Confira entrevista com Edviges Marta Ioris, professora do Departamento de Antropologia da UFSC
Aprofundar-se nas dinâmicas sociopolíticas que moldam as relações entre povos indígenas e a sociedade brasileira é o foco das pesquisas de Edviges Marta Ioris, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Com um mestrado em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um doutorado na Universidade da Flórida, Edviges Ioris tem se dedicado a investigar as complexas interações entre os grupos indígenas da Amazônia e do Sul do Brasil, o Estado e as questões ambientais que permeiam esses contextos. “Indiscutivelmente, no que se refere à conservação ambiental, conservação das florestas e das águas, os povos indígenas certamente se destacam como os principais protagonistas”, afirma. Coordenadora do Arandu Laboratório de Estudos em Etnologia, Educação e Sociobiodiversidade, Edviges Ioris aborda temas cruciais como a reivindicação territorial, a construção de redes sociais em ambientes intra e supra-étnicos e a luta por direitos sobre os recursos naturais. “Os povos tradicionais, sejam indígenas, quilombolas, caiçaras, povos que têm direitos territoriais coletivos, vivem um dos contextos mais ameaçadores e violentos dos últimos tempos”, alerta. Suas pesquisas não apenas iluminam as vozes indígenas, mas também trazem à tona as disputas em torno de espaços e políticas de proteção ambiental, refletindo a necessidade de uma maior integração entre saberes acadêmicos e as tradições culturais. “A deslegitimação de formas de conhecimento produzidas pelos grupos dominados tem como consequência lógica a deslegitimação também de seus membros enquanto sujeitos de conhecimento e de direito”, conclui.
Leia a entrevista completa!
Ciência & Cultura – No campo da Antropologia, como você percebe a evolução da presença e contribuição das mulheres ao longo do tempo? Quais foram os avanços e desafios enfrentados por elas nessa área?
Edviges Marta Ioris – Embora ofuscadas, as mulheres sempre tiveram um papel importantíssimo na Antropologia desde os seus inícios, especialmente quando seus estudos começam a sair dos gabinetes para se dirigirem diretamente ao campo para realizar os levantamentos de informações. Entre os nomes mais conhecidos, podemos citar rapidamente Daisy May Bates e Monica Wilson, vinculadas à antropologia britânica, nas primeiras décadas do século XX. Nos Estados Unidos, nomes como os de Ruth Benedict, que defendeu seu doutorado em Antropologia em 1923, e de Margaret Mead, que começou a trabalhar no American Museum of Natural History em 1926, além de conduzir extensos trabalhos de campo na Oceania; sendo considerada precursora nos estudos de gênero. Nos Estados Unidos, ainda, não podemos esquecer Ruth Landes, pioneira nos estudos sobre os negros nas Américas. No Brasil, encontramos Heloisa Alberto Torres, que assumiu a direção do Museu Nacional em 1938, ou Bertha Ribeiro com seus estudos sobre os povos indígenas. Todavia, apesar dessas presenças importantíssimas, na Antropologia, como nas demais áreas do conhecimento científico, poucas mulheres tiveram suas contribuições teóricas e etnográficas reconhecidas, predominando a sua exclusão e invisibilidade. É um processo recente de resgate e a visibilidade de suas presenças e contribuições para o campo da Antropologia, do qual devemos, especialmente, aos esforços dos estudos feministas e de gênero sobre a conformação do campo das Ciências, que trouxeram à luz os respectivos pioneirismos.
Se podemos constatar presença, ainda que tímida, das mulheres desde o início da constituição do campo antropológico, ela foi sucessivamente se ampliando e conquistando vários espaços, não obstante, tenha perpassado por um longo e tortuoso percurso até obter seus devidos reconhecimentos. Essa ausência e invisibilidade das mulheres no trabalho antropológico teve consequências sérias para o conhecimento e compreensão das diferentes sociedades humanas e suas dinâmicas organizacionais, concepções e formulações teórica-metodológicas, traçadas majoritariamente pelo olhar de homens. Destaco, neste sentido, como já no início da Antropologia, nas primeiras formulações teóricas evolucionistas, quando a mulher apareceu com algum protagonismo foi para comprovar a escala inferior onde a humanidade supostamente se encontrava, como nas hipotéticas sociedades dominadas pelo matriarcado. Para os evolucionistas, o matriarcado teria existido em uma fase primeva da humanidade, quando, supostamente, ainda não se tinha conhecimento da reprodução humana, e o pai, ao contrário da mãe, não podia ser identificado. A suposta incapacidade de identificação do genitor masculino conferiria poder às mulheres sobre os homens. Depois de Simone de Beauvoir sabemos que nunca existiram sociedades dominadas por mulheres.
