Aziz Ab’Sáber: um geógrafo humanista e profundo conhecedor do Brasil

Pesquisador atuou além da universidade, influenciando órgãos públicos e sociedade com proposição de políticas públicas

Resumo

O professor Aziz Ab’Sáber contribuiu ativamente para a ciência brasileira em diversas áreas do conhecimento. Era um pesquisador com formação holística, sensível aos problemas sociais e profundo conhecedor do território brasileiro em suas múltiplas escalas. A sua trajetória na universidade foi marcada por uma postura militante em defesa da democratização do saber acadêmico para todos os segmentos da sociedade, a partir não somente da geração de condições para que os filhos dos trabalhadores pudessem acessar o ensino superior, mas também de iniciativas de incentivo à leitura, essas últimas materializadas pela difusão de bibliotecas instaladas em variados lugares da periferia das grandes cidades. A sua produção acadêmica se destacou por avanços importantes na ciência geográfica, especialmente com aportes metodológicos inovadores no campo da Geomorfologia e na valorização da interdisciplinaridade, por meio de uma estreita associação entre as questões vinculadas à dinâmica da natureza e aquelas produzidas pela ação humana sobre o meio geográfico. O professor Aziz teve também uma atuação destacada nas discussões relativas a questões ambientais, na medida em que foi um dos primeiros cientistas brasileiros a ser reconhecido pelo seu papel em defesa da preservação ambiental. Contribuiu com relevantes estudos que ajudaram no aprimoramento da legislação ambiental brasileira e na criação de áreas de reservas naturais, já prevendo que esse tema da destruição da natureza, empreendida pelo padrão de consumo insustentável do sistema capitalista, seria um dos grandes problemas que a humanidade enfrentaria no século XXI.

O professor Aziz Ab’Sáber apresenta uma importante trajetória intelectual associada à Geografia, sobretudo às ciências da natureza, mas com forte inclinação para as ciências humanas de maneira geral. Embora geógrafo especializado em Geomorfologia, o professor Aziz fazia parte de uma geração de cientistas que se tornou rara nos nossos dias, com formação escolar holística, característica da educação pública brasileira até os anos 1960. Nesse tipo de educação, valorizava-se a transmissão do conhecimento nos moldes das antigas escolas de formação humanística, cuja tradição era preparar as pessoas para a compreensão do mundo em sua totalidade, e o saber era considerado constituinte da soma interdisciplinar das diferentes ciências. Essa herança resulta dos ensinamentos das escolas da Grécia Antiga e de várias outras partes do mundo, cujos estudiosos tinham um conhecimento que integrava os diversos campos do saber. Enfim, dedicavam-se a resolver os mistérios da vida em todos os seus aspectos, do natural ao social, do universal ao particular. O professor Aziz foi herdeiro dessa orientação filosófica e não somente se sensibilizou com o desvendamento das questões relativas às leis da natureza, mas também se preocupou em entender como a sociedade se organizava com as contradições que nela estão instaladas. Essa concepção holística do professor Aziz, demonstrada em seus estudos e em sua postura de entendimento do mundo, esteve associada, do mesmo modo, ao seu processo de formação no ambiente familiar, no ensino básico e, sobretudo, na universidade.

Durante a sua vida inteira, o professor Aziz assistiu aos grandes eventos da história do Brasil e participou deles. Nascido em 1924, em São Luiz do Paraitinga, no Vale do Paraíba paulista, filho de libanês, mudou-se para São Paulo ainda jovem, em 1939, para prestar vestibular. Entre os anos 1940 e 1944, frequentou o curso de História e Geografia na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), da Universidade de São Paulo (USP), onde teve aula não somente com professores de Geografia e História, mas também com os de Sociologia, carreiras que ganhavam projeção no Brasil com a fundação da USP, em 1934. No caso de Geografia e História, os alunos faziam parte de um mesmo curso, cuja grade curricular possuía disciplinas das ciências humanas e sociais e das ciências naturais. Essa trajetória fortemente interdisciplinar foi importante para a formação do professor Aziz, por possibilitar a ele realizar a interface entre as ciências da natureza e as ciências humanas e sociais. Tal interdisciplinaridade se destacou na vida do professor Aziz, e ele fazia questão de reforçar isso em seus textos, aulas, palestras ou entrevistas. Essa postura de valorizar permanentes diálogos com outras áreas do conhecimento advinha, em grande medida, segundo ele próprio afirmou em diversas ocasiões, da convivência com seus professores e colegas de curso, mas também dos encontros com a comunidade geográfica em eventos científicos e do contato com as pessoas em seus muitos trabalhos de campo, bem como das amizades com distintas pessoas que ele foi construindo ao longo da vida. Entretanto, o período de sua graduação, conforme deixa transparecer em seu depoimento no livro “O que é ser geógrafo” (2007), foi o momento em que mais se consolidou a sua crença em um olhar holístico sobre o mundo, assentada na perspectiva interdisciplinar. (Figura 1)


