…A potencialidade das bibliotecas comunitárias na condição
de espaços complementares para a educação é muito maior
do que se pensa.
…os pequenos estoques de livros reunidos em situações
comunitárias, acrescidas por telecentros podem constituir
exemplos de estratégias culturais para menores e
adolescentes ávidos…
Aziz Nacib Ab’Sáber [1]
Fui convidada a escrever sobre nosso querido Professor Aziz Ab’Sáber, talvez porque seja evidente a admiração, o respeito e o carinho que sempre tive por ele, e talvez também pelo relacionamento de amizade que se estreitou durante o período em que fui membro da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC – 2007-2013), ocasião em que, ele, como presidente de honra, era incansável em nos expor suas ideias e sugerir ações que necessitaríamos engendrar.
Sua obra intelectual vastíssima e sua produção de conhecimento não superam suas ações humanitárias – relevante legado! Como dizia um amigo comum, Professor Edmundo Magalhães: “Aziz era um cientista humanista! Aliás, como todos os cientistas deveriam ser”.
Membro da Academia Brasileira de Ciências (empossado em 1976),[2] nosso eterno professor integrou a diretoria da SBPC pela primeira vez na gestão 1983-1985, quando foi eleito para ocupar a vice-presidência da entidade junto à querida professora Carolina Bori, sob a presidência do geneticista Crodowaldo Pavan. Na gestão 1987-1989, presidida por Carolina Bori, Aziz foi eleito como primeiro-secretário da SBPC. Foi na gestão de 1993-1995 que a presidiu.
Narro aqui alguns fragmentos de sua história de vida. Nascido em São Luís do Paraitinga, em 24 de outubro de 1924, Aziz era filho de pai libanês com mãe brasileira. Numa entrevista ao Instituto da Cultura Árabe (ICArabe),[3] instituição da qual também era presidente de honra, ele relatou a trajetória da vida de sua família, suas viagens e seu interesse pelo conhecimento, em especial, pela Geografia. Na página do ICArabe é possível encontrar as duas partes dessa entrevista,[4, 5] as quais merecem destaque porque são verdadeiras aulas de Geografia que demonstram o grande divulgador de ciência que ele era, usando, espontânea e naturalmente, a técnica tão enaltecida nos dias de hoje – o storytelling – mas com um detalhe: sem os recursos audiovisuais!
Aziz conectava seus ouvintes por meio da cadência de suas frases e as ligações que apresentava entre todos os assuntos que abordava. Ele mesmo referia, em suas aulas, palestras, entrevistas ou conferências que:
“…..eu como professor que sou eu gosto muito de fazer as histórias dos acontecimentos porque é uma maneira de ser justo com as pessoas do passado…”
Podemos completar a frase com: e está sendo justo também com as pessoas do presente por ser essa uma agradável forma de ensinar/aprender e, portanto, eficaz.
Para trazer um pouco da simplicidade dessa pessoa singular, que apreciava muito estudar, que na juventude sorvia conhecimentos registrados em livros, revistas, jornais e palestras, recordaremos alguns fatos que expressaram sua relação com as bibliotecas. Aziz estudou parte do ensino básico em Taubaté e o finalizou em Caçapava, dois municípios do interior de São Paulo, situadas no Vale do Paraíba. Para estudar o ensino médio, mudou-se para São Paulo, pois pretendia preparar-se para fazer o vestibular e ingressar na universidade. Foi em São Paulo, segundo ele relata, que pode intensificar sua relação de grande apreço por bibliotecas. Assíduo frequentador desse tipo de equipamento cultural, sempre defendeu sua relevância. Em conversa, extremamente agradável, registrada na série de entrevistas da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em 2005,[6] Aziz relatou essas lembranças que o deixavam muito feliz, sobre a riqueza da biblioteca – a presença de jornais, revistas, livros e o encantamento pelas enciclopédias! Estar na Biblioteca Mário de Andrade era para ele “um presente cultural” e, nessa época, conta que o fato de ser identificado pelos seus professores que lá o encontravam estudando, sempre o deixava muito feliz. Nessa entrevista contou que, naquela época, seu passeio aos sábados era ir à biblioteca Mário de Andrade. Essas lembranças, da presença marcante das bibliotecas em sua vida, aguçavam seu sentimento sobre a importância delas: “tem que ter um jeito de ter abertura das bibliotecas nos sábados e domingos”. Mais adiante voltaremos a falar sobre Aziz e as bibliotecas.
