As mudanças climáticas e a biodiversidade

Metas ambiciosas podem proteger a biodiversidade e os biomas brasileiros

Resumo

As mudanças climáticas são um dos principais desafios da atualidade, promovendo impactos que antes imaginávamos restritos a um futuro distante. Apesar de seus efeitos já serem percebidos nos dias de hoje, medidas de mitigação para redução da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera podem reduzir fortemente os impactos futuros sobre a biodiversidade global. Aqui, destacamos os principais resultados de revisões da literatura científica sobre os impactos futuros das mudanças climáticas na biodiversidade, com ênfase especial no contexto brasileiro. Discutimos que o cumprimento de metas ambiciosas do Acordo de Paris pode reduzir drasticamente a quantidade de espécies em risco de extinção e os impactos para os diferentes biomas brasileiros. Além disso, analisamos os possíveis impactos das mudanças climáticas sobre as Unidades de Conservação brasileiras, avaliando sua eficiência em proteger a biodiversidade frente a essa nova ameaça e como torná-las mais resilientes no futuro.

Introdução

As mudanças climáticas já são uma realidade do nosso tempo, sendo talvez o principal desafio a ser enfrentado pela humanidade neste século. Vale ressaltar que essa grande ameaça não surgiu sem aviso. É inequívoco dizer que as ações humanas levaram o clima global a se transformar como vemos hoje. Desde o século passado a comunidade científica vem chamando a atenção para os perigos da emissão excessiva de gases de efeito estufa e seus impactos nos sistemas naturais e humanos. Hoje já podemos dizer que estamos vivenciando parte desses impactos e cenários potencialmente mais alarmantes nos aguardar. No Brasil, os modelos climáticos projetam aumentos severos de temperatura na região Norte e na porção central do país, acompanhados de uma severa diminuição da pluviosidade. Na região Sul, por outro lado, é projetado um aumento significativo da precipitação na forma, sobretudo, de eventos extremos. Esse futuro projetado parece já estar presente. No ano de 2023, uma seca histórica atingiu a bacia do Rio Amazonas atingindo os menores níveis em mais de 120 anos de medição. No ano de 2020, o Pantanal teve o mês mais quente já registrado em mais de cem anos. No ano de 2023, seguido pelo ano de 2024, recordes históricos de pluviosidade foram quebrados na região sul do país, provocando a maior catástrofe ambiental e humanitária do Rio Grande do Sul. As populações humanas e a biodiversidade já estão sentindo os efeitos do que considerávamos ser mudanças climáticas “futuras”.

Diante desse cenário de mudanças climáticas velozes e intensas, a biodiversidade pode ser impactada de diferentes formas. Esse processo pode provocar alterações no habitat das espécies, através de alterações nos ciclos de cheias e vazantes, aumento da acidificação dos oceanos e aumento na frequência de eventos extremos de temperatura e pluviosidade. A biodiversidade também pode ser impactada através de descompassos entre as condições climáticas e o momento em que ocorrem importantes eventos sazonais na vida das espécies, como reprodução ou a muda. Por exemplo, a lebre-americana muda a coloração de sua pelugem de marrom para branco no inverno em determinadas regiões da América do Norte. Contudo, com as mudanças climáticas, o surgimento dos pelos brancos no início do inverno não coincide mais com o aparecimento da cobertura de neve, o que potencialmente torna esses animais mais visíveis aos predadores.

Além desses aspectos, as mudanças climáticas podem afetar a biodiversidade alterando a área climática adequada para a permanência das espécies. Devido ao aumento da temperatura, as espécies podem ter que buscar seu clima adequado se deslocando em direção a latitudes mais elevadas ou maiores altitudes para compensar o aumento do calor. Esse tipo de deslocamento já vem sendo observado em diversos animais e plantas em diferentes regiões do planeta. No ambiente marinho, por exemplo, devido ao aquecimento das águas superficiais, algumas espécies estão se deslocando e ocupando águas mais profundas. Esse processo de modificação do clima pode levar a contrações severas da área total de distribuição das espécies e potencialmente a extinções em um futuro próximo. Isso acontece, pois, o clima ao qual a espécie está adaptada pode simplesmente desaparecer, ou porque os indivíduos da espécie podem não conseguir se deslocar para novas áreas, pois as paisagens estão altamente modificadas pelo homem ou a velocidade da mudança do clima é maior que sua capacidade de dispersão.

