Em tempos de polarização política e avanço de regimes autoritários, a interseção entre arte, ciência e comunicação surge como uma das ferramentas mais poderosas na defesa da democracia. Martin Grossmann, professor do Departamento de Informação e Cultura da Escola de Comunicações e Artes da USP e coordenador acadêmico da Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, é um dos principais pensadores brasileiros a explorar essa relação. Seu trabalho destaca como a comunicação pode ser uma ponte contra a desinformação e as ameaças às liberdades individuais.
A modernidade trouxe transformações profundas na forma como nos comunicamos e consumimos arte. Plataformas digitais e redes sociais democratizaram o acesso à informação e à produção cultural, mas, ao mesmo tempo, tornaram-se terreno fértil para a disseminação de fake news e discursos de ódio. Martin Grossmann alerta para os perigos dessa polarização, que compromete o diálogo saudável e dificulta a convivência política e social. “A comunicação precisa resgatar sua função essencial de promover o entendimento entre as diferenças, fortalecendo o tecido democrático”, afirma.
A arte, historicamente reconhecida como espaço de crítica e transgressão, desempenha um papel crucial nesse cenário. Em contextos autoritários, onde as minorias são frequentemente silenciadas, a expressão artística torna-se uma ferramenta de resistência. Grossmann argumenta que, além de refletir os tempos em que vivemos, a arte tem o poder de questionar estruturas opressivas, inspirar mudanças e ampliar as vozes daqueles que muitas vezes não têm acesso a espaços institucionais.
Outro ponto relevante nos estudos do professor é o impacto das mídias digitais na produção artística e no consumo cultural. Se, por um lado, o ambiente online ampliou a disponibilidade de conteúdos, por outro, a curadoria algorítmica tende a reforçar bolhas e homogeneizar o que é visível. Martin Grossmann provoca: como democratizar a arte e garantir que diferentes públicos possam acessar e interagir com essas plataformas de forma equitativa? A resposta, segundo ele, passa por debates que unam ciência, cultura e políticas públicas.
O trabalho de Martin Grossmann é um convite à reflexão sobre o papel da arte e da comunicação na sociedade contemporânea. Em um mundo de divisões e incertezas, sua visão reforça que a criatividade humana, aliada à ciência e à cultura, pode ser um antídoto contra a intolerância e uma força propulsora para a construção de um futuro mais justo e democrático.
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Renato Janine Ribeiro – É um prazer receber Martin Grossmann nesta edição especial da Ciência & Cultura, uma revista histórica que comemora 75 anos. Criada logo após a fundação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em 1948, este número aborda o tema “Desinformação, Democracia e Autoritarismo”. Antes de mais nada, tive a felicidade de propor o nome do Martin para dirigir o Instituto de Estudos Avançados da USP, há mais de dez anos, e o Conselho incluiu-o na lista tríplice e o Reitor o escolheu, isso antes que a USP adotasse a escolha direta de seus diretores. Na direção, Martin imprimiu uma vida nova ao Instituto, que continuou com seus sucessores, Paulo Saldiva, Guilherme Ari Plonski e, agora, Roseli de Deus Lopes. Gostaria de discutir com você, Martin, o papel das artes nesse contexto de desinformação. Vivemos, há alguns anos, uma ofensiva contra a verdade: de um lado, uma extrema-direita que destrói a verdade factual e ataca jornalistas; de outro, a desqualificação da ciência, com campanhas contra cientistas e a favor de mentiras, como vimos tragicamente durante a pandemia de Covid-19. Como referência no campo das artes no Brasil, como você avalia o impacto disso no universo artístico?