Figura 1. Aziz Ab’Sáber durante aula na USP
(Fonte: NJR/ECA/USP. Reprodução)

 

No referido livro, Ab’Sáber aborda a influência de seus professores do curso para a constituição de sua visão de totalidade sobre o espaço geográfico, em suas diferentes dimensões, inclusive a histórica, à qual ele atribuía um peso relevante em suas análises dos fenômenos naturais e humanos. Ele sempre destacava o papel da interface entre o tempo e o espaço ou o espaço e o tempo. Na entrevista que concedeu no Programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1992, convidado para falar da Conferência Rio-92, ele ressaltou que o grande desafio da sociedade naquela época era o de ter a capacidade de registrar e restaurar o passado, de fazer diagnósticos do presente para pensar o futuro, mas sem descartar o passado. A sua fala era direcionada por sua preocupação com o imediatismo das ações humanas na política ou na economia, por uma sociedade que caminhava a passos largos para a consolidação de um padrão econômico de consumo imediatista e para uma adesão ao neoliberalismo, sendo que, em ambos os aspectos, o mundo escalava níveis inaceitáveis de apropriação dos recursos naturais, mostrando-se predatórios e insustentáveis. O professor Aziz fazia crítica, sobretudo, ao planejamento de curto prazo, o qual, segundo ele, era ineficaz, porque não projetava as ações numa escala de tempo ampliada; ele acreditava que pensar numa política de planejamento somente teria efeitos positivos se fosse possível considerar o tempo ecológico, ou seja, o de longa duração.

O professor Aziz sempre nos relembrava, em suas falas, de que os anos iniciais na USP foram vividos com muitas descobertas e muita dedicação aos estudos, com frequência assídua às bibliotecas. Durante o período da graduação e da pós-graduação, ele manteve muito contato com seus professores e tinha especial admiração por aqueles da missão francesa que vieram ao Brasil para ministrar disciplinas no curso de História e Geografia, mas também por outros professores que foram lecionar na então capital federal, Rio de Janeiro, ou, ainda, pelos que fizeram visitas ao país entre os anos 1940 e 1950 por diferentes motivos. No primeiro grupo, destacam-se Roger Dion, Pierre Monbeig e Emmanuel de Martonne; no segundo, Max Sorre, Jean Dresch, André Cailleux, Francis Ruellan e Jean Tricart. Conforme o professor Aziz, esses pesquisadores marcaram a sua vida nesse momento inicial de sua formação acadêmica, e deles herdou o rigor metodológico de análise das paisagens e dos processos que as constroem. Entretanto, os diálogos se estenderam também para os seus colegas uspianos e para outras pessoas que interagiam com ele em congressos de Geografia e em trabalhos de campo – com muitos deles se tornando, até mesmo, interlocutores durante toda a sua vida. O professor Florestan Fernandes foi um deles, visto que os dois cursaram a mesma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, um no curso de História e Geografia e o outro no de Sociologia. Fernandes se tornou, inclusive, um professor da USP e referência nos estudos de Sociologia brasileira. Ab’Sáber atribuiu à convivência com Florestan Fernandes o incentivo a estabelecer um olhar atento aos problemas socioeconômicos e às desigualdades do Brasil e, em particular, a uma melhor compreensão sobre as diferenças culturais do país, a partir, sobretudo, dos ensinamentos da Antropologia, ciência a que ele conferia um peso importante na sua formação e que também contribuiu para subsidiar as suas análises do espaço urbano – um tema recorrente nos seus textos, embora, como dissemos, ele tenha se dedicado, predominantemente, aos estudos da Geomorfologia.

