de assédio moral e/ou sexual, e que a vítima seja protegida e acolhida. Além disso, é necessário que haja punições severas para estes casos, de modo a inibir esse tipo de comportamento na universidade. Outro apoio importante é trazer um maior acolhimento para as mulheres que são mães com a implementação das seguintes medidas: ampliação de prazo do estágio probatório considerando a maternidade, investir na infraestrutura das instituições para que elas tenham um espaço para amamentar seus filhos, para poder trocá-los nos banheiros da universidade, oferecer creche de qualidade para os filhos dos docentes, discentes e funcionários daquelas instituições.
C&C – Aumentar a presença feminina na Matemática e em áreas STEM é fundamental. De que maneira isso pode impactar não apenas o ambiente acadêmico, mas também a sociedade em geral?
JM – Isso permite que a nossa sociedade não perca potenciais talentos, afinal à medida que essas áreas excluem praticamente 50% da população, muitos talentos acabam sendo desperdiçados e não identificados. Cabe destacar que a nossa sociedade não pode se “dar a esse luxo”, todos os indicadores mostram que enfrentaremos desafios globais nos próximos anos que precisarão do diálogo de diversos cientistas e especialistas das diferentes áreas do conhecimento para trazer soluções em tempo recorde, como foi o caso da Covid-19 e para isso, é necessário maximizarmos os esforços e a capacidade intelectual da nossa sociedade. Além disso, como já mencionado anteriormente, um ambiente mais diverso contribui para trazer soluções mais eficientes, pois são diferentes olhares para o mesmo problema.
“É necessário investir na formação de professores para que possamos desconstruir os estereótipos que são colocados na matemática que muitas vezes bloqueiam o interesse pela área.”
C&C – Quais são os principais desafios enfrentados no ensino de Matemática no Brasil e como superá-los?
JM – Temos muitos desafios no ensino da Matemática no país. Começo observando que os índices de rendimento do Brasil em provas como Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), por exemplo, são muito baixos na parte de matemática, mostrando uma grande deficiência no aprendizado destes conteúdos. Recentemente, tivemos um péssimo resultado no PISA, mostrando que as notas em matemática caíram. Para reverter este quadro, precisamos investir primeiramente na formação de professores e na maior valorização destes profissionais. É crucial que os professores tenham o conhecimento aprofundado da matemática para que eles possam passar este conteúdo aos seus estudantes. Nesta direção, o Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional (Profmat), coordenado pela Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), tem feito um trabalho muito importante, trazendo este aprofundamento no conteúdo matemático na formação dos professores da educação básica. O Profmat foi o mestrado profissional pioneiro do Brasil, e hoje tem mais de 100 polos espalhados por todo país. Isso tem um impacto social muito importante, pois o Profmat consegue levar essa formação de qualidade para professores que estão atuando em regiões mais afastadas e/ou no interior do país, melhorando a atuação deste professor nesses locais mais remotos. Além disso, é muito importante ampliar a divulgação científica na área da matemática. Devido à grande abstração da matemática, os profissionais que atuam nesta área têm bastante dificuldade de conseguir comunicar a matemática de forma simples e interessante, afastando boa parte da população desta ciência.
C&C – Quais são as estratégias e abordagens que podem tornar o ensino de Matemática mais acessível e envolvente para os estudantes?
JM – É necessário trazer a matemática para a realidade dos estudantes, mostrar que a matemática faz parte da vida deles. Também, é interessante mostrar que a matemática muitas vezes pode ser vista como um jogo, um quebra-cabeça que você vai juntando as peças até chegar na solução final.
C&C – Como você percebe a importância da Matemática no cotidiano das pessoas e para o avanço da sociedade? Que papel ela desempenha em diferentes áreas, incluindo tecnologia, ciências e inovação?
JM – A Matemática está em tudo que nos rodeia, e precisamos dela para executar desde atividades simples do nosso cotidiano até ações mais complexas. Para uma simples ida ao supermercado, por exemplo, já é muito importante ter um conhecimento matemático, especialmente se você quer maximizar o seu dinheiro e garantir que as promoções anunciadas são vantajosas. Usamos também a matemática o tempo todo, mas indiretamente neste mundo tecnológico, em que as pessoas necessitam estar conectadas à internet o tempo todo. Para ter acesso à internet, é necessário utilizar muita matemática. Por outro lado, sabemos que é impossível pensar em avanço científico e tecnológico sem associar a isso o desenvolvimento da matemática. Inclusive para o combate da Covid-19, foram necessárias muitas ferramentas matemáticas, desde entender as ondas de contágio, que foram estudadas por meio de diversos modelos matemáticos, até entender a quantidade certa da dose de cada uma das vacinas e o tempo entre elas.
C&C – Considerando a aplicabilidade da Matemática em diversas áreas, como podemos estimular o interesse e a compreensão dessa disciplina desde idades mais jovens e garantir que sua importância seja reconhecida em todas as esferas da sociedade?
JM – É necessário investir na formação de professores para podermos desconstruir os estereótipos colocados na matemática que bloqueiam muitas vezes o interesse pela área, bem como para conseguirmos fazer com que esse professor em sala de aula possa ensinar de forma eficiente seus estudantes. Isso não é uma tarefa fácil, pois vai desde maior valorização da carreira de professor, com melhores condições de trabalho até o oferecimento de aprimoramento aos professores que estão atuando na educação básica. Além disso, precisamos investir na comunicação científica da matemática, para que a matemática possa ser levada de forma divertida e dentro da realidade das diferentes esferas da sociedade.
1 comment
A afirmaçao fundamental da professora está em “É necessário trazer a matemática para a realidade dos estudantes, mostrar que a matemática faz parte da vida deles”.
Ocorre o mesmo com as ciências. Não adianta acreditarmos e defendermos que temos que levar os estudantes ao mundo da matemática ou das ciências. Não! é o contrário.
As pessoas, crianças ou adultos, têm que perceberem de imediato os ganhos emocionais e intelectuais em seus modos de vida e suas práticas, com o conhecimento, com o progresso em sua capacidade de resolver desafios que lhes interessam e satisfazem. A capacidade e habilidade para usar o conhecimento e melhorar suas vidas, dos diferentes pontos de vista deles, os torna receptivos à aprendizagem. Não é “como o professor leva o conhecimento aos estudantes” que vale, mas como os estudantes o recebem, parafraseando Cícero.