Martin Grossmann – Observando o cenário das artes no Brasil, especialmente sob um governo conservador que as atacou desde o início, vemos que a Lei Rouanet foi transformada em um bode expiatório. Essa lei, que teve um impacto transformador na cultura brasileira, foi desqualificada como um espaço de corrupção e privilégios para artistas já consagrados internacionalmente. Essa narrativa ignorou o papel crucial da Lei Rouanet na articulação entre os setores público e privado, que possibilitou, por exemplo, a revitalização de museus e a reestruturação cultural do país. Além disso, houve ataques direcionados a exposições que questionavam cânones da arte moderna e contemporânea. Temas como gênero e negritude, que ganharam espaço nas programações culturais, foram alvo de desinformação, especialmente nas redes sociais. Exposições que buscavam ampliar representações culturais foram distorcidas e acusadas de imoralidade, como no caso de obras que incluíam corpos nus, interpretadas como pornografia. Essa estratégia moralista minou iniciativas que promoviam a diversidade cultural e incentivavam uma visão mais ampla e representativa da cultura brasileira. Com o avanço das redes sociais, a relação entre instituições culturais e o público mudou significativamente. Antes, a mediação era feita pela grande imprensa, mas, com o crescimento das redes, esperava-se uma diversificação positiva. No entanto, essas plataformas foram rapidamente sequestradas por discursos conservadores que disseminaram desinformação, transformando a percepção da cultura e das artes em nosso país. Em vez de enriquecer a comunicação, as redes sociais passaram a favorecer narrativas que distorcem o papel das artes.
“Exposições que buscavam ampliar representações culturais foram distorcidas e acusadas de imoralidade.”
RJR – Essa questão se conecta diretamente com o que ocorre no jornalismo e na comunicação em geral. A internet eliminou intermediários importantes, como a curadoria exercida pela grande imprensa, que, apesar de suas limitações, garantia certa qualidade e profissionalismo nas informações. Hoje, esse espaço de liberdade foi sequestrado pela extrema-direita, alimentada por grandes financiamentos. Vemos exemplos como Trump e Bolsonaro, que exploraram essa liberdade de maneira destrutiva, enquanto figuras como Pablo Marçal exemplificam o uso da mentira desenfreada e da ofensa como estratégia. Nas artes, isso se manifesta em obras que geram revolta por apresentarem visões transgressoras, como corpos nus, e que, por isso, são censuradas por discursos de extrema-direita. Historicamente, temos a arte como rebeldia, um modelo que emerge do romantismo e perdura até hoje. No entanto, estilos como o barroco e o clássico, apesar de suas diferenças, eram celebratórios e conformistas, refletindo o poder estabelecido. Já a arte contemporânea, com sua ênfase na ruptura e na contestação, está em constante tensão com forças conservadoras.
MG – O Brasil se construiu como nação em torno de projetos culturais que remontam ao período de Gustavo Capanema, sob um regime autoritário. Apesar de conservador, esse período gerou iniciativas que projetaram uma ideia de Brasil moderno, integrando arte, arquitetura e ciência. O modernismo, ainda que inovador e criativo, tinha um viés monocultural e apropriou-se de manifestações culturais, como o samba, reconfigurando-as para criar símbolos universais, como a bossa nova. Brasília é um ícone desse projeto modernista, representando um país que se via como “nação do futuro”, mas que não conseguiu se comunicar com sua própria população. O modernismo estava ligado a uma oligarquia que construiu esse ideal de Brasil, sem alcançar uma verdadeira inclusão cultural. Foi apenas no governo Lula, com projetos como os Pontos de Cultura, que houve esforços significativos para descentralizar a arte e a cultura, permitindo que elas alcançassem diferentes regiões do país. Essa rede cultural, criada durante o governo de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, foi fundamental para que, na pandemia, cerca de três bilhões de reais fossem distribuídos em apoio à cultura em todo o Brasil.
RJR – Pelo que entendi, você começou criticando o modernismo. Mas o que você está dizendo me parece um desdobramento dele. Essa ideia de levar a cultura para o interior, ou melhor, valorizar a cultura do interior do país, lembra Mário de Andrade indo para a Amazônia. Isso não estaria em ruptura com o modernismo, mas em continuidade.
