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Aspectos de uma vida dedicada à construção da ciência cidadã no Brasil

A jornada acadêmica e as influências duradouras de Carolina Bori, uma pioneira na Psicologia Experimental no Brasil, através das memórias de seus alunos e amigos.

 

Conhecemos a Professora Carolina Bori em 1972. Estávamos perto do final da graduação em Psicologia na Universidade de Brasília. O Departamento de Psicologia vivia um período caótico, no qual vários de nossos professores foram demitidos. O Departamento tinha bons laboratórios que ficaram praticamente abandonados. Ocupamos um dos laboratórios e montamos um equipamento para fazer um experimento com ratos, cujo tema não interessa aqui, porque não queremos falar sobre nós, mas sim da professora Carolina, a partir de nossa experiência como pós-graduandos orientados por ela e depois amigos dela (que depois de algum tempo passamos a tratá-la de modo menos formal, apenas como “Carolina”, como vamos fazer nesse texto).

O fato é que, ainda estudantes de graduação, concluímos a nossa pesquisa e a apresentamos na Reunião Anual da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto (SPRP), que depois se tornou a Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP). Carolina esteve presente àquela reunião e assistiu nossa apresentação. Nós já estávamos interessados em ingressar no mestrado em Psicologia Experimental da USP, e queríamos ser orientados por Carolina. Um colega que já estava cursando a pós-graduação nos apresentou a ela. Na breve conversa com Carolina contamos sobre nosso interesse no mestrado em Psicologia Experimental. Ela foi receptiva e nos encorajou. Um de nós (Júlio), iniciou o mestrado em 1973, sob orientação da professora Carolina, e o outro (Olavo) iniciou o mestrado em 1974, também sob sua orientação.

Ambos estávamos interessados na análise do comportamento, uma abordagem à ciência psicológica na qual Carolina foi pioneira e líder no Brasil. A Psicologia é uma disciplina fragmentada, com diferentes abordagens que pouco conversam entre si. Carolina via a análise do comportamento como um caminho promissor para o crescimento científico da psicologia e se dedicou bastante a ela, mas estava comprometida com a ciência, não com uma corrente específica. Ela tinha clareza do papel social da ciência, de sua relevância para o país, e da necessidade e importância de elevar o status científico da psicologia como um todo. Ela acompanhava com interesse qualquer pesquisa psicológica com qualidade científica e entendia que a análise do comportamento não tinha o monopólio da cientificidade. Aliás, ela também tinha clareza de como era necessário que os cientistas da psicologia estivessem a par de avanços de outras ciências que também contribuíam para a compreensão de fenômenos psicológicos e comportamentais.

 

“Ela tinha clareza do papel social da ciência, de sua relevância para o país, e da necessidade e importância de elevar o status científico da psicologia como um todo.”

 

Na atuação rica e multifacetada de Carolina, como educadora e pesquisadora, ela participou de trabalhos científicos marcantes, incluindo seus trabalhos iniciais sobre psicologia social e depois o desenvolvimento do Sistema Personalizado de Instrução (PSI) juntamente com Fred Keller, Rodolpho Azzi e Gil Sherman. Ela liderou intervenções experimentais aplicando este sistema em diversos cursos profissionais e universitários. Mas, como observou Nale (1998), Carolina promoveu, com alunos e colaboradores, uma mudança acentuada na concepção do sistema, bastante enraizada na análise do comportamento e sua aplicação ao ensino. A concepção de Carolina partia da formulação de objetivos comportamentais, isto é, formulados a partir dos comportamentos relevantes para o aluno (e para sua atuação na sociedade). A partir dos objetivos são, então, programadas as atividades de ensino, a partir do que os analistas do comportamento denominam “contingências”, as condições ambientais que promoverão a aquisição dos comportamentos.