Todavia, essa noção equivocada sobre a evolução das sociedades humanas se reproduziu na Antropologia por quase um século, assim como refletiu no distorcido olhar traçado sobre as organizações das sociedades e dos seus núcleos domésticos, que despolitizou o doméstico, despolitizou a cozinha, atributos designados às invisíveis mulheres, mães e esposas, separados do público, que era o lugar dos homens, da política, do poder e das decisões. O doméstico entendido como tão insignificante quanto o suposto papel da mulher. Entretanto, recentes estudos de etnologia indígena, especialmente conduzidos por mulheres, apresentam o quanto as grandes decisões, as articulações e organizações sociopolíticas dos indígenas se realizaram exatamente naqueles espaços então pensados como despolitizados, ao redor do fogão, com a presença e participação das mulheres, quando não, estando elas no comando. Situação que também encontramos nos estudos clássicos sobre a chefia entre os indígenas Guarani, que historicamente destacaram o papel dos homens frente às representações políticas, naturalizando as chefias como exclusivamente masculinas, que seriam asseguradas pelo privilégio da poligamia do chefe e a produção de excedentes por suas várias mulheres. No entanto, em um rápido levantamento entre as comunidades Guarani encontramos um número significativo delas comandas por mulheres, indicando que a presença feminina em cargos e na organização política é bem mais frequente do que os estudos etnológicos têm observado e registrado. Se olharmos para o cenário político nacional, temos ministra de Estado, deputada federal, além de vários cargos do alto escalão do governo ocupados por mulheres indígenas. Questionada sobre essa grande presença de mulheres na política, a própria ministra Sônia Guajajara tem ressaltado que elas sempre estiveram juntas, mas foram invisibilizadas pelo poder colonial da sociedade não-indígena.
Assim, entendo que um dos principais desafios encontrados pelas mulheres na Antropologia iniciou precisamente com o enfrentamento às essas formulações teóricas que excluíam e desqualificavam os espaços e papéis ocupadas pelas mulheres, tanto nas realidades de suas pesquisas, quanto, obviamente, no cotidiano do trabalho. Nesse sentido, a conquista de mais espaço das mulheres na Antropologia possibilitou também trazer esse olhar excludente, e em decorrência contribuir para melhores formulações teórica-metodológica e melhores compreensões das sociedades e coletivos que estamos estudando.
“Apesar dessas presenças importantíssimas, na Antropologia, como nas demais áreas das conhecimento científico, poucas mulheres tiveram suas contribuições teóricas e etnográficas reconhecidas, predominando a sua exclusão e invisibilidade.”
C&C – A diversidade é um pilar crucial para o avanço da ciência. Como a inclusão de diferentes perspectivas, incluindo a presença feminina, enriquece e amplia as pesquisas em Antropologia?
EMI – Creio que parte da resposta a essa pergunta já adiantei na questão anterior. Na inclusão de diferentes perspectivas que têm trazido contribuições significativas para a pesquisa antropológica eu destacaria três frentes. Primeiramente, os estudos feministas e de gênero, que evidenciaram e questionaram o viés masculino eurocêntrico patriarcal nas formulações e práticas da Antropologia, além de trazerem uma profunda reflexão crítica sobre o corpo e a divisão sexo/gênero nas diferentes sociedades humanas. Essa reflexão permitiu desnaturalizar a construção do corpo e dos papéis das mulheres na sociedade, e, em decorrência dos demais. A partir de então se constituiu um campo imenso e complexo de conhecimento, que não cabe aqui abordar, mas ressaltar a grande contribuição para uma virada epistemológica na produção do conhecimento antropológico. Se os estudos feministas trouxeram a necessária perspectiva da interseccionalidade com a noção de gênero para a compreensão dos fenômenos sociais, os estudos de intelectuais negros e negras nos confrontaram com a interseccionalidade da noção de raça. Nos mostraram que as relações sociais não estavam atravessadas apenas por questões de sexo/gênero, como também a dimensão racial se revelava fundamental para compreender seus conflitos e as desigualdades sociais. E, na terceira frente, mais recente, destacaria os estudos dos e das intelectuais indígenas, que confrontaram as essencializações étnicas e estão trazendo novas epistemologias e possibilidades de diálogo de saberes e de tradições de conhecimento. Estes intelectuais indígenas têm trazido informações oriundas de suas vivências, de suas relações domésticas e com a ancestralidade, com conhecimento da língua, da cosmologia e da história profunda de seu povo, que têm oportunizado novas compreensões que dificilmente um pesquisador não indígena teria condições de alcançar. Muitos deles têm realizado críticas revisões da produção antropológica existente sobre seu povo, que, em muitos casos, desconsideraram conjunturas históricas pelas quais tem passado. São histórias que podem não ter registro oficial, mas estão na memória do seu povo, dos anciãos que foram repassando.