MG – De fato, não está em ruptura. No entanto, entendo que a “cultura viva”, elaborada e planejada durante a gestão de Gilberto Gil e Juca Ferreira, começou a esboçar a possibilidade de um novo projeto de Brasil, mas não conseguiu concretizá-lo. E acredito que esse é o nosso grande desafio, especialmente diante da transformação no mundo da comunicação. Como você mencionou, a grande mídia exercia controle sobre a informação, e as universidades, de certa forma, mantinham domínio sobre o conhecimento. Hoje, exemplos como o de Pablo Marçal mostram que esses lugares de autoridade não existem mais. Marçal se coloca como protagonista de um futuro, dirigindo-se a eleitores indecisos e explorando a insatisfação com uma situação política que reconhecemos como problemática. Isso reflete um esgotamento das estruturas da modernidade e do modernismo. Na modernidade, a cidade era o grande referencial, e no Brasil, o modernismo se manifestava como um projeto de nação. Contudo, essas instâncias estão sendo substituídas por discursos individualistas e singulares que, embora nucleares, impactam profundamente a estrutura democrática. Esses discursos utilizam a democracia para se promover, mas, ao mesmo tempo, afetam negativamente a própria estrutura que sustenta o sistema democrático. É um paradoxo preocupante. O desafio é que, na comunicação, os valores e referências modernistas não acompanham a agilidade e dinâmica dos influenciadores, que dominam essas novas estruturas comunicacionais.
RJR – O conceito de arte é bastante flexível. Mas você diria que os influenciadores fazem arte?
MG – Creio que não. Talvez eu devolva a pergunta a você: ao analisar o governo Bolsonaro e o bolsonarismo, onde está o capital simbólico desses movimentos conservadores? Por exemplo, na Venezuela ainda há um capital simbólico claro. Mas no Brasil, qual seria esse capital? A Ferrari? O jato particular?
“Esses discursos utilizam a democracia para se promover, mas, ao mesmo tempo, afetam negativamente a própria estrutura que sustenta o sistema democrático.”
RJR – Diria mais: algo curioso que observo no Instagram, por exemplo, é que ele está cheio de pessoas bonitas. Influenciadoras de moda, cosméticos ou exercício físico, quando opinam sobre política – algo cada vez mais raro –, tendem ao bolsonarismo. Por que isso? Uma explicação simplista e elitista seria dizer que o liberalismo econômico sem restrições éticas ou sociais incentiva o consumo desenfreado, favorecendo essa visão. Mas o que essas pessoas realmente influenciam? Geralmente, elas se autodenominam “criadoras de conteúdo digital”, um termo vago. Não são jornalistas nem artistas; apenas criam conteúdo. O que isso significa? Muitas vezes, consiste em tirar fotos ou fazer vídeos, como alugar por um dia a piscina de um hotel de luxo, tipo o Copacabana Palace, e produzir material para publicar ao longo do ano. Isso se apresenta como criação de conteúdo digital, um conceito que não significa nada. Parece que o criador de conteúdo digital substituiu a figura do artista. Quando perguntei se o influenciador é artista ou se sua produção é arte, foi uma provocação. Afinal, certos termos carregam juízos de valor. Não chamamos qualquer pessoa de filósofo, jurista ou artista. Essas categorias pressupõem qualidade. Não é qualquer advogado que é jurista, nem qualquer “papo-cabeça” que faz filosofia. Da mesma forma, não é qualquer imagem ou performance que é arte. Assim, ao estabelecer critérios de valor, inevitavelmente usamos critérios elitistas, que não são democráticos. Nem todos podem ser considerados artistas; é uma avaliação de qualidade.
