Em um país que vivenciou a maior tragédia sanitária de sua história, o enfrentamento à pandemia da Covid-19 se tornou um teste decisivo para a ciência e para os valores democráticos. Nesse cenário, a desinformação emergiu como um dos maiores inimigos, alimentando negacionismos e desacreditando estratégias cientificamente comprovadas. Entre as vozes que resistiram a essa onda destrutiva está a da infectologista Luana Araújo, uma defensora incansável da ciência e da vacinação em massa, que ganhou destaque por sua breve e emblemática passagem pelo Ministério da Saúde durante o governo Bolsonaro.
Luana Araújo, formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em Saúde Pública pela Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos, trouxe ao debate público um discurso pautado pela ciência e pela transparência. Em um governo que abraçava o uso de medicamentos ineficazes, como a cloroquina, e desdenhava das medidas preventivas, sua nomeação para uma secretaria especial foi vista como um sopro de esperança. No entanto, a esperança durou pouco: sua saída em menos de dez dias evidenciou os embates éticos e científicos que marcaram a condução da pandemia no Brasil.
Sua presença na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid consolidou sua posição como uma das vozes mais contundentes contra o negacionismo institucionalizado. Na ocasião, a médica destacou como a desinformação contribuiu para a devastadora taxa de mortalidade no Brasil — mais de 720 mil mortes, um número muito superior à média mundial, demonstrando o custo humano de decisões políticas descoladas da ciência. Para Luana Araújo, o combate à pandemia foi mais do que um desafio médico; foi um embate contra a manipulação e a distorção deliberada de informações, que enfraqueceram a confiança da população nas medidas de proteção.
Além de sua atuação no Brasil, Luana Araújo teve uma trajetória internacional voltada ao fortalecimento de sistemas de saúde, trabalhando para reduzir desigualdades no acesso a insumos e vacinas em diversos países. Esse olhar global, aliado à experiência prática, a transformou em uma liderança na defesa de políticas públicas embasadas na ciência. Seu blog, Des-Infectando, reflete seu compromisso com a disseminação de informações confiáveis e acessíveis, desmistificando conceitos e enfrentando mitos sobre saúde pública.
Nesta edição especial da revista Ciência & Cultura, que aborda os impactos da desinformação sobre a democracia e os direitos humanos, Luana Araújo é a convidada de Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Em uma conversa franca, a médica compartilha sua visão sobre os desafios de comunicar ciência em tempos de polarização, sua breve passagem pelo governo e a importância de lideranças comprometidas com a verdade para reconstruir a confiança nas instituições e na democracia.
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Renato Janine Ribeiro – Esta edição tem como tema “Desinformação, Democracia e Autoritarismo”. Nosso ponto de partida é que a democracia está seriamente ameaçada pela desinformação. E a desinformação não é apenas a ausência de informação: é a mentira. Em inglês, há uma diferença entre “mis” e “dis”: “misinformation” seria uma má informação, ou seja, uma informação equivocada, enquanto “disinformation” seria uma operação deliberada para intoxicar as pessoas com essa informação falsa. Luana Araújo, que vamos entrevistar hoje, nasceu no interior de São Paulo, em Andradina. Fez faculdade no Rio de Janeiro, especialização em São Paulo e mora há bastante tempo em Belo Horizonte. É infectologista e mestre em Saúde Pública pela Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos. Ela ganhou destaque na CPI da Covid. Na ocasião, havia sido convidada para assumir uma secretaria especial no Ministério da Saúde para o enfrentamento da pandemia. No entanto, o Ministério, na época do então presidente Jair Bolsonaro, estava sob gestão de negacionistas que, de forma perversa, conduziram uma campanha contrária às medidas de combate à Covid. Isso levou o Brasil a registrar uma taxa de mortalidade muito superior à média mundial. Se seguíssemos a proporção global, teríamos registrado cerca de 180 mil mortes — menos de 1 por mil habitantes. Contudo, no Brasil, tivemos 720 mil óbitos, ou seja, mais de 500 mil mortes além da média estatística. É um grande prazer recebê-la aqui e começar essa série de entrevistas deste número especial da revista Ciência & Cultura com você. Para começar, gostaria de perguntar o que a levou a aceitar o convite para a Secretaria e como foi essa experiência tão breve.