Diante desse cenário, uma profusão de estudos vem sendo produzidos ao redor do mundo para compreender os impactos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade no futuro próximo e no fim deste século. Em um esforço de reunir a literatura global sobre esse tema, uma revisão sistemática foi feita reunindo artigos com projeções futuras de impactos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade nas áreas mais importantes para a biodiversidade no mundo.[1] Esse levantamento indicou que a literatura sobre o tema é distribuída de forma desigual ao redor dessas áreas. No cenário mundial, o Brasil se destaca como uma grande fonte de conhecimento sobre o tema, com a Mata Atlântica sendo o hotspot de biodiversidade com a maior quantidade de projeções futuras para a biodiversidade no mundo. O Cerrado também se destaca como o sexto hotspot de biodiversidade mais estudado nesse contexto. Essa grande representatividade dos hotspots brasileiros destaca a grande relevância da ciência nacional no campo das mudanças climáticas e da biodiversidade. Em outra revisão sobre o tema, agora focada no Brasil,[2] a Amazônia também ganha destaque sendo o foco de 21% dos 121 artigos analisados. Estudos sobre a Mata Atlântica corresponderam a 43%, o Cerrado foi representado por 15% dos artigos, enquanto a Caatinga foi representada por 9%. Os biomas Pampa e o Pantanal não representaram nem 5% dos artigos levantados, sendo uma grande lacuna nos estudos sobre mudanças climáticas e biodiversidade no Brasil. Para ambos os biomas, as previsões de mudanças climáticas são severas, em especial para o Pantanal que vem sofrendo constantemente com as secas cada vez mais intensas. Tanto no Brasil como no mundo, observa-se um viés significativo de estudos para o ambiente terrestre, sendo os ecossistemas de águas continentais e marinhos subrepresentados nos estudos sobre mudanças climáticas e a biodiversidade. É fundamental que mais estudos voltados para a compreensão de como as espécies vão responder às mudanças do clima sejam produzidos nos ecossistemas menos representados atualmente. Esses estudos nos permitem identificar espécies e grupos potencialmente vulneráveis, além de regiões com grande potencial para servirem como refúgios climáticos para as espécies. O desconhecimento sobre os possíveis efeitos futuros da crise climática na biodiversidade é um grande empecilho para a tomada de decisão.

 

“As populações humanas e a biodiversidade já estão sentindo os efeitos do que considerávamos ser mudanças climáticas ‘futuras’.”

 

Ao analisarmos a literatura científica ao redor do mundo, muitos padrões já são perceptíveis sobre os impactos esperados das mudanças climáticas na biodiversidade. Um desses aspectos está associado com características das espécies e sua história biogeográfica. Espécies nativas que ocorrem apenas em uma região específica, como, por exemplo, um determinado bioma, são chamadas de endêmicas, enquanto espécies que passam a ocorrer em uma região nova, geralmente por introdução intencional ou acidental humana, são chamadas de espécies exóticas. Espécies exóticas quando se estabelecem bem em uma nova região e possuem rápido crescimento populacional, prejudicando as espécies locais, adquirem o caráter de espécie invasora. No contexto das mudanças climáticas, as projeções futuras indicam que as espécies nativas e endêmicas são consistentemente mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas do que espécies exóticas, tanto em ambientes terrestres, quanto marinhos. As projeções indicam que espécies endêmicas devem sofrer com impactos três vezes mais severos que espécies nativas comuns e dez vezes maiores que os impactos previstos para espécies exóticas. Espécies com distribuição muito restrita enfrentam tipicamente maior risco de extinção, sendo as espécies endêmicas de ilhas e montanhas as em maior risco de extinção associado às mudanças climáticas.

Para espécies exóticas, projeções de impactos neutros e positivos são comumente encontrados, indicando que para essas espécies as mudanças do clima podem não gerar nenhum impacto e inclusive podem favorecer o avanço dessas espécies sobre as espécies locais. A expansão da distribuição de espécies exóticas invasoras, associado à retração da distribuição de espécies nativas e endêmicas, pode culminar na redução da biodiversidade. A substituição de muitas espécies endêmicas especialistas por algumas poucas espécies generalistas e com ampla distribuição pode causar homogeneização e simplificação dos ecossistemas. Espécies invasoras, com perda de habitat e sobre-exploração, são as principais ameaças à biodiversidade atualmente e a redistribuição das espécies em resposta às mudanças climáticas pode favorecer a invasão de ecossistemas, intensificando essa ameaça.