MG – Quando você provoca perguntando se influenciadores são artistas, entendo que ser artista não é apenas dominar uma linguagem. Os grandes artistas do século XX criaram diferenciais, desenvolveram repertórios, estratégias e táticas que colocaram a arte em diálogo com a sociedade. As vanguardas artísticas, como Marcel Duchamp com seu A Fonte (o mictório transformado em obra de arte) ou Hélio Oiticica com o Parangolé, trouxeram rupturas ao contexto artístico. Essas ações redefiniram o que entendemos como arte. Hoje, no entanto, a arte mudou, e o uso das mídias sociais, frequentemente apoiado pelas Big Techs, preocupa. Antes, a Internet era vista como uma esfera pública, regulada para o bem comum, garantido por uma governança pública eleita democraticamente. Mas, se os eleitos são contrários a essa regulação, permitindo excessos, essas estruturas de comunicação acabam por reforçar valores não democráticos. E o apoio das grandes corporações transnacionais a essa dinâmica coloca a sociedade em risco de se tornar cada vez mais autoritária, ancorada em valores que contrariam os ideais democráticos. (Figura 1)
Figura 1. Obra Parangolé, de Hélio Oiticica, trouxe interculturalidade e ruptura ao contexto artístico
(Divulgação)
RJR – Um ponto importante, especialmente porque vivemos uma intensa democratização durante os anos 1980, com a queda das ditaduras comunistas na Europa e em partes da Ásia, e das ditaduras americanas na América Latina. De repente, o número de democracias aumentou significativamente. Porém, nos últimos dez anos, temos vivido uma grande regressão, que persiste até hoje. Você e eu discutimos algumas questões que parecem posicionar a arte como transgressora, o que remete à ideia romântica da arte como rebeldia — um modelo que existe há cerca de dois séculos e meio, com variações. É um modelo longevo e ainda bastante significativo. Quero relembrar dois ou três episódios que ilustram isso. No início dos anos 1990, a artista Jac Leiner realizou uma exposição chamada Corpo de Delito, na qual utilizava uma grande quantidade de cinzeiros que havia furtado. Foi interessante, porque, enquanto a exposição foi amplamente aplaudida, o então deputado Afanásio Jazadji — conhecido defensor da violência policial — insurgiu-se contra ela, alegando que a “meliante” deveria ser detida por roubo. Curiosamente, ele foi o único a atribuir à obra o valor da transgressão. Algo que, do alto da nossa pretensa superioridade como conhecedores de arte ou elite cultural, talvez chamássemos de um olhar “filisteu”. Mas foi justamente esse “filisteu” que deu à obra o reconhecimento como ato transgressor. Isso revela algo interessante: a transgressão tornou-se tão comum, tão presente e tão demandada pelo mercado que, paradoxalmente, ela não transgride mais.
Outro episódio, mais recente, ocorreu durante um evento no Rio de Janeiro, no ano de 2013. O diretor de teatro Gerald Thomas estava presente quando a modelo Nicole Bahls se aproximou de forma insinuante. Ele, então, agarrou a vagina dela em público. Apesar de críticas leves, ele justificou dizendo que a atitude da modelo parecia uma provocação direta: “Ela praticamente dizia ‘me coma’, e eu correspondi”. Esse ato é peculiar. Por um lado, dialoga com a visão teatral de Thomas, que desmonta as hipocrisias sociais. Há uma ideia de teatro – talvez inspirada em Artaud, e no Brasil certamente ilustrada por Gerald Thomas e, antes dele, Zé Celso – como o que desmascara, o que diz a verdade. Paradoxalmente, é a máscara de Dionísio que rompe as convenções, as “máscaras” sociais e conformistas. Por outro, sabemos que, se qualquer outra pessoa fizesse isso, em público ou privado, sem consentimento total, seria severamente punida. Isso levanta uma questão: o artista ainda possui, em nossa sociedade, uma liberdade que não é concedida às pessoas comuns? Hoje, a transgressão parece dupla. Por um lado, ela é consumida e apreciada como algo positivo, um produto do mercado que não ofende mais. Por outro, parece haver uma permissão especial para o artista transgredir. No caso de Gerald Thomas, podemos interpretar seu ato como uma rejeição à hipocrisia social, algo teatralizado, o que talvez tenha evitado que ele fosse imediatamente encaminhado à delegacia. Isso nos leva a uma reflexão: o que é, afinal, transgressão? A arte ainda traz o novo, provoca rupturas, ou a transgressão tornou-se mercadoria? Uma licença para transgredir, na verdade, seria o oposto da verdadeira transgressão