Aziz entrou na universidade em 1940, formou-se Bacharel em História e Geografia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Posteriormente, tornou-se Doutor em Geografia Física pela mesma instituição. Seu encanto pelas paisagens, já no início da graduação, ficaram evidentes em duas falas suas. Numa entrevista para a jornalista Vera Pinheiro [7] na série “A Ciência que eu faço” (2011), revelou: (Figura 1)
“Eu escolhi para ser geógrafo no primeiro dia de aula na universidade. (…) embaixo do papel das notas estava escrito assim: segunda-feira venham com um traje de excursão de campo para fazermos a primeira aula no terreno. (…) Eu fiz uma primeira excursão pro interior de São Paulo e fiquei extasiado de conhecer a natureza. (…)Achei que gostei de ler a paisagem mais do que ler livros sobre história. (…) Então eu fui por causa da história pra USP e no fim me tornei geógrafo”.
Figura 1. Aziz durante excursão em Sorocaba
(Fonte: grupo Figueira da Glete. Reprodução)
Na entrevista para a Biblioteca Mário de Andrade, ele conta um pouco mais sobre esta marcante excursão:
“Logo que passei no vestibular, participei de uma excursão de campo, enquanto todos conversavam eu bebia aquela paisagem e fazia inúmeras anotações….”[6]
Aziz refere, nessa entrevista, o seu apreço pelos estudos de campo e a facilidade para interpretar a paisagem, considerando a forma do relevo, a vegetação e o uso do espaço, e foi exatamente essa leitura interseccional que ele fazia desses elementos da paisagem, desde o início da graduação, que fizeram dele o Geógrafo completo, profundo, humanista, que nos agraciou com seus saberes e interpretações, sempre deixando espaço para novas abordagens conforme o caminhar do conhecimento na área em que pesquisava, razão pela qual, seus temas de pesquisa avançam como temas de pesquisa sendo trabalhados, aprimorados, afirmados, reinterpretados, complementados, tornando-o um cientista sempre presente.
Aziz gradou-se na USP, como já referido. Prosseguiu na mesma instituição e, reconhecido pelos seus mestres, foi convidado a compor o quadro de funcionários. Porém, de forma singular, embora os professores o quisessem como assistente, na ausência de vaga para tal função, ofertaram-lhe a de jardineiro, prontamente aceita por ele, frente às condições de dificuldades em que vivia sua família. De jardineiro passou a Prático de Laboratório, tão logo constataram que já era graduado e já havia feito especialização. Iniciou, assim, sua carreira acadêmica na instituição. (Figura 2)
Figura 2. Aziz Ab’Sáber sendo homenageado na USP
(Fonte: Jornal da USP. Reprodução)
Retrocedendo um pouco, na explanação sobre seu nascimento, há que se destacar fato relativo à sua cidade natal, pois a mesma já era objeto de sua admiração pelos seus encantos paisagísticos, os quais contribuíram para que propusesse interpretações sobre os cenários naturais que, entre outros feitos, o tornaram um dos geógrafos mais importantes do país, muito respeitado no exterior. São Luiz de Paraitinga é uma cidade paulista inserida no domínio Mares de Morros, um dos domínios da natureza entre os propostos por Aziz para descrever o conjunto das paisagens nacionais. O município foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), porém, apesar da importância da paisagem natural como testemunho singular de processos geomorfológicos, a razão principal do tombamento não foi a presença dos Mares de Morros, os quais, figuram no processo de tombamento como “moldura natural do município”, ou seja, parece que a integração do espaço natural e urbano (indissociáveis segundo o filho de São Luiz do Paraitinga) não foi considerada no processo de reconhecimento e proteção desse patrimônio cultural.[8]
“Foi essa leitura interseccional que ele fazia desses elementos da paisagem que fizeram dele o Geógrafo completo, profundo, humanista.”
Ao falar nos Mares de Morros, remetemos às suas produções científicas, as quais resumidamente, em linhas gerais, foram muito bem sintetizadas, por Claudio Di Mauro,[9] em contribuições para “a geomorfologia e a evolução paleoclimática no terciário e quaternário”, nas quais Aziz frisou ser essencial a necessidade de os estudos da paisagem serem realizados de forma interdisciplinar; contribuições para a compreensão e estudos sobre as mudanças climáticas, nas quais destacou a significância do conhecimento sobre esses processos para a compreensão da dinâmica do planeta ao longo do tempo, a integração dessa dinâmica com as alterações antrópicas, e o uso desses conhecimentos para o planejamento dos espaços urbanos; e ainda, sua marcante contribuição em termos de Geografia Urbana contida em sua tese de doutorado sobre a Geomorfologia do Sítio Urbano de São Paulo.