 

As pesquisas e a produção acadêmica

A produção acadêmica do professor Aziz Ab’Sáber tem grande relevância para vários campos do saber científico e vem carregada de inovações no uso do método para analisar questões associadas à dinâmica da natureza e da relação dos seres humanos com o seu meio. Conhecedor como poucos do território brasileiro em suas múltiplas escalas, o professor Aziz Ab’Sáber foi um dos precursores, em parceria com o professor e zoólogo Paulo Emílio Vanzolini, da teoria dos refúgios para o entendimento dos domínios morfoclimáticos e fitogeográficos do Brasil – teoria importante que visa explicar a evolução e a dinâmica de determinados ambientes naturais do território nacional. A bem da verdade, ele sempre dizia haver duas teorias que eram complementares, a dos refúgios, de Vanzolini, e a dos redutos, dele. O fato é que, com os estudos abarcando tais teorias, que se complementam, houve um grande avanço para o conhecimento sobre fragmentos florestais remanescentes que continuaram existindo, em pequenos tipos de flora e fauna, em áreas de outro domínio morfoclimático, sendo eles registros que indicam as alterações climáticas pelas quais o planeta Terra passou. Ou seja, em um determinado domínio que atualmente predomina clima tropical úmido, com presença de florestas tropicais, há permanência de fragmentos de vegetação ou animais típicos de domínio de caatinga, sendo isso um indicador de que naquela área já teria ocorrido uma situação de clima seco. Quanto à construção da teoria dos redutos, o professor a considerava como resultado de uma influência dos métodos de estudos adotados pelo geógrafo Jean Tricart, o qual, segundo o próprio Ab’Sáber enfatizava, foi o pesquisador que mais inspirou a sua carreira acadêmica na Geografia. (Figura 2)


Figura 2. Os domínios morfoclimáticos do Brasil
(Fonte: Reprodução)

 

Esse estudo pioneiro da teoria dos refúgios/redutos foi acompanhado de muitos outros do professor Aziz, tratando de temas com interface entre as ciências naturais e as humanas.

O professor Aziz Ab’Sáber deu uma expressiva contribuição para a modernização do pensamento geográfico brasileiro. A sua geração, e ele foi um dos expoentes dela, colaborou para a transformação da Geografia de uma ciência descritiva para outra mais analítica. O aporte do professor para a construção de outra concepção de Geografia, que se difundiu para todos os níveis de ensino da disciplina, ocorreu por ele considerar, em seus estudos, que a paisagem era um corpo dinâmico da superfície terrestre, a qual resultava de processos fisiográficos e biológicos em constante interação. Tais ideias foram muito importantes para a construção de novas abordagens sobre a natureza, especialmente no que diz respeito às feições paisagísticas e ecológicas do território brasileiro. Segundo o professor Aziz, o modelamento e as modificações de tais feições, que resultam da ação de agentes naturais endógenos e exógenos, podiam se diferenciar segundo o grau de especificidades definidas pelos tipos particulares de relevo, solo, vegetação e condições climático-hidrológicas, constituindo uma integração paisagística e ecológica do território nacional. Isto é, a coerência no interior de um conjunto de feições geomorfológicas e climático-botânicas, dada pelas especificidades apontadas acima, definia uma área nuclear, de “certa dimensão e arranjo, em que as condições fisiográficas e biogeográficas formam um complexo relativamente homogêneo e extensivo”, conforme apontou em um de seus livros, “Os domínios de natureza no Brasil” (2003). Tais domínios, que o professor Aziz chamou de “Grandes Domínios Paisagísticos Brasileiros”, conformavam um mosaico paisagístico e ecológico do território brasileiro. Desses estudos, derivou uma classificação dos grandes conjuntos naturais do país, bastante difundida em diversas áreas da Geografia – do ensino à Geografia Aplicada – denominada “domínio morfoclimático e fitogeográfico” do Brasil. Entre um domínio e outro, entretanto, há uma faixa de contato, a qual indica a ocorrência de uma transição ecológica com características ambientais específicas. O professor Aziz foi também um pioneiro na identificação dessas áreas, as quais chamou de “interespaço de transição e contato”, onde existe uma “combinação diferente de vegetação, solos e formas de relevo”, comparativamente ao domínio de cada lado da faixa de transição. Essa proposta de classificação dos domínios morfoclimáticos brasileiros com suas faixas de transição, juntamente com o material cartográfico elaborado, constitui um rico acervo didático, amplamente utilizado por distintas áreas do conhecimento.