Luana Araújo – Boa noite, muito obrigada por me receber aqui, fico imensamente feliz. Acredito que preciso voltar um pouco no tempo para explicar de forma mais clara para todos. Durante a pandemia, eu estava em Baltimore, nos Estados Unidos, estudando e trabalhando, quando fui convidada por uma organização internacional para atuar no fortalecimento de sistemas de saúde ao redor do mundo, com foco no enfrentamento da pandemia. Não sei se todos se lembrarão daquele momento inicial, mas enfrentávamos dificuldades não só no diagnóstico, como também na distribuição de insumos para os sistemas de saúde. E, mais do que isso, havia o desafio de disponibilizar e utilizar esses insumos adequadamente nos territórios. Um caso clássico da época é o das vacinas, que, no início, exigiam uma rede de ultrafrios — precisavam ser armazenadas a menos 70 °C —, e ninguém tinha essa infraestrutura de freezers espalhada pelo país para operar nessas condições. Uma das minhas funções era justamente diagnosticar os sistemas de saúde, identificar os gargalos e trabalhar para que as pessoas tivessem acesso a tudo o que, teoricamente, os países mais desenvolvidos já dispunham com maior facilidade. A ideia era reduzir as desigualdades nos sistemas de saúde para enfrentar a pandemia de forma mais equitativa. Cheguei a trabalhar simultaneamente em quatro países diferentes. Foi uma experiência desafiadora e muito intensa.
“Não sei onde estavam com a cabeça quando me convidaram para aquele cargo, mas sei onde estava com a minha: na tentativa de usar meu conhecimento e capacidades para ajudar a população do meu país.”
RJR – Quais países, Luana?
LA – Coreia do Sul, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Estados Unidos. Cada um com suas dificuldades, peculiaridades e facilidades. Eram sistemas bastante distintos, o que exigia uma grande adaptabilidade das estratégias. Foi por conta desse trabalho – além do fato de ser infectologista e sanitarista com experiência internacional – que recebi o convite para integrar a Secretaria de Combate à Covid. Foi uma surpresa à época, porque tínhamos um histórico péssimo das pessoas que ocupavam o mais alto cargo da saúde pública no país. Mas, então, houve essa aproximação entre o Ministério da Saúde e algumas organizações internacionais, e acabei sendo convidada. Lembro que, naquela época, cerca de quatro mil pessoas morriam diariamente no Brasil por Covid. Pensando nisso, e também na possibilidade de implementar medidas que não exigiam grandes esforços, apenas organização do sistema e um mínimo de bom senso nas decisões, decidi aceitar. Foi assim que cheguei lá. Mas, da mesma forma que cheguei, saí. Não faria e não chancelaria praticamente nada do que foi proposto naquele momento. Estamos falando do uso inadequado ou incorreto de medicamentos no contexto da Covid – leia-se hidroxicloroquina, ivermectina e proxalutamida –, além de outros absurdos que ocorreram naquela época. Muito menos compactuaria com comportamentos contrários às medidas não farmacológicas de controle da pandemia, como dizer que máscaras não funcionavam. Não sei onde estavam com a cabeça quando me convidaram para aquele cargo, mas sei onde estava com a minha: na tentativa de usar meu conhecimento e capacidades para ajudar a população do meu país. Não deu certo. Fiquei muito triste, não por perder a posição, mas pela oportunidade perdida, como nação, de fazer diferente.
RJR – Você é infectologista e sanitarista. Creio que sua formação e residência sejam em infectologia, e seu mestrado, em saúde pública. Mas você poderia elaborar um pouco mais sobre a diferença entre essas áreas?