Nesses três grandes temas apresentados por Di Mauro [9] estão incluídos, em níveis mais detalhados, importante acervo de conhecimento de Geografia em seus distintos aspectos, com destaque para a ênfase de integrar Geografia Física e Geografia Humana. Uma dessas contribuições, resultado de leituras e interpretações da paisagem a partir de viagens pelo Brasil afora, foi sobre a geomorfologia brasileira e a biodiversidade presente nos territórios. Os resultados desses estudos foram organizados em um livro [10] onde abordou os Domínios de Natureza do Brasil ou os Domínios Morfoclimáticos no qual Aziz apresenta a ideia de que a paisagem é uma herança, sob ponto de vista amplo, ou seja, no sentido de se considerar, para esta herança, a integração entre os processos fisiográficos e biológicos junto ao “patrimônio coletivo dos povos que, historicamente, ocuparam os espaços” e reconhece, para o Brasil, os seguintes domínios: domínios das terras baixas florestadas da Amazônia, domínio das depressões interplanálticas semiáridas do Nordeste, domínios dos Mares de Morros Florestados, domínio dos Chapadões recobertos por Cerrados e penetrados por Florestas-Galeria, domínio dos Planaltos das Araucárias, Domínio das Pradarias mistas do Rio Grande do Sul.[10]
Foram muitas as suas contribuições a partir da intelecção sobre a dinâmica geomorfológica e climática responsável pelo desenho de paisagem e biomas que temos atualmente, sublinhando-se o reconhecimento da existência das zonas ecotonais, tão peculiares e tão importantes para a manutenção da biodiversidade. Recomendamos as leituras de seus artigos, livros e outros meios de comunicação de sua obra, pois, o contato com sua produção intelectual é uma tarefa intensa e gratificante, pois quanto mais lemos seus estudos ou ouvimos suas palestras (disponíveis, várias delas, no YouTube) e as abordagens delas decorrentes, mais aprendemos. Porém, necessário se faz um recorte, pelo meio do qual nos remetendo à sua atuação enquanto membro da diretoria, do conselho e como presidente de honra da SBPC.
No início do texto, informamos sobre os períodos em que Aziz compôs a diretoria da SBPC, e aqui destacamos que, após o período no qual foi presidente (1993-1995), permaneceu como presidente de honra, e como tal, passou a ser membro efetivo do Conselho da entidade.
“Aziz frisou ser essencial a necessidade de os estudos da paisagem serem realizados de forma interdisciplinar, nas quais destacou a significância do conhecimento sobre esses processos para a compreensão da dinâmica do planeta ao longo do tempo.”
Aziz participou, como palestrante ou coordenador de mesas redondas, simpósios, debates em Reuniões Anuais, Reuniões Regionais ou Especiais, entre outras atividades em que representava a SBPC. Foi personalidade importante na discussão sobre o Código Florestal tendo contribuído no grupo de trabalho sobre o tema criado pela SBPC que resultou na publicação de um livro, em cuja segunda edição, publicada em 2012,[11] foi incluída sua carta contundente “Do Código Florestal para o Código da Biodiversidade” – Manifestação do cientista Aziz Ab’Sáber (in memoriam) sobre a mudança do Código Florestal no Brasil criticando a ausência no projeto, de todo o zoneamento físico e ecológico do País: a região semiárida dos sertões nordestinos, o cerrado brasileiro, os planaltos de araucárias, as pradarias mistas do Rio Grande do Sul e o Pantanal Mato-grossense, propondo a criação do Código da Biodiversidade para contemplar a preservação das espécies animais e vegetais, a qual foi encaminhada por ele, pela SBPC e pela Academia Brasileira de Ciências ao relator do projeto e à Câmara dos Deputados (livro código florestal – publicação SBPC). Publicou ainda pela SBPC muitas cartas, artigos, manifestos que podem ser lidos nos Cadernos da SBPC ou no Jornal da Ciência. Todo esse material pode ser consultado no Centro de Memória da SBPC.[12] Consultem, pois é uma riqueza!