 

“O professor Aziz tinha um conhecimento muito detalhado do território brasileiro e de suas dinâmicas naturais e de ocupação humana, decorrente de seus estudos acadêmicos e de suas muitas viagens realizadas pelo país.”

 

Além da contribuição do professor Aziz Ab’Sáber para a Geografia Física e para outros campos das ciências da natureza, seus estudos também tiveram impactos nas ciências humanas. No campo da Geografia Humana, dedicou uma parte de suas pesquisas para a compreensão da interferência do homem no ambiente natural. Nesse sentido, uma de suas preocupações incidia sobre o papel da urbanização como fator de alteração da natureza e os seus reflexos sobre o conjunto da sociedade; ele buscava compreender especialmente de que maneira o crescimento urbano desordenado produzia exclusão e perigos para as pessoas que habitavam as vertentes íngremes e as várzeas inundáveis das cidades. (Figura 3)


Figura 3. Aziz Ab’Sáber participa do plantio de árvores na Zona Leste de São Paulo
(Fonte: Devanir Amâncio/CBNPS. Reprodução)

 

Com o enfoque na Geografia Urbana, o professor Aziz escreveu vários trabalhos versando sobre as cidades de Salvador, Porto Alegre, Manaus e São Paulo. No que se refere a essa última, fez relevantes reflexões sobre o sítio urbano de São Paulo, descrevendo e analisando as diferentes regiões da cidade. Em sua tese de doutorado “A geomorfologia do sítio urbano de São Paulo”, defendida em 1957 e publicada posteriormente em forma de livro, estudou, por exemplo, a ocupação da planície do rio Tietê com suas colinas no entorno, quando o rio ainda era meandrante e sua planície de inundação era uma várzea coberta de pastos, onde os animais de serviço se alimentavam, frequentemente muares que transportavam em suas carroças mercadorias para o centro da cidade. Nessas áreas também havia, além dos clubes de regatas e natação, os campos de futebol de várzea, chamados “campos de várzea”, de onde vieram a maioria dos tradicionais clubes da capital e importantes jogadores do futebol paulista. Essa cidade do passado, segundo o professor Aziz, se transformou, com o seu avanço acelerado da urbanização, na maior bacia urbana do Hemisfério Sul. Isto é, São Paulo passava de uma cidade que, nos anos 1950, ainda era um núcleo urbano de extensão restrita, assentado sobre colinas, terraços fluviais e planícies de inundação, a outra, muito distinta e mais dinâmica economicamente, mas também com os diversos problemas de ocupação que foram se sucedendo à medida que o tecido urbano se alargava, tendo como motor o processo especulativo imobiliário.

 

Uma vida dedicada à ciência e à promoção da cidadania

A formação acadêmica e humanista do professor Aziz foi também inspirada na produção literária, especialmente a de caráter regional. Ele fazia questão de lembrar que a leitura de importantes romancistas representava o passaporte para o resgate de uma gama de elementos presentes na paisagem e que as narrativas permitiam explicar a Geografia no seu sentido mais amplo, incluindo tanto a natureza quanto o homem. Foi um leitor atento dos seguintes romances: “Os Sertões”, de Euclides da Cunha; “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos; “Capitães da Areia” e “Jubiabá”, de Jorge Amado, entre muitos outros. Algumas dessas obras destacam a dinâmica da natureza do clima semiárido, mas também abordam as mazelas humanas, com as grandes desigualdades sociais, em regiões marcadas pela concentração da propriedade da terra e pela exploração da população mais pobre – contrastes semelhantes ao que o professor Aziz verificou em seus trabalhos de campo tanto no sítio urbano de São Paulo, quando a cidade se transformou numa grande metrópole, quanto nos distintos lugares do Brasil.