LA – Sem dúvida. Fiz a faculdade de Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a residência em infectologia na mesma instituição. Atuei como infectologista tanto na atenção primária quanto na terciária, nos sistemas público e privado, por bastante tempo. Todo infectologista tem uma proximidade muito grande com a saúde pública, principalmente pelos pacientes que atendemos e pelas patologias que tratamos. Muitas dessas doenças têm forte relação com os determinantes sociais de saúde, o que nos dá uma maior familiaridade com os diversos extratos da população e com o sistema de saúde em si. Tive, por exemplo, a oportunidade de trabalhar em uma cidade enfrentando um surto de sífilis em gestantes. Sífilis é uma doença que muitos acreditam estar erradicada, mas, na verdade, é uma epidemia crescente no Brasil – e isso é trágico. As gestantes são o único grupo que tem a obrigação de se testar para sífilis, pois isso faz parte do pré-natal. A sífilis, geralmente silenciosa, é uma infecção sexualmente transmissível que pode causar lesões primárias nos órgãos genitais. No caso das mulheres, essas lesões frequentemente são internas, como no canal vaginal, tornando-as invisíveis. Não doem, não sangram, não têm secreção. A doença pode evoluir e se disseminar pelo corpo, e, em mulheres grávidas, atingir o feto, causando malformações ou até abortamento. Quando essa cidade identificou o surto, percebi que não havia infectologistas para apoiá-los. Fui para lá para ajudar temporariamente, mas o que era para ser uma intervenção breve tornou-se um trabalho de dois anos. Resolvemos o surto inicial e, a partir disso, identifiquei outros problemas e ajudei na reorganização da cidade. Esse processo foi a base da minha aproximação com a saúde pública. Ao final, alcançamos excelentes resultados, e outras cidades passaram a querer sistemas semelhantes. Infelizmente, percebi que não conseguiria levar esse modelo adiante sozinha. Procurei diversos centros de ensino e universidades no Brasil, mas ninguém se interessou, porque achavam que trabalhar com atenção primária e infectologia era algo “menor”. Isso foi muito frustrante. Então, resolvi buscar oportunidades fora do país. Escrevi para grandes universidades americanas perguntando se tinham interesse em trabalhar com saúde global em territórios como o nosso. Todas me responderam positivamente, oferecendo bolsas de estudos em saúde pública. Entre essas respostas, recebi uma proposta da John Hopkins, que não pude ignorar. Fui para lá com uma bolsa de estudos – a Sommer Scholarship – sendo a primeira latino-americana a recebê-la. Foi uma oportunidade incrível, que me permitiu transformar minha experiência prática e o bom senso de minha formação médica em uma bagagem técnica sólida e de ponta. Foi assim que comecei minha jornada na saúde pública.
RJR – Por que você acha que a profissão médica, que tem o juramento de Hipócrates e um compromisso com a vida, acabou sendo um terreno tão fértil para o negacionismo? Por que o Conselho Federal de Medicina (CFM) e outros órgãos parecem fazer quase militância a favor de práticas supersticiosas ou falsas, como o uso de ivermectina ou cloroquina, que você mencionou?
LA – Acho que isso é quase uma questão fractal. Vemos esse fenômeno não apenas na área da saúde, mas na sociedade como um todo. É algo que alimenta o populismo e a concentração de poder. Quanto mais ignorante é a população e quanto maior a ilusão de conhecimento, mais fácil é controlá-la. Em vez de promover o senso crítico e oferecer informações suficientes para que as pessoas consigam discernir com clareza, separar o joio do trigo e ter uma compreensão mais apurada sobre a própria saúde ou sobre o campo em que atuam, opta-se por mantê-las vulneráveis. E quando alguém está suscetível, você trabalha com o ego e a vaidade, não com o conhecimento ou com o que aquela pessoa realmente produz. A medicina não está isolada disso. Apesar do juramento que fazemos, ele tem se tornado cada vez mais frágil, justamente porque foram colocadas à frente dele recompensas incompatíveis com o exercício ético da profissão. Hoje, é o dinheiro a qualquer custo, o poder a qualquer custo, a proximidade com as instâncias decisórias a qualquer custo. E as pessoas se deixam levar. Estamos na era das redes sociais, da gratificação instantânea, do clique, dos seguidores. Isso vai enredando as pessoas, que acabam deixando de lado aquilo que realmente importa. Só que, quando falamos em saúde, estamos lidando com sofrimento, com vida ou morte. Aí a coisa fica mais grave, porque não se trata apenas de escolhas questionáveis, mas de crimes, de ações que têm um impacto muito sério.
“Estamos imersos em um ambiente onde há uma produção massiva de informações de baixíssima qualidade – ou, pior, de desinformação feita dolosamente, com intenção clara.”