Esta concepção inspirou o desenvolvimento e aplicação de muitos programas de ensino e muitas pesquisas relacionadas. Dificuldades decorrem das demandas que o método coloca para os docentes e da resistência que uma concepção inovadora de educação pode despertar. Como exemplo, um de nós desenvolveu um curso programado para aplicação em disciplinas de psicologia oferecidas em cursos de licenciatura. As atividades para aquisição de comportamentos identificados como importantes para futuros professores foram divididas em “passos” que os alunos podiam fazer em ritmo próprio, com o professor avaliando quando os alunos podiam avançar para passos seguintes. Como ocorre tipicamente no PSI, não havia aulas, mas o trabalho do professor era muito mais intenso, envolvendo redação de material que era constantemente revisado, administração das atividades, avaliação constante do desempenho dos alunos, etc. No entanto, havia resistências institucionais e o fato de não haver aulas chegou a ser interpretado como uma maneira do professor evadir-se de seus deveres.

Apesar das demandas e das resistências, manteve-se em nosso país uma tradição de pesquisa e desenvolvimento de aplicações de análise do comportamento ao ensino que, como observou Nale, em grande parte deve-se à influência de Carolina: “essencialmente em função de sua habilidade de reconhecer, subjacente a aspectos periféricos do que se fez num determinado momento dos trabalhos, questões essenciais de investigação, filões ricos abertos à produção de conhecimento, e difundir tais aspectos como professora, orientadora, assessora, administradora e — talvez o mais importante — como ser político e profundamente preocupado com o social, como sempre foi”. (Nale, 1998, p. 295).

 

“Talvez a maior contribuição de Carolina para o desenvolvimento da análise do comportamento tenha sido a formação de pesquisadores.”

 

Talvez a maior contribuição de Carolina para o desenvolvimento da análise do comportamento tenha sido a formação de pesquisadores. Aqui, como em tudo o que fazia, ela era completamente desinteressada da promoção de sua própria carreira: todo o seu esforço era dedicado a contribuir para que o estudante, em especial o pós-graduando, se desenvolvesse como cientista competente e independente. Ela orientou, apenas na Universidade de São Paulo (USP), 49 dissertações de mestrado e 47 teses de doutorado.

A maioria destes trabalhos foi de analistas do comportamento, mas ela também orientou pesquisadores de outras correntes de pensamento. Apesar da importância do trabalho de orientadora, do quanto de tempo e esforço ela dedicava a isso, ela cedia o protagonismo ao aluno. O trabalho era do aluno, desde a ideia, desde a concepção, até a finalização. Mas a participação dela criava as condições para a execução e elevava o nível do resultado. E o resultado diz respeito tanto ao trabalho de dissertação ou tese quanto à formação do pesquisador e futuro professor.

A atuação de Carolina como orientadora exemplifica vários aspectos onde a atuação dela era discrepante de visões atuais em relação ao trabalho científico. O protagonismo do aluno implicava em que ela própria se assumia como coadjuvante. Ao contrário da prática vigente em várias ciências e que atualmente também predomina na Psicologia, ela não figurava como coautora de trabalhos da maioria de seus alunos. Vários artigos de seus orientandos são assinados pelo aluno, com crédito à orientação recebida. Em cada caso ela era convidada a assinar como coautora e praticamente sem exceção ela declinava.

Pelos padrões atuais, ela poderia ser talvez descredenciada de programas de pós-graduação pela falta de publicações. No entanto, pelos padrões de então, assim como os atuais, ela seria coautora de inúmeras publicações de seus orientandos. Mas acreditamos que ela discordaria da ênfase atual no número de publicações como critério principal na avaliação de pesquisadores. Da mesma forma, ela tinha algumas reservas em relação a publicações no exterior, em língua estrangeira. Em relação a isso, empenhou-se bastante na criação e manutenção de revistas nacionais, que publicassem na nossa língua. Ela considerava importante que as publicações fossem lidas no país e também dava grande importância à citação dos trabalhos de autores nacionais. Tendo atuado por muito tempo na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ela interagia com cientistas de todas as áreas e certamente sabia da importância de publicações internacionais. Acreditamos que ela considerasse as publicações nacionais em psicologia como um requisito necessário para o fortalecimento da área no país e para o crescimento de seu status científico: os cientistas estariam produzindo material que poderia contribuir para a formação científica do alunado brasileiro numa época em que o número de cursos de graduação estava crescendo e o material científico em português poderia ser essencial para a formação. Na sua visão, o trabalho científico deveria ser publicado não apenas para ser lido e citado pesquisadores estrangeiros, mas principalmente para o fortalecimento científico da psicologia brasileira. (Figura 1) Coerentemente com essa visão, Carolina foi decisiva, junto com Maria Amelia Matos e alguns de seus alunos, na criação de uma revista intitulada Psicologia, que sobreviveu por vários anos. Ela também sugeriu e incentivou a criação, pela SBP, dos Cadernos de Psicologia, uma revista que publica artigos didáticos, que podem ser usados no ensino de psicologia.