O professor Aziz tinha um conhecimento muito detalhado do território brasileiro e de suas dinâmicas naturais e de ocupação humana, decorrente de seus estudos acadêmicos e de suas muitas viagens realizadas pelo país. Os trabalhos de campo começaram desde muito cedo na sua formação universitária; as primeiras disciplinas cursadas na USP, sobretudo aquelas ministradas pelos professores franceses, utilizavam esse recurso didático para o estudo da paisagem, na medida em que essa era uma tradição da Geografia Possibilista, de forte influência nos cursos de Geografia na Europa, especialmente na França. O primeiro trabalho de campo realizado no seu curso ocorreu com a disciplina ministrada pelo professor Pierre Monbeig e, segundo Ab’Sáber, seria definidor de sua vida acadêmica, porque a partir dele pôde tomar gosto pelas viagens para a observação da paisagem. Durante a graduação, somente conseguiu viajar pelo estado de São Paulo, mas, com a finalização de seu curso e já estudando na pós-graduação, foi possível ampliar a sua escala de conhecimento do país.

O professor Aziz relatou, no já mencionado livro “O que é ser geógrafo”, que uma viagem que lhe marcou muito aconteceu em 1947, quando ele e seu amigo Miguel Costa Jr. – filho de um dos comandantes da Coluna Prestes, Miguel Costa – partiram para o Brasil Central, rumo às cidades de Aragarças (Goiás) e Barra do Garça (Mato Grosso), situadas na confluência dos rios Araguaia e Garças. Além de terem conhecido novas áreas em outros estados, ampliando o seu leque de observações sobre as paisagens físicas e humanas, o mais interessante foi a maneira como os dois viajantes chegaram ao sertão central do Brasil: deslocaram-se de trem até Uberlândia (Minas Gerais) e depois partiram para Mato Grosso na carroceria de um caminhão, na qual se equilibravam, durante a viagem, sobre sacos de sal, açúcar e feijão.

Em outra viagem, não menos aventureira, o professor Aziz se deslocou com o também seu amigo, o biólogo e oceanógrafo Wladimir Besnard, para a cidade de Manaus (Amazonas), conhecendo pela primeira vez a Amazônia. Sobre essa viagem, Ab’Sáber fez também relatos engraçados da aventura que foi chegar à cidade manauara. Segundo ele, o deslocamento de São Paulo para Manaus ocorreu numa “fortaleza voadora”, nome que se atribuía aos antigos aviões da Segunda Guerra Mundial, cedidos para a Força Aérea Brasileira (FAB) pelo governo dos Estados Unidos. Entretanto, como relatou o professor no livro referido acima, a aeronave, cujos pilotos ainda estavam em treinamento, com muito custo conseguiu chegar a Salvador (Bahia), onde os passageiros fariam uma escala de voo. Ao aterrissar na capital baiana, a aeronave teve problemas elétricos e somente foi consertada com a troca de peças de outra aeronave, não muito mais moderna. De acordo com o professor, os mecânicos fizeram uma verdadeira “gambiarra” para colocar o avião no ar novamente, seguindo rumo a Manaus, mas não sem antes realizar mais uma escala em Belém (Pará). O mais engraçado é que ele e o amigo fizeram a viagem inteira em um espaço muito apertado, localizado no bico da aeronave. Mesmo com todas essas aventuras, o professor Aziz reconhecia que essas duas viagens foram extremamente ricas, por revelarem um Brasil complexo, no que diz respeito tanto à natureza quanto às pessoas em seus lugares de vida.

 

“No que diz respeito a essa questão da preservação ambiental, o professor Aziz atuou além da universidade, com influência em órgãos públicos, com proposição relevante para a execução de planejamentos de políticas públicas.”