MG – Não sei se você se lembra, mas há um pequeno filme do Godard, uma imagem em movimento de dois minutos e meio, onde ele apresenta a tese de que “cultura é regra, e arte é exceção”. Ele ilustra isso com uma fotografia da Guerra dos Bálcãs, mostrando soldados conferindo se um grupo de pessoas assassinadas ainda estava vivo. Godard critica uma sociedade que normaliza a guerra como parte da cultura, enquanto a arte seria a exceção, um momento de ruptura crítica. Quando você menciona Gerald Thomas, vejo ali uma performance. Ele sabe que o teatro acontece no palco, mas, naquela situação, havia uma intenção teatral que permitiu o diálogo. Caso contrário, aquele ato não teria ocorrido. Hoje, essa cena seria considerada absolutamente inaceitável. Mas, naquele contexto, todos entenderam que se tratava de um espaço artístico. Acho que essa questão se conecta a um tema maior: hoje, a cultura não é mais apenas uma regra, mas um campo em guerra. Quando falamos de “guerras culturais”, de fato, essas disputas estão presentes. A arte perdeu, em grande parte, o impacto transgressor e crítico que tinha antes. Ela se mantém confinada a espaços protegidos como museus, galerias, feiras e bienais, diferente do que ocorria no século XX, quando o campo da arte se expandiu. Há, claro, algumas exceções. Um exemplo interessante é a “Bienal do Vazio”, com curadoria de Ivo Mesquita, que esvaziou todo o segundo piso da Bienal, deixando-o completamente desocupado. Na noite de inauguração, um grupo de pichadores invadiu o edifício e começou a pichar as paredes. Isso chocou a todos, pois essa manifestação não foi vista como arte. No entanto, ao pensarmos na estratégia, percebemos que o vazio proporcionou uma abertura para a expressão de uma arte de rua, muitas vezes incompreendida. Curiosamente, o grafite é mais aceito que a pichação, ainda que ambos venham do mesmo lugar. (Figura 2)
Figura 2. “Bienal do Vazio”, com curadoria de Ivo Mesquita, esvaziou o segundo piso da Bienal, deixando-o à mercê da ação de pichadores.
(Foto: Fundação Bienal de São Paulo/Divulgação)
RJR – A relação entre grafite e pichação é como a relação entre erotismo e pornografia: pornografia seria o erotismo que criticamos; pichação seria o grafite que condenamos. Isso revela um julgamento que, na melhor das hipóteses, é de qualidade, e, na pior, de gosto pessoal. Quero voltar à questão que você mencionou: a ciência como modernismo. Poderia desenvolver essa ideia? Afinal, o modernismo é geralmente associado à arte. Qual seria o papel da ciência nesse contexto?
MG – Ao analisarmos o ensino superior no Brasil, percebemos que ele é profundamente influenciado pelo modernismo. As universidades foram planejadas por urbanistas e arquitetos com forte formação modernista, resultando em prédios que expressam essa linguagem. A arquitetura modernista se destaca em oposição a estilos mais ecléticos ou neogóticos, comuns em outros períodos. Além disso, a intenção dos cientistas brasileiros era criar uma ciência contextualizada, adaptada à realidade tropical, mas em diálogo com padrões globais. A USP, por exemplo, é um reflexo desse contexto. Embora seja uma universidade localizada, muitas vezes se apresenta como universal, com valores mais próximos ao modernismo que ao iluminismo. As universidades brasileiras têm maior abertura para adaptar referências globais a realidades locais, diferentemente de modelos mais rígidos, como o alemão. Assim como temos Niemeyer na arquitetura, também temos expoentes na ciência, que moldaram um modernismo diferenciado, essencial para a construção de uma identidade nacional. Pensar o modernismo como um projeto de nação implica considerar várias áreas — ciência, governança, cultura — em diálogo. Mesmo diante das guerras culturais e das novas formas de comunicação, esse programa ainda pode ser relevante para pensar o Brasil.