Nesse sentido, as metas estabelecidas no Acordo de Paris durante a COP 21 têm grande potencial para reduzir os impactos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade. O principal objetivo desse acordo é proteger o sistema climático em benefício das gerações presentes e futuras, estabelecendo um pacto entre as nações para manter o aumento da temperatura média global abaixo de 2°C. Para alcançar essa meta, compromissos e deveres foram definidos para todos os países, seguindo o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, uma vez que os países desenvolvidos foram os principais causadores da crise climática. Além disso, os países signatários devem autodeterminar metas nacionais que contribuam para a redução da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, estabelecendo metas progressivamente mais ambiciosas. O comprometimento internacional para a realização das metas de mitigação (redução das emissões de gases de efeito estufa) é fundamental para reduzir os impactos sobre a biodiversidade. A mitigação climática refere-se a ações e estratégias adotadas para reduzir ou evitar a emissão de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera, visando limitar o impacto das mudanças climáticas. Essas ações podem incluir a transição para fontes de energia renovável, como solar e eólica, a captura de carbono da atmosfera, e a manutenção dos estoques de carbono fora da atmosfera. A mitigação climática é essencial para conter o aumento da temperatura média global, conforme estabelecido no Acordo de Paris, reduzindo os impactos sobre a biodiversidade e as populações humanas. Conforme o Observatório do Clima, para que o Brasil se mantenha fiel às metas estabelecidas no Acordo de Paris, o país deve reduzir suas emissões líquidas em pelo menos 92% até 2035 em relação ao ano de 2005. Para atingir essa difícil meta, esforços devem ser voltados especialmente para redução severa do desmatamento total no país, recuperação do passivo do Código Florestal e abandono dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos. Dessa forma, o Brasil contribuirá significativamente para a mitigação das mudanças climáticas globais e, consequentemente, para a redução dos impactos sobre a biodiversidade global.

A partir de revisões da literatura científica, foi avaliada a magnitude do potencial do Acordo de Paris na proteção da biodiversidade.[1,2,3,4] Em escala global, as projeções indicam que a quantidade de espécies em risco de extinção aumentará significativamente ao comparar o cenário pretendido no Acordo de Paris com cenários mais severos de mudanças climáticas. Os biomas são afetados de forma diferenciada ao redor do planeta, com os biomas tropicais sendo comumente apontados como os mais vulneráveis, uma vez que as espécies que habitam os trópicos já vivem próximas do seu limite fisiológico térmico máximo, sendo, portanto, muito sensíveis a qualquer aumento de temperatura. Na região da América Central e América do Sul, uma das mais biodiversas do mundo, as projeções dos impactos das mudanças climáticas são particularmente severas. Cerca de um quarto das projeções indicam extinções de espécies em um futuro próximo. Nesse cenário ameaçador, o cumprimento das metas do Acordo de Paris seria particularmente importante, com o potencial de reduzir de 40% para 17% o número de espécies em risco de extinção devido às mudanças climáticas na região. Além disso, a implementação deste acordo poderia diminuir em 80% os impactos gerais (não especificamente a extinção de espécies) da crise climática na biodiversidade dessa região. Quando focamos nossas análises no Brasil, observamos que os dados da literatura científica para o país seguem as tendências globais. O Acordo de Paris pode reduzir em até 78% a quantidade de espécies em risco de extinção devido ao clima. Apesar de não ser capaz de neutralizar completamente os efeitos negativos das mudanças climáticas, o grande potencial de redução dos impactos destaca a grande relevância desse acordo internacional para a conservação da biodiversidade global.