 

O professor Aziz obteve reconhecimento também por seus estudos e atuações em favor da causa ambiental. No Brasil, foi um dos primeiros a ser reconhecido como ambientalista, por sua obstinação pela preservação das áreas naturais, já prevendo que esse seria um dos grandes problemas que a humanidade enfrentaria no final do século XX e nas primeiras décadas deste novo milênio. Quando foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), de 1993 a 1995, conclamava os pesquisadores brasileiros à realização de estudos que tivessem um caráter interdisciplinar, bem como os alertava sobre a atenção que deveriam ter com as nossas riquezas naturais, em um momento em que essa questão ainda não despertava grande interesse da sociedade brasileira. Foi, nesse sentido, um defensor da Amazônia e do uso racional dos seus recursos naturais. Com essa mesma ênfase, defendeu, nos anos 1990, que não ocorresse a privatização da então Companhia Vale do Rio Doce, pois acreditava que aquela empresa estatal era um patrimônio da sociedade brasileira, que estava sendo usurpado pelos representantes do neoliberalismo, sem que estes esboçassem qualquer compromisso pelo bem-estar da nossa população.

Em outros episódios, o professor Aziz também convocava os políticos, e os brasileiros em geral, para defenderem o patrimônio natural brasileiro e para proporcionarem uma vida digna à população mais sofrida, revelações feitas a partir das diversas viagens que realizou ao lado do então candidato a presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva pelos rincões deste país, na denominada “Caravana da Cidadania”, no final dos anos 1990 e início dos 2000.

No que diz respeito a essa questão da preservação ambiental, o professor Aziz atuou além da universidade, com influência em órgãos públicos, com proposição relevante para a execução de planejamentos de políticas públicas. Por exemplo, durante a sua rápida gestão (de 1982 a 1983) na presidência do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), o professor contribuiu para dar continuidade à proposição de pautas associadas ao tombamento de áreas naturais e foi enfático na defesa de que no referido órgão houvesse uma equipe técnica de apoio aos estudos de tombamento de áreas naturais, o que aconteceu na gestão seguinte à sua presidência no CONDEPHAAT. Essa demanda de Ab’Sáber foi realizada sob a gestão do professor Antonio Augusto Arantes, de 1983 a 1984, com a nomeação, em 1983, de tal equipe, a qual, a partir daquele momento, ficou encarregada de apresentar estudos de viabilidade de tombamento de áreas ambientalmente protegidas em São Paulo, com elas servindo de referência ao patrimônio paisagístico tombado do estado. Foi o caso, na época, do avanço das discussões, no referido conselho, sobre o tombamento do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM), cuja proposta se concretizou em 1985. No entanto, foi na gestão do professor Aziz que ocorreram os principais encaminhamentos para a concretização dessa importante iniciativa. Antes disso, em 1983, houve o tombamento de outras áreas naturais, tais como o Parque Estadual da Serra da Cantareira e o da Serra do Japi, no estado de São Paulo, iniciativas que contaram com a participação ativa de Ab’Sáber. O tombamento de áreas naturais, que se repetiu em diversas outras nos anos seguintes, significou a proteção de importantes remanescentes de Mata Atlântica e também contribuiu para a contenção da especulação imobiliária e de outros interesses econômicos por esses espaços, evitando, assim, que ocorressem grandes intervenções decorrentes da expansão urbana, da exploração mineral e de outros mecanismos de apropriação das áreas naturais paulistas.

O professor Aziz pertencia a um grupo de expoentes intelectuais que não viam a academia apenas como um lugar de produção de conhecimento destinada a uma parcela privilegiada da população ou a poucas empresas hegemônicas, mas acreditavam que a universidade deveria cumprir o seu papel social de produzir conhecimento também para os excluídos, exatamente para aqueles que mais necessitavam dos avanços conquistados pela academia. Por isso, ele pregava uma democratização desse espaço de produção do conhecimento, rompendo os seus muros e irradiando os saberes produzidos para os diversos cantos do país. Essa democratização, entretanto, passava também, conforme avaliava, pelo acesso dos filhos de trabalhadores à universidade, e, nesse sentido, ele foi um incansável defensor de melhorias nas escolas públicas do ensino básico, por acreditar que essa seria a melhor alternativa para que o Brasil verdadeiramente se transformasse numa nação. Foi com esse espírito humanista e de sensibilidade social que ele também se juntou aos movimentos sociais, buscando apoiá-los em suas manifestações, especialmente naquelas que davam a esses movimentos mais possibilidades de exercerem a sua cidadania, conquista que, segundo ele, necessariamente passava pela escola e pela leitura.