É essa pluralidade de saberes e conhecimentos, cujo leque é ainda muito maior do que estou ressaltando nesse momento, que a ciência hegemônica historicamente desqualificou e deslegitimou como conhecimento de direito, apagando-os ao concebê-los como meros objetos de estudo. São formas de dominação e poder. A estes esforços para o apagamento dessa pluralidade de saberes, Sueli Carneiro tem chamado de processos de epistemicídio, os quais promovem a destituição da racionalidade, da cultura e dos saberes de outros povos, e que constituem uma das formas mais eficazes e duradouras da dominação étnica e racial. A deslegitimação de formas de conhecimento produzidas pelos grupos dominados tem como consequência lógica a deslegitimação também de seus membros enquanto sujeitos de conhecimento e de direito. Portanto, é importante ter presente que não apenas as mulheres foram apagadas ou silenciadas pela ciência hegemônica ocidental, mas também todos os outros modos de conhecimento destoantes dos cânones oficiais do saber, e do poder.
“Um dos principais desafios encontrados pelas mulheres na Antropologia iniciou precisamente com o enfrentamento às essas formulações teóricas que excluíam e desqualificavam os espaços e papéis ocupadas pelas mulheres.”
C&C – A Antropologia desempenha um papel crucial na defesa dos direitos dos povos tradicionais. Como a disciplina contribui para o fortalecimento e proteção dos direitos, identidades e territórios desses povos?
EMI – De modo geral, a Antropologia tem proporcionado contribuições significativas para a compreensão e defesa dos direitos territoriais indígenas, tanto do ponto de vista teórico conceitual, quanto de comprometimento ético e político. Entretanto, esse é um processo relativamente recente, que começou a tomar forma a partir da década de 1970 por aquelas chamadas “Antropologias periféricas”, como definiu Roberto Cardoso de Oliveira, como a Antropologia latino-americana e, especialmente, a brasileira, historicamente comprometida na defesa da vida e dos direitos indígenas. São antropologias que pautaram severas críticas aos cânones hegemônicos de produção de conhecimento antropológico sobre os povos indígenas, que os estudavam como fossem sistemas sociais isolados e a-históricos, e não sofressem os efeitos dos processos da dominação e da violência impostos pelo projeto colonizador. Um dos marcos fundamentais para uma virada política e epistemológica na Antropologia foi estabelecido pela chamada Declaração de Barbados, elaborada e publicada durante o “Simpósio La fricción interétnica en América del Sur fuera de la región andina”, realizado em Barbados em 1971, por um pequeno grupo de antropólogos, com larga atuação entre os povos indígenas de vários países da América Latina, entre os quais estavam três antropólogos brasileiros: Darcy Ribeiro, Pedro Agostinho e Silvio Coelho dos Santos. Com base no dramático quadro de violências apresentado sobre a situação dos povos indígenas por todos os países da América Latina, os antropólogos em Barbados elaboraram a Declaração denunciando os processos de extermínio e etnocídio que continuavam em marcha por, ou com a conivência, dos governos dos estados nacionais, igrejas cristãs. Com severas críticas aos então vigentes cânones do conhecimento antropológico, que seguiam ignorando esses contextos de violências e extermínio que os povos indígenas sofriam, a chamada Declaração de Barbados clamava por uma antropologia comprometida e atuante na defesa da vida e dos direitos dos povos indígenas, e também assinalava para a urgência de novos aportes teórico-metodológicas que lançassem luz sobre esses contextos e processos de dominação decorrentes do projeto colonial, e dos seus efeitos sobre as organizações sociopolíticas e culturais indígenas.