RJR – Uma vez, conversando com um médico ilustre de São Paulo, ele me contou que tinha facilidade em conseguir verbas no Congresso para a instituição dele porque já havia operado o coração de vários parlamentares importantes. Ele usava isso para o bem, claro. Mas é impressionante o poder literal de vida ou morte que um médico tem. Isso é muito grave. E algo que percebo faltar na formação médica é empatia. Parece faltar essa percepção de solidariedade com a pessoa que sofre. Gostaria de falar sobre uma expressão que você cunhou, “esgotosfera”. Você é uma grande comunicadora de ciência, explica as coisas com muita clareza, e isso foi fundamental tanto durante a pandemia quanto depois, já que a ofensiva de desinformação em saúde persiste. Então, como surgiu a ideia de “esgotosfera” e como você a define?
LA – Acho que foi no desespero! Esse mecanismo de fabricação de notícias falsas não é novo. Já vemos isso contra vacinas há muito tempo, e não apenas no Brasil. Lembro de um estudo extremamente fraudulento de um sujeito criminoso que associou a vacina contra o sarampo ao autismo. Esse foi o grande caso que as pessoas identificam como um marco do movimento antivacina de forma mais ostensiva – e que ainda persiste. A pandemia, no entanto, foi uma oportunidade gigantesca para expandir esse mecanismo. Acho que essas pessoas perceberam que ali havia uma oportunidade de negócio. Porque quem desinforma não faz isso por prazer: elas ganham dinheiro e poder. Quando me dei conta de que estávamos mergulhados em um mar de chorume intelectual, em um ambiente de puro dejeto moral e cognitivo, pensei: “Isso é uma esgotosfera, não é possível!”. Acredito que a definição é essa: estamos imersos em um ambiente onde há uma produção massiva de informações de baixíssima qualidade – ou, pior, de desinformação feita dolosamente, com intenção clara. Estamos convivendo nesse ambiente, nessa esgotosfera.
RJR – Você comentou que existe um interesse econômico, monetário, das pessoas que produzem essa desinformação. Como se dá esse interesse? O que ganha um médico que faz propaganda contra a vacina, por exemplo?
LA – Ganha dinheiro, de forma muito direta. Os Estados Unidos chegaram a medir, há alguns anos, o tamanho da indústria da desinformação em saúde, e estamos falando de algo na casa dos bilhões. É assustador. Por quê? Cada vez que alguém inventa uma desinformação relacionada a qualquer processo de saúde, imediatamente liga essa falsa informação a uma pseudo-solução para o problema, oferecida exatamente por quem espalhou a notícia falsa. Muitas das pessoas que disseminaram a ideia de que vacinas causam problemas graves de saúde são as mesmas que vendem protocolos de “desvacinação”. Recentemente, houve o caso de duas cientistas condenadas na justiça por desmentirem um sujeito que afirmava que diabetes – uma das doenças mais estudadas pela ciência, com mecanismos de surgimento bem conhecidos – era causada por infecção parasitária. E qual era a intenção dele? Vender um protocolo chamado de “desparasitação”. Essas duas cientistas, excelentes comunicadoras de ciência, foram condenadas porque desmentiram esse sujeito e, segundo ele, “atrapalharam as vendas” do seu tratamento. Essa ligação é direta. Além disso, existem outras conexões possíveis, como o aumento no número de consultas, parcerias espúrias com laboratórios farmacêuticos, farmácias de manipulação e laboratórios de análises clínicas. Vemos uma rede que se alimenta dessa desinformação, que lucra com os danos causados à saúde da população. E, infelizmente, no Brasil, isso não é tipificado como crime contra a saúde pública. Outro problema gravíssimo, mas com pouca exposição midiática, é o uso desenfreado de hormônios e anabolizantes. Observamos problemas cardiovasculares surgindo, infartos em pacientes jovens e previamente saudáveis, e a culpa recai sobre as vacinas. Isso mostra como existe uma enorme teia de atores, cada um com sua participação nesse esquema que, para mim, é criminoso. (Figura 1)
Figura 1. Luana Araújo em depoimento durante a CPI da Covid
(Legenda: Waldemir Barreto/Agência Senado. Reprodução)
RJR – Só para esclarecer, a SBPC divulgou uma nota reprovando a condenação dessas duas divulgadoras científicas, e eu estou tentando, há quase dez dias, uma audiência com o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para dizer a ele, com todo respeito, que a comunidade científica está à disposição para esclarecer dúvidas.
LA – É um escárnio. Não só a população acaba sendo vítima dessa informação incorreta, espalhada sem qualquer barreira, como, quando alguém resolve desmentir essas histórias com base em evidências científicas, é criminalizado de alguma forma, condenado de algum jeito. Para mim, isso é um escárnio e mais uma representação da esgotosfera.