O acesso das pessoas ao livro, por exemplo, foi uma das suas buscas obstinadas. Ele considerava que a leitura poderia seduzir as pessoas para que valorizassem o conhecimento de maneira integrada, na medida em que ela ajudaria os seres humanos a alcançarem novas descobertas e a se emanciparem das amarras das classes dominantes. Por isso, empreendeu uma luta para ampliar os canais de leitura tanto na universidade quanto nas periferias das grandes cidades, especialmente no estado de São Paulo. Durante muitos anos auxiliou na instalação de bibliotecas comunitárias em associações de bairro, em cursinhos pré-vestibulares nas periferias urbanas, em áreas debaixo dos viadutos, em penitenciárias, em escolas de samba, em quadras de torcidas organizadas de futebol, etc. Essa lição de cidadania foi outro legado importante deixado pelo professor Aziz para esta e as próximas gerações de brasileiros.

 

A Geografia em sala

A mesma dedicação que tinha em relação à pesquisa, ao trabalho de difundir as atividades de leitura ou à defesa da nossa biodiversidade, o professor Aziz também demonstrava em relação ao ensino de Geografia. Preocupou-se sempre em tornar mais acessíveis às pessoas os estudos produzidos por ele, através, por exemplo, de materiais didáticos que pudessem ser utilizados no ensino da disciplina.

Os seus textos e cadernos de atividades voltados para essa área eram cuidadosamente preparados e com frequência apresentavam textos de fácil entendimento e com muitas ilustrações (perfis topográficos, bloco-diagramas, desenhos esquemáticos, fotografias, mapas, etc.), para que o leitor pudesse compreender de maneira mais agradável à teoria. A lousa utilizada em suas aulas era sempre bem ilustrada, com desenhos representando formas de relevo, esquemas de vegetação e de bacias hidrográficas com as orientações dos cursos d’água, etc. A capacidade de desenhar era uma herança que ele carregava desde o ensino básico, quando teve uma professora de desenho que o incentivou nessa habilidade. Aliás, segundo ele, foi essa habilidade que possibilitou o seu ingresso no vestibular da USP: foi uma nota mais elevada nessa área do conhecimento que lhe permitiu a segunda colocação na prova geral de ingresso.

 

“Ele pregava uma democratização desse espaço de produção do conhecimento, rompendo os seus muros e irradiando os saberes produzidos para os diversos cantos do país.”

 

Como professor, também manteve uma postura exemplar em suas aulas na universidade, em palestras ministradas ou em qualquer outra situação em que ele era chamado para expor suas ideias. Não fazia distinção se o local era uma universidade renomada ou um pequeno salão coberto por lona, se era para alunos de pós-graduação ou para jovens de cursinhos pré-vestibulares populares da periferia, a postura sempre foi a mesma, e com o mesmo entusiasmo discutia seus apontamentos. Além disso, era extremamente acessível em sala de aula ou nas atividades de que participava fora da universidade. Dificilmente ele se recusava a atender a um convite para uma palestra em universidades ou para participar de eventos públicos na periferia das grandes cidades. Às vezes ele se deslocava de transporte público até o local da atividade, onde costumava levar pessoalmente os livros para as bibliotecas comunitárias. Ao chegar aos lugares, logo interagia com as outras pessoas. Percebia-se que a maior alegria dele nessas ocasiões era quando alguém perguntava algo sobre algum assunto que estudou durante a sua vida; isso era motivo para estabelecer um longo diálogo, que, às vezes, se estendia por horas em divertidas conversas, sem que ele demonstrasse qualquer arrogância sobre o seu profundo conhecimento.