 

O impacto das mudanças climáticas sobre a biodiversidade dos biomas brasileiros

 Diante da extensão continental do Brasil, os diferentes biomas brasileiros sofrem com projeções distintas em termos de magnitude dos impactos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade.[2] Esses biomas também devem experienciar diferentes níveis de intensidade das mudanças do clima, sendo as porções norte e central as que devem sofrer maiores elevações de temperatura.[5] Associado às mudanças do clima, ameaças antrópicas, como a degradação de habitat e as queimadas, podem intensificar os impactos sobre a biodiversidade. As projeções indicam que a biodiversidade do Pantanal deve ser a mais impactada pelas mudanças climáticas no Brasil. A preocupação com essas projeções se intensifica fortemente quando observamos as pressões antrópicas na região. Além de estar na região do país com as projeções mais elevadas de aumento da temperatura média, o Pantanal vem sofrendo com a conversão do solo para agropecuária e com queimadas de origem antrópica. Esses processos podem levar a uma mudança completa da paisagem pantaneira, reduzindo fortemente a extensão das áreas alagadas. A Amazônia é o segundo bioma com as projeções mais severas de impactos sobre a biodiversidade. Associado a isso, o desmatamento excessivo pode favorecer a mudança do clima local. A perda de cobertura de floresta reduz drasticamente a evapotranspiração do ecossistema, reduzindo a umidade total. Essa redução da disponibilidade de água causada pela ação humana, juntamente com a redução de pluviosidade severa prevista para a região, pode levar a floresta amazônica a um processo de transformação de uma floresta úmida em uma floresta altamente degradada. A alteração completa da paisagem nesse bioma levaria a grande perda de biodiversidade, além de afetar potencialmente o fluxo de umidade em todo o continente. (Figura 1)


Figura 1. O Pantanal é um hotspot de biodiversidade, mas as projeções indicam que sua biodiversidade deve ser a mais impactada pelas mudanças climáticas no Brasil.
(Foto: Iberê Périssé / Projeto Solos. Reprodução)

 

Para o Cerrado, as ameaças são semelhantes. A previsão de impactos severos sobre a biodiversidade juntamente com o aumento na frequência de queimadas e a perda de habitat gerada pelo avanço da agropecuária colocam o bioma em sinal de alerta. Na última década, o Cerrado perdeu em média cerca de 590 mil hectares de vegetação nativa por ano. Atualmente, o bioma possui apenas cerca de 40% de cobertura florestal remanescente. A severa perda de habitat e a fragmentação da paisagem podem intensificar os impactos gerados pelas mudanças climáticas. Este cenário de elevada fragmentação e reduzida cobertura de vegetação nativa é encontrado drasticamente na Mata Atlântica, que possui menos de 30% de vegetação nativa remanescente. As espécies presentes no bioma dificilmente encontrarão caminhos propícios para se deslocarem em busca de clima adequado em resposta às mudanças climáticas. Nesse cenário, a Serra do Mar se destaca pela sua importância na manutenção da maior extensão de floresta contínua na Mata Atlântica. (Figura 2)


Figura 2. A Serra do Mar se destaca pela sua importância na manutenção da maior extensão de floresta contínua na Mata Atlântica
(Foto: Adriana Mattoso/ WWF Brasil. Reprodução)

 

A biodiversidade da Caatinga também deve sofrer fortemente com as mudanças climáticas em curso. O bioma, tipicamente semiárido, engloba uma das maiores florestas tropicais sazonalmente secas do mundo, mantendo ainda cerca de 58% de cobertura de vegetação nativa. Nessa região, o aumento da temperatura e a diminuição da pluviosidade média têm intensificado os efeitos da seca, o que juntamente com a degradação do solo pode levar o bioma a um processo de desertificação. Neste ano, a partir de análises do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), foi identificada pela primeira vez uma região árida no Brasil no interior da Caatinga. Essa alteração nos ecossistemas da Caatinga é uma grande ameaça à biodiversidade e às populações humanas da região.

Para o Pampa, as projeções dos impactos das mudanças climáticas para a biodiversidade são as menos severas entre os biomas brasileiros. No entanto, isso não significa que essa região esteja isenta de preocupações. Aumentos na temperatura e na pluviosidade na região podem alterar a estrutura da paisagem. Além das mudanças climáticas, o Pampa enfrenta ameaças antropogênicas significativas. Na última década, o bioma perdeu em média 150 mil hectares de vegetação nativa por ano. Isso corresponde a três vezes a extensão da cidade de Porto Alegre, maior cidade do bioma. A perda de vegetação nativa e a fragmentação das paisagens são desafios contínuos que necessitam de estratégias de conservação eficazes para garantir a conservação da biodiversidade.