RJR – Isso é assustador. Queria conectar essa questão ao caso das propagandas. Porque aparecem muitas pra mim na internet, principalmente relacionadas à saúde, e quase todas seguem o mesmo padrão: começam com algo curto, pedindo atenção para um produto “milagroso” que as indústrias farmacêuticas ou os médicos “não querem que você saiba”. Normalmente citam um suposto médico ou pesquisador com um nome genérico, daqueles que você não encontra no Lattes. É uma loucura, e todas seguem o mesmo modus operandi: discursos longos, repetitivos. Deve funcionar muito bem, porque é extremamente recorrente.
“Comunicar é entender as necessidades reais das pessoas e unir recursos para oferecer soluções que atendam a essas demandas de forma concreta, baseada em diagnósticos, e não em inferências.”
LA – Funciona, porque, do contrário, ninguém faria isso. É uma “receita de bolo” que infelizmente boa parte da população, mesmo percebendo algo errado, não tem condições, novamente, por falta de educação, de se posicionar contra. Não é sobre formação técnica; ninguém precisa ser médico, biólogo ou farmacêutico para identificar esses problemas. São questões básicas que deveriam ser abordadas na educação básica. Mas essa falha educacional impede que a população desenvolva um senso crítico mínimo. Na CPI da Covid, havia uma pessoa com alta formação teórica na área da saúde que não sabia diferenciar vírus de protozoário. Como esperar que a população em geral consiga reconhecer essas estratégias de venda? E é disso que se trata: estratégias de venda. Textos longos e repetitivos, que usam termos desconhecidos, mas que parecem sofisticados, prendem a atenção. Quanto mais tempo o espectador permanece assistindo, maior a remuneração para quem publicou o vídeo. Você apontou algo central: há sempre o discurso de que “a indústria não quer que você saiba” ou “o governo não quer que você saiba”. O tom conspiratório está lá, prometendo revelar um segredo por uma módica quantia. É triste, porque, depois de tanto tempo, esses sinais deveriam ser evidentes como manipulação, mas as pessoas não têm o senso crítico necessário para perceber. E há sempre um pesquisador “injustiçado”, que só é reconhecido “lá fora”, um herói marginalizado que aparece como o grande salvador. Recentemente vi um anúncio de um livro de uma suposta médica, em que a orelha – onde geralmente se destacam opiniões sobre a obra – dizia: “Este livro é horrível”. A assinatura? “Indústria Farmacêutica”. Achei que fosse uma sátira, mas não era. É real. Chega a um ponto em que você ri, chora ou respira fundo para seguir em frente, porque não é fácil.
RJR – Última pergunta. O que te levou à comunicação científica? Fez algum curso ou treinamento?
LA – A vida. Sempre acreditei que parte de uma boa formação médica é saber se comunicar com o paciente. Mas isso não é algo em que somos devidamente treinados. Na faculdade de medicina, essa habilidade depende muito de iniciativas individuais. Se você teve um professor que admirava e que sabia se comunicar bem no ambulatório, talvez se inspire a replicar. Mas isso não faz parte da estrutura curricular que desenvolve competências médicas. Na infectologia, essa comunicação é essencial, porque lidamos com doenças de longo prazo, cuja adesão do paciente é crucial para o sucesso do tratamento. Quando fui para a saúde pública, entendi que precisava ampliar essa escala: comunicar às pessoas o que estava sendo feito, por que estava sendo feito e com base em quais dados. Durante a CPI da Covid, vi isso se concretizar. Não era uma oportunidade de dialogar com os parlamentares presentes, mas sim com as pessoas assistindo de casa, que muitas vezes tinham pouca noção sobre boas práticas científicas e médicas. Foi um momento único de comunicação. Antes da CPI, eu tinha uma rede social pessoal com cerca de 7 mil seguidores. Ao final daquele mesmo dia, eram mais de 90 mil. Hoje, são quase 350 mil pessoas. Isso aconteceu porque percebi a necessidade de enfrentar o que vivíamos, indo além das questões técnicas da infectologia ou da saúde pública: era preciso comunicar às pessoas sobre riscos adequados, o que fazer, responder às dúvidas mais comuns. Além disso, foi uma forma de me defender. Durante a CPI, fui alvo de ofensas sexistas, desde “prostituta” até outras expressões que buscavam desqualificar minha competência e presença