Da Declaração de Barbados aos dias atuais, muitos foram os seus desdobramentos, reapropriações, que talvez seja difícil dimensionar a sua real importância para a Antropologia que se produziu no Brasil desde então, e para o seu engajamento na defesa dos povos indígenas. Todavia, a Antropologia brasileira, especialmente através da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), tem tido um papel da maior importância na defesa dos povos indígenas e de seus direitos territoriais, além de uma larga e referendada produção teórico-metodológica sobre o tema. Não por menos, sofrer tantos ataques de setores de interesses anti-indígenas no país. A sua evidência e reconhecimento foram muito enfatizados no recente julgamento do marco temporal pela maioria dos ministros do STF. É um movimento historicamente presente na Antropologia brasileira, que podemos facilmente identificar ao longo de sua existência, desde as mobilizações para a criação do Parque Nacional do Xingu na década de 1950, o primeiro território indígena demarcado com objetivo explícito de salvaguardar e proteger os indígenas e seus modos de vida. Também mobilizou a sociedade brasileira nos anos 1970 para se opor ao Decreto do então ministro do Interior Rangel Reis que, defendendo com uma suposta emancipação da tutela para “índios aculturados”, pretendia liberar as terras ocupadas pelos indígenas, de destituí-los de sua condição indígena e, por conseguinte, dos direitos sobre seus territórios. Na década de 1980, em torno da Assembleia Nacional Constituinte e das formulações do capítulo sobre os direitos indígenas, foi fundamental a atuação da ABA, que naquele momento era presidida por Manuela Carneiro da Cunha — que presidiu a ABA durante o processo. Entre 1985 e 1986, a ABA também firmou um acordo com a Procuradoria Geral da República para indicar profissionais antropólogos, com formação mínima em mestrado, para a realização de laudos periciais em processos ligados às questões indígenas. Com esse acordo buscou-se assegurar a qualidade técnica dos estudos antropológicos na elaboração destes laudos periciais relacionados aos direitos e problemáticas indígenas.
São muitas as formas de como o campo da antropologia tem dedicado esforços na defesa da vida e dos povos indígenas no Brasil, e continua muito atuante através da sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI/ABA). Há uma enorme bibliografia que pode ser consultada, tanto registrando quanto analisando a constituição da Antropologia no Brasil e os seus vários embates em defesa dos direitos constitucionais dos povos indígenas.
“Se os estudos feministas trouxeram a necessária perspectiva da interseccionalidade com a noção de gênero para a compreensão dos fenômenos sociais, os estudos de intelectuais negros e negras nos confrontaram com a interseccionalidade da noção de raça.”
C&C – Da ideia de primitivismo ao atual protagonismo indígena, como esses processos identitários, territórios e tradições de conhecimento desses povos têm sido estudados na Antropologia?
EMI – Embora a noção do “primitivo”, que constituiu o objeto de estudo da Antropologia em sua fundação, no século XIX, quando se definia como “Ciência dos povos primitivos” e se pensava em uma escala evolutiva as sociedades, ela continuou se reproduzindo de algum modo nas subsequentes teorias antropológicas que buscavam se contrapor do evolucionismo. Entendo, todavia, que o rompimento crítico com essa noção passa a ocorrer mesmo a partir do momento que a antropologia incorporou o projeto colonial em suas investigações e análises, cujos precursores foram George Balandier e Max Gluckman, na França e Inglaterra respectivamente, em meados do século XX. No Brasil, Roberto Cardoso de Oliveira, partindo da noção de situação colonial de Balandier, foi precursor ao trazer a noção de fricção interétnica para abordar os sistemas de dominação do colonialismo que continuava a se reproduzir no mundo indígena no país, mesmo muito após a colonização ter formalmente acabado. Ao trazer o projeto colonial dominador para compreender as conformações sociais dos povos originários, apesar de não terem enfocado, esses estudos deixaram espaço para pensar os processos de resistência destes povos frente aos processos de dominação colonial, das suas lutas e modos de articulação política. No Brasil, este olhar terá uma atenção privilegiada pelo professor João Pacheco de Oliveira, que, ao focar os processos de mudanças e resistências dos povos indígenas nos contextos de dominação, toma a terra, os territórios, como categoria analítica central para, então, lançar luz sobre todos estes modos de articulação e protagonismo indígena mobilizados em sua defesa. A luta por seus territórios tem sido a principal motivação das lutas dos povos indígenas. E é na defesa por seus territórios que reafirmam seus pertencimentos étnicos e suas tradições de conhecimento que se relacionam àquele espaço territorial. A ministra dos Povos Indígenas tem enfatizado em suas falas que a luta pela “mãe-terra” é a “mãe de todas as lutas”. É dessa luta que podemos compreender o protagonismo indígena observamos recentemente, que sempre se fez presente na defesa de suas vidas, mas que no atual contexto político tem ocupado espaços críticos em várias instâncias do alto escalão das instâncias de poder no Brasil, seja no executivo, no Congresso, nas universidades. E o importante é que esse protagonismo indígena tem sido estudado também pelos intelectuais indígenas, trazendo compreensões muito elucidativas a partir das vivências junto ao seu povo de origem. Intelectuais como Tonico Benites, Eloy Amado Terena, Gersem Baniwa, Jozileia Kaingang, Felipe Tuxá, apenas para citar alguns, têm apresentado dissertações e teses referências para compreender os processos de luta e resistência dos indígenas, que muitos deles vivenciaram desde que eram crianças. Ouviram e aprenderam com seus pais, avós, anciões que empreenderam estas mobilizações pela defesa de seus territórios.