RJR: Estamos vivendo um período de grandes mudanças, do qual algo muito positivo pode emergir. Vozes diferentes, percepções distintas e transformações significativas estão em curso. Essa é a visão otimista. A visão pessimista, por outro lado, é que estamos em um momento em que os referenciais que definiram a qualidade ao longo dos séculos estão sendo questionados. E, quando falo de qualidade, refiro-me a tudo: arte, ciência, literatura, educação, cultura. Esses elementos foram, de certa forma, os pilares que construíram o mundo em que vivemos, incluindo a ideia de elite. É importante lembrar que a elite cultural nem sempre coincide com a elite econômica; muitas vezes, elas estão em total contradição. E talvez essa própria distinção esteja sendo colocada em xeque. Se isso é bom ou ruim, ainda há muito a ser debatido. Precisamos observar como tudo isso vai se desenrolar.
“A arte perdeu, em grande parte, o impacto transgressor e crítico que tinha antes. Ela se mantém confinada a espaços protegidos como museus, galerias, feiras e bienais, diferente do que ocorria no século XX, quando o campo da arte se expandiu.”
MG: Retomo aqui a inversão da cultura que mencionei, inspirando-me em um dos Parangolés de Hélio Oiticica, que nomeava cada um de seus trabalhos. O interessante no Parangolé é que ele talvez represente um dos últimos gestos mais ousados de interculturalidade gerados pela arte. Um exemplo marcante foi o episódio em que passistas da Mangueira, vestidos com os Parangolés, foram impedidos de entrar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro durante a exposição de vanguarda Opinião 65. Hoje, percebo que a cultura tem absorvido essa revolta de que você falou, conectando as visões otimista e pessimista. Olhando pelo viés otimista, essas guerras culturais, no futuro, nos trarão algum tipo de resultado. Não sei por quanto tempo elas durarão, mas é certo que os processos civilizatórios estão sendo colocados em xeque. E o que emergirá disso? Projetar esse futuro é extremamente difícil. Mas talvez nossa conversa aqui também reflita um certo saudosismo da arte como exceção, que agora parece se acomodar, se apaziguar. A arte, em muitos casos, está mais alinhada aos valores da elite ou daqueles que detêm o poder econômico, sendo vista como um fetiche — um objeto de posse, e não como uma manifestação genuína. A questão que enfrentamos hoje é como realizar uma crítica ao contemporâneo. Antes, a arte desempenhava um papel central nesse processo. Esse fator político da arte, contudo, se perdeu. Vivemos uma realidade que nos deixa perplexos, sem necessariamente termos a estrutura epistemológica para compreendê-la. Ainda assim, essa realidade se impõe de forma avassaladora. E essa inquietação é evidente, inclusive na preocupação com as eleições.
RJR: Sou um tanto otimista. Há muito tempo, o mundo segue um processo de democratização. No final da Idade Média, por exemplo, surgiu o poder do juiz como limite ao poder do rei. Mais tarde, tivemos os legislativos eleitos, a escolha do poder executivo, os direitos humanos. É claro que esses avanços não foram lineares. Após a Revolução Francesa, houve a restauração monárquica. No século XX, depois da expansão da democracia, enfrentamos as duas guerras mundiais, o fascismo, o nazismo e o stalinismo. Mas algo bonito aconteceu na década de 1980: uma grande expansão democrática pelo mundo. Pela primeira vez na história, metade da população mundial viveu em países onde podia votar em seus governantes e escolher livremente aspectos da vida pessoal, como com quem se casar. Esses avanços nas liberdades foram notáveis. Entretanto, grandes mudanças geram reações. É natural que algumas pessoas, chocadas pela rapidez dessas transformações, reajam. Ainda assim, acredito que essas reações serão eventualmente assimiladas, permitindo que o processo de democratização continue avançando.