naquele espaço. Isso é algo que acontece com todas as mulheres que alcançam projeção. Essas agressões vinham de parlamentares e pessoas com poder aquisitivo para patrocinar campanhas na internet. Entendi que a única forma de me defender era me dirigir diretamente às pessoas, demonstrar minha competência e criar uma relação de confiança. O cenário de agressões e ameaças era um grande teatro para minar essa relação. Sempre acreditei que as pessoas devem estar no centro de tudo o que fazemos, seja na medicina, seja na ciência. A ciência existe para explicar o mundo às pessoas, para que vivam de forma mais harmônica com o planeta e tenham saúde. Como essa abordagem se mostrou eficaz, acabei assumindo essa posição de comunicadora. Pelo retorno que recebo, sinto que tem sido útil para as pessoas. (Figura 2)
Figura 1. Campanha de vacinação contra a Covid-19 sofreu desinformações e críticas, mas imunização salvou vidas de milhares de brasileiros
(Foto: Paulo Pinto/ Agência Brasil. Reprodução)
RJR – Tem sido muito útil. Gostaria de, para finalizar, fazer um comentário sobre a existência de dois desafios importantes para as profissões da saúde. Levando em conta que devemos muito a elas — como à saúde coletiva, que trabalha em grande escala e não apenas com a área propriamente biológica, mas também com a área social, sociologia, saneamento básico e tudo mais —, devemos a esse conjunto a duplicação da expectativa de vida em um século, a melhora extraordinária da qualidade de vida e o surgimento de algo que antes era inexistente ou muito raro: a aposentadoria. Antes, as pessoas morriam antes de parar de trabalhar. Hoje, podem viver após encerrar suas atividades laborais. Feito esse elogio às profissões da saúde, há dois pontos que eu destacaria. O primeiro é a falta de empatia, a falta de solidariedade com o doente, que se manifesta, inclusive, na forma como o profissional explica ao paciente o que ele tem ou deve fazer. Acredito que, quando há essa transferência de consciência, ocorrem mudanças interessantes nas pessoas. E o outro ponto que você mencionou é a importância de as profissões da saúde se comunicarem com a sociedade, não apenas com o paciente no consultório ou no hospital, mas também com a coletividade.
LA – Concordo que a empatia é fundamental, mas acho que existe algo que antecede a empatia e talvez seja a grande raiz do problema: o respeito, ou melhor, a falta dele. Quando você não respeita a pessoa que está ali precisando de você, quando você a diminui, quando a desconsidera, quando reforça a iniquidade nesse sentido, como pode haver empatia? Como se constrói uma relação? O desrespeito elimina a empatia. Acredito que essa busca incessante pelo poder parte justamente do desrespeito entre as pessoas. Sempre há alguém que será subjugado e outro que será o “feitor” da história. Infelizmente, vemos isso acontecer, e acho que é contra isso que devemos lutar. Outro ponto importante é a visão sobre o sistema de saúde. Ainda predominam, especialmente na prática, ideias que reduzem o sistema de saúde a hospitais, clínicas, médicos e enfermeiros. Mas, na verdade, o sistema de saúde é a escola, é o emprego, é a água potável, é o saneamento básico. Foram essas as grandes medidas que mudaram a história da humanidade em termos de longevidade — não foram medicamentos nem vacinas. Essas condições básicas são as que realmente reduzem riscos. Então, vejo que ainda falta maior integração entre a saúde pública e a medicina. A medicina, cada vez mais hipermedicalizada e cara, se distancia de uma saúde pública que, por sua vez, carece de pontes com essa medicina de precisão tão sofisticada. Acabamos nos perdendo no meio do caminho. Por outro lado, acredito que hoje há muita gente atenta a essa desconexão, e a comunicação pode ajudar a construir essa ponte. Comunicar é entender as necessidades reais das pessoas e unir recursos para oferecer soluções que atendam a essas demandas de forma concreta, baseada em diagnósticos, e não em inferências. Não sei se isso está sendo feito dentro das faculdades, mas talvez, com a presença nas mídias sociais e na vida virtual das pessoas, possamos criar exemplos inspiradores que elas sigam. Creio que a grande intenção aqui é multiplicar lideranças positivas. E, honestamente, vejo isso como a única forma de superarmos as dificuldades em que nos encontramos.