C&C – Quais são as principais ameaças enfrentadas pelos povos tradicionais atualmente, especialmente considerando o contexto do Brasil?
EMI – Os povos tradicionais, sejam indígenas, quilombolas, caiçaras, povos que têm direitos territoriais coletivos, vivem um dos contextos mais ameaçadores e violentos dos últimos tempos. Entre estes, com certeza os povos indígenas são os principais afetados, com a intensificação das invasões às terras indígenas por todo o país, especialmente depois da eleição de Bolsonaro, mas que tem persistido mesmo depois da mudança de governo. Conforme o Relatório anual sobre Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), de 2023, por todo o país se registrou a continuidade das invasões das terras indígenas, altos índices de ações violentas, de assassinatos, suicídios e mortalidade na infância, além de exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos à saúde e ao patrimônio, que ocorreram em pelo menos 202 territórios indígenas, em 22 estados do Brasil. Um dos maiores problemas relacionados à invasão de terras indígenas é a exploração ilegal de terras, como o desmatamento e o garimpo, que acarretam uma série de problemas ambientais, como morte de animais e plantas, contaminação dos rios e de outros recursos que fazem parte da rotina de sobrevivência dos povos indígenas. Junte-se a este contexto de violência, os esforços do Congresso em aprovar o Projeto de Lei do chamado “marco temporal”, para estabelecer que o direito ao território deve ser concedido apenas aos povos indígenas que comprovarem que ocupavam suas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, sem considerar os históricos contextos de violência que forçaram remoções da maioria dos povos indígenas.
Além de flagrante inconstitucionalidade do Projeto de Lei do marco temporal, também é preocupante a proposta da nova Lei de Licenciamento ambiental no Congresso, para flexibilizar a sua obtenção, com até uma licença autodeclaratória. A proposta também afeta diretamente os indígenas por excluir a análise de impactos diretos e indiretos e da adoção de medidas para prevenir eventuais danos causados pelos empreendimentos que serão implementados. Além de outro Projeto de Lei que afetará profundamente as terras indígenas e as condições de vida de suas comunidades é o que visa permitir a mineração industrial e artesanal, a geração hidrelétrica, a exploração de petróleo e gás, e a agricultura em larga escala nas Terras Indígenas, removendo o poder de veto dessas comunidades sobre as decisões que impactam suas terras. Se aprovado, igualmente promoverá aumento do desmatamento, das invasões de terras indígenas e da violência contra esses povos. Enfim, como o professor João Pacheco de Oliveira tem assinalado, na última década foi se fechando um cerco contra os direitos territoriais indígenas, em claros esforços de retirar os últimos fragmentos dos territórios indígenas que restam aos povos originários deste país, para inseri-los no mercado de terra. A ganância e a cobiça em transformar cada centímetro do que resta das terras indígenas em uma mercadoria rentável seguem promovendo o genocídio indígena que se iniciou com o projeto colonizador, no século XVI. Um verdadeiro holocausto, que acabou com praticamente 90% da sua população e se apropriou de 87% de seus territórios.
“Os dados nos mostram que os territórios dos povos tracionais, indígenas ou não, são responsáveis pela proteção de um terço das florestas no Brasil.”