 

As unidades de conservação e as mudanças climáticas

Embora a mitigação climática seja essencial, como vimos, infelizmente a perspectiva de redução significativa das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera no curto e mesmo médio prazo não são boas. Assim, é urgente adotar medidas de adaptação climática, ou seja, que aumentem a resiliência dos sistemas naturais (e humanos) às mudanças climáticas em curso. A criação de unidades de conservação (UCs) é uma das principais estratégias de conservação da biodiversidade ao redor do planeta, sendo eficiente na proteção contra ameaças antrópicas como desmatamento, queimadas e sobrexploração. No Brasil, as UCs são regulamentadas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), que possui duas categorias de proteção: as UCs de Proteção Integral, dedicadas à manutenção dos ecossistemas sem interferência humana, permitindo apenas o uso indireto de seus recursos naturais (correspondendo às Categorias I–IV da IUCN), e as UCs de Uso Sustentável, que permitem o uso sustentável dos recursos naturais pelas comunidades locais (correspondendo às Categorias V–VI da IUCN). O Brasil tem 18,3% de seu território terrestre coberto por UCs, totalizando cerca de 1,5 milhão de km². Essa cobertura é distribuída de forma desigual entre os biomas brasileiros, com a Amazônia tendo uma cobertura de áreas protegidas muito maior (~28%), seguida pela Mata Atlântica (~10%), Caatinga e Cerrado (~8% cada), e depois pelo Pantanal (~5%) e Pampa (~3%).[6] Além disso, 12,2% do território brasileiro é coberto por Terras Indígenas, localizadas principalmente na Amazônia, que frequentemente são mais eficientes que as UCs na conservação da vegetação nativa e da biodiversidade. (Figura 3)


Figura 3. Criação de unidades de conservação (UCs) é estratégia fundamental para preservar a biodiversidade ao redor do planeta
(Foto: Estação Ecológica do Grão Pará. Divulgação)

 

Apesar das UCs e terras indígenas promoverem uma proteção contra diversas ameaças, os efeitos das mudanças climáticas ultrapassam barreiras políticas. As alterações climáticas são perceptíveis até mesmo nas áreas mais remotas e preservadas do planeta. Nesse contexto, o papel das UCs na conservação da biodiversidade não é barrar as mudanças climáticas, mas sim conservar as áreas que mantêm a adequabilidade climática para as espécies, tanto no presente quanto no futuro.

Como já mencionado, à medida que o clima se altera, as espécies tendem a deslocar suas áreas de distribuição seguindo essa nova organização climática. Nesse processo, a perda de adequabilidade climática dentro das UCs pode levar ao deslocamento das espécies para áreas adjacentes à área protegida que possuam o clima adequado para sua permanência. Nesse cenário, essas espécies perdem a proteção e tornam-se mais vulneráveis a outras ameaças antrópicas, como a perda de habitat e a caça.

 

“É urgente adotar medidas de adaptação climática, ou seja, que aumentem a resiliência dos sistemas naturais (e humanos) às mudanças climáticas em curso.”

 

A redução da efetividade das áreas protegidas diante da mudança de distribuição das espécies associada às mudanças climáticas é uma questão fortemente debatida na comunidade científica. Como as áreas protegidas ao redor do mundo são estáticas e são normalmente criadas para conter outros tipos de ameaças, a capacidade de proteger a biodiversidade frente às mudanças climáticas é colocada em xeque. Nesse contexto, uma revisão da literatura científica conduzida por Malecha et al. (2023) [3] avaliou a efetividade das UCs brasileiras na manutenção da representatividade de espécies frente às mudanças climáticas. Foram analisados 32 artigos científicos que abordaram essa temática utilizando modelagem de distribuição para o presente e o futuro, resultando em mais de 300 projeções. A revisão indicou a existência de fortes vieses na quantidade de estudos sobre o tema. O viés mais destacado é para o ambiente terrestre em detrimento do ambiente marinho. Apenas um artigo sobre essa temática foi encontrado para o ambiente marinho, indicando uma severa carência de estudos sobre o impacto das mudanças climáticas nas UCs marinhas do Brasil. O Brasil tem 8500 km de costa, com aproximadamente um quarto de seus ambientes marinhos em áreas marinhas protegidas, e, portanto, ter apenas um artigo abordando essa questão é uma grande lacuna de conhecimento.