Figura 1. Carolina Bori é homenageada na sessão de encerramento da 56ª Reunião Anual da SBPC em 2004.
(Fonte: Acervo SBPC. Reprodução)

 

O papel destacado na formação de cientistas para promover o desenvolvimento científico não apenas da análise do comportamento, mas da psicologia em geral estava, acreditamos, ligado à visão que ela tinha do papel da ciência na promoção do desenvolvimento do país e do bem-estar das pessoas (ver Botomé, 2007, para uma transcrição do que a própria Carolina disse a este respeito).

Era esta meta que orientava a atuação dela em todas as frentes a que se dedicava: na formação de cientistas, na criação de novos cursos de psicologia, na atuação em sociedades científicas, em algumas oportunidades que esteve na administração universitária, como, por exemplo, nos fins dos anos 1960, na extinção da cátedra e departamentalização da USP e, já na década de 1970, na direção do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

 

“O papel destacado na formação de cientistas para promover o desenvolvimento científico não apenas da análise do comportamento, mas da psicologia em geral estava, acreditamos, ligado à visão que ela tinha do papel da ciência na promoção do desenvolvimento do país e do bem-estar das pessoas.”

 

Ela se queixava algumas vezes de que as sociedades científicas de psicologia só existiam para promover congressos e que deviam procurar exercer um papel social e político mais ativo. Ela teve essa experiência na SBPC, num momento em que esta sociedade era uma das poucas vozes da sociedade civil no Brasil e depois, durante a Constituinte, quando teve intensa participação na elaboração dos capítulos sobre ciência e educação, o que resultou na criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e na criação dos Fundos Estaduais de C&T. Ela também teve uma atuação decisiva na psicologia, com participação direta na criação das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Psicologia, fundadas em uma concepção de indissociabilidade entre o ensino e a pesquisa, e a exigência de laboratórios e serviços — não apenas salas de aula — como parte das condições de ensino oferecidas pelas instituições para a aprovação de um projeto de curso de Psicologia.

Mas não queremos fazer um relato completo das realizações de Carolina nas suas diversas linhas de atuação. Como tivemos o privilégio de ser alunos e orientados de Carolina e, posteriormente, tivemos várias oportunidades de testemunhar sua atuação em todas as frentes que já destacamos, nos limitamos aqui a um relato de algumas de nossas impressões e memórias de nossa convivência com uma figura de imensa importância no panorama da psicologia e da ciência brasileira em geral.


Notas
Botomé, S. P. (2007). Onde falta melhorar a pesquisa em Psicologia no Brasil sob a ótica de Carolina Martuscelli Bori. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 23, 29-40. https://doi.org/10.1590/S0102-37722007000500006
Nale, N. (1998). Programação de ensino no Brasil: o papel de Carolina Bori. Psicologia USP, 9(1), 275-301. https://doi.org/10.1590/psicousp.v9i1.107804

Capa. Carolina Bori, figura central na formação de muitos psicólogos no Brasil, cuja orientação inspiradora na USP marcou profundamente a trajetória acadêmica de seus alunos.
(Fonte: Acervo SBPC. Reprodução)
Júlio C. de Rose

Júlio C. de Rose

Júlio C. de Rose é professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Diretor de Pesquisa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Comportamento, Cognição e Ensino (INCT/ECCE).
Júlio C. de Rose é professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Diretor de Pesquisa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Comportamento, Cognição e Ensino (INCT/ECCE).
Olavo de Faria Galvão é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Neurociências e Comportamento (NTPC - UFPA).
2 comments
  1. Que texto gostoso de ler, meio texto, meio retrato falado dinâmico, fundamental, para entendermos melhor um pouco da importância de Carolina Bori. Sou grata ao Júlio e só Olavo por compartilharem essas descrições.

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