C&C – A defesa do meio ambiente é crucial para a sobrevivência desses povos. Como a preservação do meio ambiente é crucial para a continuidade das tradições e da vida dessas comunidades?
EMI – Indiscutivelmente, no que se refere à conservação ambiental, conservação das florestas e das águas, os povos indígenas ocupam um papel central nas discussões, e certamente se destacam como os principais protagonistas. Todavia, eles têm um modo diferente de conceber essa problemática. Enquanto o que enxergamos como “natureza”, como um ecossistema biológico, para os povos indígenas é compreendido como um ser sagrado, espiritual, que está habitado sendo conformado por múltiplas formas de vida que precisam ser respeitadas e tratadas com respeito. A muitos delas se deve obediência. Para os povos indígenas, não apenas os humanos, mas também plantas, animais, minerais e mesmo espíritos são considerados sujeitos que pensam, sentem e agem e interagem no mundo, sujeitos com direitos a sua existência. O que a ciência ocidental concebe como natureza, afastada do humano, do social, para os indígenas estas dimensões não se encontram separadas, nem dos seres espirituais. A concepção de vida, de mundo, de floresta, não passa por essas separações dualistas entre natureza e cultura, como domínios opostos. Em sua maioria se definem como um corpo-território, como corpo-bioma, corpo-semente. Os Guarani, por exemplo, compreendem-se como corpo-semente. Precisam, desse modo, de seus territórios, das terras por onde esse corpo-semente possa germinar, brotar, para seguir reproduzindo seus modos de existência. Um corpo que se constrói em relação com o ambiente, para o qual o equilíbrio e a saúde estão também diretamente atravessados por essa relação com o ambiente.
É a partir destas compreensões que os indígenas estabelecem as relações e interações com seu habitat, com os demais seres que nele se encontram, de onde tiram seu sustento, seu alimento, seus cuidados com a saúde, sendo compreendidos de acordo com suas cosmologias. Portanto, esse ambiente deve estar preservado, inteiro, para poderem ter um corpo saudável, uma vida saudável. Como os Ianomami, também entendem a floresta como um repositório de conhecimentos e saberes. É o importante alerta que Davi Kopenawa nos traz em suas andanças por várias partes do mundo, ao publicar seu livro A Queda do Céu, denunciando o acelerado processo de destruição ambiental que estão sofrendo com a invasão do garimpo ilegal em suas terras. Temem que com o fim das florestas os humanos sejam novamente aniquilados, como ocorreu nos primeiros tempos. Ele explica em seu livro que se as florestas acabarem, os rios vão desaparecer, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar, as pedras vão rachar e a terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os xapiri, seres que sustentam o céu do alto das florestas, fugirão para muito longe, e quando não houver mais nenhum deles para segurar o céu, ele desabará sobre todos nós. Por outros modos de conhecimento, elaborado com base em tradições milenares, os Ianomami sabem muito bem que a destruição ambiental, a destruição das florestas, é a destruição das condições de vida no planeta. Para eles, de modo muito cruel, a destruição ambiental que vivenciam no presente, provocada pelo garimpo ilegal em suas terras, tem sido a principal fonte das doenças e das epidemias que têm dizimado comunidades inteiras. Semelhante situação ocorre entre os Wixarica, no México, que também sofrem com a mineração em seus territórios, em suas áreas de peregrinações sagradas. Os Wixarica também compreendem que esta exploração está arrancando o coração do planeta e que, quando a mineração terminar de arrancar o coração, o mundo morrerá, acabará. Enfim, para estes povos que têm essas compreensões e interação com o mundo e os múltiplos seres que o habitam, e os exemplos e situações poderiam se multiplicar, um ambiente conservado, com suas florestas, águas e solos integro, é condição para reprodução de seus modos de vida. É condição para a continuidade da vida e das tradições de conhecimentos desses povos. Lembrando ainda as palavras de Davi Kopenawa, quando ele diz que é na floresta que a sabedoria vive; onde ela está guardada. Ele nos diz, muito sabiamente, que “sem a floresta não tem história; não tem pensamento de nada”; é o vazio. A história do povo Ianomami não se dissocia das florestas onde habitam. Ao que defendemos de “conservação do meio ambiente”, os Ianomami defendem como a conservação da sua própria história.
C&C – Além de ser essencial para a sobrevivência dos povos tradicionais, por que é importante defender essas comunidades e o meio ambiente para a sociedade em geral?