Os artigos também apresentaram uma distribuição desigual entre os biomas brasileiros. A Mata Atlântica e a Amazônia foram os biomas com o maior número de estudos, com mais de 10 artigos, enquanto o Cerrado teve apenas três. A Caatinga e o Pampa foram severamente subrepresentados, com um artigo cada, e não foi encontrado nenhum artigo sobre os impactos das mudanças climáticas na biodiversidade das UCs do Pantanal. Além disso, houve um viés taxonômico, com plantas representando 69% das projeções, vertebrados 23% e apenas 8% por invertebrados.

Os artigos indicam que, atualmente, apenas uma pequena porção da distribuição das espécies de vertebrados (média = 21,8%) e uma fração ainda menor da distribuição de plantas é representada dentro de UCs (média = 5,6%) e esse cenário deve se agravar no futuro. A partir das comparações das potenciais áreas de distribuição das espécies dentro de UCs no presente e no futuro, os resultados indicam que as UCs no Brasil devem reduzir a representatividade de espécies devido às mudanças climáticas. Em geral, a maioria dos artigos analisados sugere que as UCs brasileiras, em sua atual extensão e configuração, não são eficazes para conter os impactos das mudanças climáticas na biodiversidade. Cerca de 71% das projeções estimadas pelos artigos apontam para impactos negativos na biodiversidade dentro de UCs.

A ineficácia da rede de Unidades de Conservação brasileira em manter a representatividade de espécies frente às mudanças climáticas está relacionada ao deslocamento da distribuição das espécies em resposta a essas mudanças. Como a rede não foi estabelecida considerando as mudanças climáticas, o deslocamento das espécies em resposta a esse processo, reduz potencialmente a sua representatividade dentro de UCs. Assim, uma importante medida para contornar esse problema é aumentar a rede de UCs considerando a redistribuição das espécies em resposta às mudanças climáticas, tornando-a mais robusta às mudanças climáticas em curso. No entanto, o sistema de UCs brasileiro é extremamente enviesado para a Amazônia, que detém quase 50% da rede de UCs terrestres brasileiras. Os outros biomas do país estão longe de alcançar os 30% de áreas a serem protegidas estabelecidos nas Metas de Kunming-Montreal, especialmente o bioma do Pantanal e o Pampa, que têm menos de 5% de sua área dentro de UCs. O estabelecimento de novas UCs no Brasil deve ser estrategicamente focado nos biomas subrepresentados do país e deve considerar explicitamente o processo de mudanças climáticas. Para isso, é fundamental que a definição e o estabelecimento de novas UCs siga um planejamento sistemático de conservação.[7] Essa abordagem inclui diversos conceitos ecológicos como representatividade e complementaridade, além de procurar minimizar conflitos socioeconômicos, sendo aspectos fundamentais a serem avaliados nesse contexto. Tradicionalmente, a abordagem não considera as mudanças climáticas, porém, atualmente, esse estressor tem estado cada vez mais presente nos estudos.

Nesse contexto, estudos com projeções das áreas de distribuição das espécies, como os analisados nas revisões citadas,[1,2,3,4] possuem elevada importância para a identificação de espécies sub-representadas dentro das UCs em cenários de mudanças climáticas e regiões importantes para a conservação, como refúgios climáticos prováveis e hotspots de espécies. Essas abordagens também podem ser usadas para identificar áreas de alto risco climático, que requerem maior esforço e custo para conservação, bem como regiões de baixo risco climático, que devem manter uma maior adequabilidade para as espécies no futuro. Essas análises podem ser usadas no planejamento sistemático para conservação para selecionar áreas para estabelecer novas UCs mais robustas às mudanças climáticas.

 

“Para enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas, é essencial repensar e fortalecer a rede de Unidades de Conservação no Brasil.”

 

O planejamento sistemático eficiente deve abordar múltiplos fatores atuais e futuros e como eles influenciam a eficácia das UCs. Além da necessidade da adição das mudanças climáticas no planejamento sistemático discutido anteriormente, fatores como o padrão de uso e cobertura do solo da região e conectividade também estão intimamente relacionados com a eficácia das UCs. Nos biomas brasileiros, com destaque para a Mata Atlântica, a alta fragmentação das florestas e o consequente isolamento das UCs dificulta o movimento das espécies pela paisagem. Dessa forma, uma das principais respostas da biodiversidade às mudanças climáticas é dificultada. Isso é uma preocupação especial para espécies com mobilidade limitada, que podem não conseguir acessar áreas climaticamente adequadas no futuro. Portanto, restaurar a conectividade entre as UCs é crucial para aumentar a resiliência das espécies às mudanças climáticas, reduzindo seu risco de extinção.