A presença de Aziz nas Reuniões Anuais da SBPC eram sempre marcadas por atividades com o auditório lotado com a presença substancial de estudantes, motivo de grande satisfação para ele. A título de ilustração, relembraremos uma passagem muito interessante registrada por Geruza Maria Duarte no livro “A Obra de Aziz Nacib Ab’Sáber”.[13] A história é a seguinte: A 58ª Reunião Anual (RA) da SBPC aconteceu em 2006, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis (SC), de 16 a 21 de julho com o tema “SBPC&T semeando interdisciplinaridade”. Nesse evento, com 82 anos, Aziz proferiu a conferência “(Re)Pensando o Futuro do Brasil” a convite da própria SBPC e da Fundação Conrado Wessel, pois Aziz havia ganho o Prêmio Fundação Conrado Wessel em 2005 na categoria “Ciência Aplicada ao Meio Ambiente”, e já eram tradições, na SBPC, as conferências dos agraciados com o prêmio na Reunião Anual. Já bem conhecida a sua fama de atrair grandes públicos, a organização da 58ª RA reservou acertadamente o maior auditório para Aziz, pois a sala lotou antes do início de sua exposição. Mas, como já contamos aqui, suas conferências eram histórias contadas de forma a permitir aprender sentindo prazer e emoção e esse detalhe é importante para entender o acontecido: durante sua fala, algo inesperado aconteceu: faltou energia elétrica. No entanto, o resultado foi o esperado: Aziz não se abalou e continuou sua palestra, e quando ao final, foi aplaudido de pé, comentou: “Isto é que é a SBPC”! E saiu, como sempre, rodeado pelas pessoas que ainda queriam ouvi-lo mais. (Figura 3)
Figura 3. Aziz Ab’Sáber durante Reunião Anual da SBPC
(Fonte: Centro de Memória da SBPC. Reprodução)
Na 62ª Reunião Anual de 2010, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal, quando eu integrava a diretoria da SBPC (gestão 2009-2011) fizemos uma homenagem a ele. Nessa RA, Aziz proferiu, como homenageado, a conferência “Ciências e Aplicações de Ciências: A Importância do Planejamento” e nesta atividade, como sempre acontecia, os jovens colocaram-se à sua volta. Para ilustrar um pouco mais esses momentos tão singulares, reproduzo aqui um trecho do texto que escrevi para a sua homenagem, pois nesses parágrafos há uma breve síntese sobre sua atuação humanista:
… Atua de maneira singular em defesa da disseminação da cultura e da ciência para todos. Exemplo disso está em frase dita a Drauzio Varela quando entrevistado: – “Parto do princípio de que as pessoas precisam, em primeiro lugar, entender o que é cultura para depois, entender o que é ciência. Assim, cultura é o conjunto de valores do homem, algo que vem sendo conquistado desde a pré-história até a contemporaneidade. A pesquisa agrega conhecimento à cultura, alimenta a ciência e acelera os processos evolutivos das sociedades”.
… O professor Aziz vinha acompanhando um projeto de formação de bibliotecas comunitárias no estado de São Paulo e foi surpreendido com a notícia de que uma das 45 bibliotecas havia sido removida pela subprefeitura da Sé. A biblioteca indígena instalada na praça Monteiro Lobato, no centro da cidade, ainda estava em fase de organização, mas já continha oito mil títulos recebidos por doações e reunia garis e indígenas para discussão de políticas públicas, contando, inclusive com a participação e orientação de professores aposentados e alunos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). No acervo encontravam-se mapas, fotografias dos povos indígenas, livros de história, geografia e literatura brasileira. O projeto, encabeçado pela ONG Educa São Paulo, criada e presidida por Devanir Amâncio era apoiado de perto pelo prof. Aziz.
É preciso ainda registrar suas últimas publicações em livros, nos quais organizou textos interessantes para o conhecimento e cultural geral dos seus leitores: “Leituras Indispensáveis” volumes 1, 2 e 3. O volume 3, publicado pela SBPC, e de cuja organização participei, junto à Eunice Personini, secretaria da diretoria da SBPC, pessoa muito querida por Aziz. Nessa ocasião desfrutei de momentos de singulares, de muito carinho, muita atenção e muito aprendizado na companhia de ambos. O livro está disponível em extensão PDF no site da SBPC.[14]
“Aziz apresenta a ideia de que a paisagem é uma herança, sob ponto de vista amplo, ou seja, no sentido de se considerar, para esta herança, a integração entre os processos fisiográficos e biológicos junto ao patrimônio coletivo dos povos que, historicamente, ocuparam os espaços.”
Finalizo essa homenagem, um pequeno recorte da vida intensa que foi a do Professor Aziz Ab’Sáber, em todos os aspectos, lembrando que uns dias antes de nos deixar, entregou na SBPC um CD-ROM com arquivos que continham toda sua obra para ser distribuído para as universidades, bibliotecas, pesquisadores, etc., e transcrevendo a última estrofe de um poema seu [15], na qual ele expressa a saudade de sua infância e de sua vida em Parintins, e por meio dessa estrofe expressamos nossa saudade eterna de uma pessoa que deixou uma impecável contribuição para a nossa existência:
Ecos do sino grande
…
Saudades de menino
Entes queridos.
Lembranças sentidas.
E, para completar
As badaladas arrastadas do sino grande
Que saudades, Deus meu!