EMI – Como a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, tem enfatizado em muitas de suas falas públicas, os territórios indígenas preservam 80% de toda a biodiversidade do planeta. São as áreas onde ocorre a menor taxa de desmatamento, onde as florestas e as águas abrigam uma incalculável diversidade de espécies vivas. Os dados nos mostram que os territórios dos povos tracionais, indígenas ou não, são responsáveis pela proteção de um terço das florestas no Brasil, sendo que só terras indígenas protegeram 20% do das florestas no país. Sem estas áreas de proteção ambiental, certamente os efeitos da crise climática que já estamos vivendo se agravarão ainda mais, provocando mais secas, inundações, ciclones e outros eventos em todo o país. E essa preservação resulta não das leis de proteção ambiental impostas sobre eles, mas como resultado dos seus modos sustentáveis de usar e se relacionar como seu território, com o ambiente e seus recursos. Porque os povos indígenas sempre usaram formas adequadas e manejo dos recursos naturais, cujas práticas tendem não só a sua conservação, mas, simultaneamente, a promoção da biodiversidade das espécies. Já são muitas as pesquisas realizadas que têm apresentando evidências de como a Floresta Amazônica foi moldada pelos esforços dos povos indígenas, assim como de que as espécies predominantes da flora amazônica foram plantadas e cultivadas por seus habitantes originários. As matas de araucárias, no sul do Brasil, um ecossistema que compõe o bioma Mata Atlântica, também apresentam fortes evidências arqueológicas de que se constituíram como resultado da ação humana, como floresta antropogênica, cuja expansão ocorreu cerca de 2000 anos atrás, justamente quando ocorreu um crescimento das sociedades complexas e hierárquicas na América do Sul. Além das florestas, o arqueólogo Eduardo Góes Neves, com grande domínio sobre o tema, nos mostra como a Amazônia foi um importante centro de domesticação de plantas, bem como do manejo de plantas não domesticadas. Ele também destaca as evidências da intensificação no cultivo de plantas, como a mandioca e o milho, ocorrendo simultaneamente aos primeiros sinais de produção dos solos férteis e produtivos, também resultado do manejo humano, conhecidos como “terras pretas de índio”.
Enfim, já temos muitos estudos assinalando este enorme conhecimento dos povos indígenas sobres as florestas onde habitam e de suas práticas de manejo das espécies que promoveram biomas com uma diversidade biológica extraordinária, sustentável, saudável. Quando os colonizadores chegaram aqui as florestas com sua admirável diversidade biológica eram densamente povoadas por populações humanas. Foi o colonizador que começou a exaurir os seus recursos com uma intensa e devastadora exploração, e iniciou a sua devastação, e tomou as dimensões que conhecemos atualmente. A Mata Atlântica conta hoje com apenas 7% da sua cobertura original em bom estado de conservação. É interessante notar o movimento que estes estudos apontam. Enquanto no passado as florestas se ampliaram na medida que povos indígenas expandiam sua ocupação territorial, como foi o caso da Amazônia, das matas de araucárias, das áreas de castanhais, etc., a chegada do colonizador foi promovendo exatamente o contrário, reduzindo sucessivamente as florestas à medida que avançou a sua ocupação. E esta drástica redução que acompanhamos tem levado ao desaparecimento sucessivo de uma variedade imensa de plantas e animais, a uma perda da biodiversidade com sérias implicações para a reprodução de muitas espécies, assim como da própria vida. Assim que, vivenciando as recentes e dramáticas catástrofes climáticas, podemos afirmar com toda a segurança que dependemos desesperadamente da manutenção das terras indígenas no Brasil. E retomo novamente as palavras da ministra do MPI, sem o cuidado dos indígenas com o meio ambiente, a crise climática se agravará, provocando secas, inundações, ciclones e outros eventos severos. Precisamos deste cuidado dos povos indígenas, daqueles que historicamente manejaram e ampliaram as florestas que habitavam, para frear a escalada da destruição do planeta que vivenciamos atualmente. De outro modo, como nos alerta Davi Kopenawa, o céu cairá, desabará, e será sobre todos nós, não só sobre os Ianomami. As densas fumaças que se alastram por todo país nestes dias, produtos das queimadas criminosas praticadas em várias partes do Brasil, mostraram claramente o quanto pode estar próxima à queda do céu sobre as nossas cabeças.