Para enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas, é essencial repensar e fortalecer a rede de Unidades de Conservação no Brasil. Porém, embora as UCs sejam fundamentais para a preservação da biodiversidade, as mudanças climáticas exigem uma abordagem mais dinâmica e adaptativa. A falta de planejamento que considere o deslocamento das espécies e a conectividade entre as áreas protegidas pode comprometer a eficácia dessas unidades no futuro. Portanto, a expansão e o reajuste das UCs, especialmente em biomas menos protegidos, são cruciais para garantir que essas áreas continuem a cumprir seu papel de conservação, mesmo em um cenário de mudanças climáticas aceleradas.

 

Conclusão

As mudanças climáticas representam uma ameaça crescente e urgente para a biodiversidade global. As espécies endêmicas de regiões específicas, sobretudo ilhas e montanhas, são particularmente vulneráveis às mudanças climáticas, enquanto espécies exóticas são indiferentes ou até se beneficiam dessas mudanças. No Brasil, diversos estudos já projetam os impactos das mudanças climáticas sobre sua rica biodiversidade, sobretudo na Mata Atlântica e no Cerrado, mas ainda há lacunas de conhecimento no Pantanal e Pampa e, sobretudo, no ambiente marinho. O Acordo de Paris tem o potencial de reduzir significativamente as ameaças à biodiversidade, embora não seja capaz de eliminá-las completamente. Portanto, além da mitigação das mudanças climáticas, é crucial implementar estratégias de adaptação climática, como a criação e manutenção de UCs. No entanto, para serem eficazes, essas áreas devem ser distribuídas de maneira mais equilibrada entre os biomas brasileiros e considerando as mudanças climáticas projetadas. Além disso, é preciso considerar mudanças de uso e cobertura e promover a conectividade entre as UCs, permitindo deslocamento das espécies em resposta às mudanças climáticas.

 

Capa. Projeções futuras indicam que as espécies nativas e endêmicas são mais vulneráveis às mudanças climáticas que as exóticas, tanto em ambientes terrestres, quanto marinhos.
(Foto: André Borges/ Agência Brasil. Reprodução)
[1] MANES, S. et al. Endemism increases species’ climate change risk in areas of global biodiversity importance. Biological Conservation, v. 257, n. November 2020, p. 109070, 2021. Disponível em: .
[2] MALECHA, A.; VALE, M. M.; MOREIRA, S. M. S. Viés de estudos e impacto das mudanças climáticas na biodiversidade dos biomas brasileiros. In: JORNADA GIULIO MASSARANI DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, TECNOLÓGICA, ARTÍSTICA E CULTURAL, 2021, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: UFRJ, 2021. Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/jgmictac/314940-VIES-DE-ESTUDOS-E-IMPACTO-DAS-MUDANCAS-CLIMATICAS-NA-BIODIVERSIDADE-DOS-BIOMAS-BRASILEIROS. Acesso em: 26 ago. 2024.
[3] MANES, S.; VALE, M. M. Paris Agreement substantially reduces climate change risks to biodiversity in Central and South America. Regional Environemntal Change, n. Ipcc 2021, 2021.
[4] MALECHA, A.; VALE, M. M.; MANES, S. Increasing Brazilian protected areas network is vital in a changing climate. Biological Conservation, v. 288, n. December 2022, p. 110360, 2023. Disponível em: .
[5] GUTIÉRREZ, J. M. et al. Atlas. In: MASSON-DELMOTTE, V. et al. (ed.). Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge: Cambridge University Press, 2021. In Press. Interactive Atlas disponível em: http://interactive-atlas.ipcc.ch/.
[6] MMA. Plataforma oficial de dados do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Brazil, 2023. Disponível em: https://cnuc.mma.gov.br/powerbi. Acesso em: agosto de 2024.
[7] MARGULES, C.R.; PRESSEY, R.L. A framework for systematic conservation planning. Nature, v. 405, p. 243–253, 2000.
Artur Malecha é mestre em ecologia e evolução pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutorando em ecologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mariana M. Vale é professora do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenadora da Sub-rede de Biodiversidade da RedeCLIMA (MCTI) e autora no último relatório de avaliação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC).

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