A erudição era ponto de destaque em suas aulas, sem, entretanto, que a análise de uma teoria se transformasse em algo que pudesse caminhar para a incompreensão de seus alunos e/ou ouvintes. Ab’Sáber tinha uma didática invejável. Nas suas exposições, eram transmitidos os conceitos de determinados fenômenos físicos ou humanos com todo o rigor acadêmico, mas também para ensiná-los recorria a situações do cotidiano, contadas frequentemente com muito bom humor. Eram recorrentes em suas exposições referências de experiências vividas nas muitas viagens que realizou pelo Brasil e pelo mundo, de sua infância em São Luiz do Paraitinga ou da vida de seus familiares que vieram do Líbano, muitas vezes contadas com riqueza de detalhes e de um jeito engraçado.

Essa maneira de ensinar do professor Ab’Sáber, combinada com o seu amplo conhecimento teórico e empírico das dinâmicas geográficas especialmente do território brasileiro, fazia com que as salas de aula, os anfiteatros ou qualquer outro recinto estivessem sempre lotados por distintos tipos de públicos, sobretudo por jovens estudantes que viam no discurso do velho professor a proposição de questões muito atuais sobre os problemas do mundo contemporâneo.

 

Uma breve conclusão

É possível concluir que Aziz Ab’Sáber deixou legados importantes para esta e as próximas gerações de brasileiros no campo da ciência, da educação e do acesso à cidadania. No campo do conhecimento científico, aportou importantes ensinamentos, especialmente às ciências da natureza e às ciências humanas, com destaque para a Geografia e a Biologia. No caso da Geografia, trouxe grandes contribuições para os estudos dessa disciplina, a partir da construção de reflexões teóricas, amparadas em estudos empíricos de suas incontáveis viagens pelo território brasileiro, que valorizavam os processos dinâmicos na construção do espaço geográfico, transformado tanto pela ação da natureza quanto pela sociedade humana.

A sua história é um exemplo para as novas gerações de pesquisadores, uma demonstração de que o conhecimento produzido nas universidades não pode ser para poucos e muito menos ocorrer de maneira fragmentada pela hiperespecialização e pelo carreirismo acadêmico, tão comuns nos dias de hoje na universidade, sendo ela cada vez mais burocrática e produtivista.

No âmbito da Geografia, é um alerta para os jovens estudantes desse campo do conhecimento, muitos deles refratários às viagens aos rincões do país ou às periferias das grandes cidades, às vezes simplesmente pelo desinteresse em conhecer as realidades do Brasil e dos países pobres, as quais são permeadas por seus diversos contrastes, mas que são elucidativas dos processos contraditórios, naquilo que o professor Aziz chamava de falta de ética dos grandes agentes econômicos, que só pensam no lucro e que são geradores de miséria de uma parcela cada vez maior da nossa sociedade. Em outras situações os jovens estudantes são inibidos aos trabalhos de campo, motivados pela cultura do medo, tão presente atualmente, difundida pelos grandes meios de comunicação.          A esses futuros geógrafos, termino este texto com uma passagem do depoimento do professor Aziz a respeito do que ele pensava sobre a arte e a ética na Geografia:

 

“Toda vez que o conhecimento geográfico é projetado para um conjunto de pessoas que vai trabalhar com planejamento, ele passa a ser altamente ético e humanitário. São os geógrafos que cuidam das relações entre os homens, comunidades, sociedades e meio ambiente em que esses componentes básicos do planeta, junto com a vida vegetal e animal, têm o seu habitat”

(Ab’Sáber, 2007, p. 145).

 

Capa. Aziz Ab’Sáber tinha conhecimento detalhado do território brasileiro e de suas dinâmicas naturais e de ocupação humana.
(Fonte: Carta Educação. Reprodução)
NOTAS
Este artigo é baseado nos textos originalmente publicados na revista Carta Capital, de 27/11/2015, e no livro Caminhos de Ab’Sáber. Caminhos do Brasil, de 2013.

REFERÊNCIAS CITADAS NO TEXTO:
Ab’Sáber, Aziz Nacib. O que é ser geógrafo: memórias profissionais de Aziz Ab’Sáber. Em depoimento a Cynara Menezes. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Ab’Sáber, Aziz Nacib. Geomorfologia do sítio urbano de São Paulo. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2007.
Ab’Sáber, Aziz Nacib. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
Silvia, Maria Auxiliadora da; Ramos, Itaciane; Cordeiro, Paula Regina (coord.). Caminhos de Ab’Sáber. Caminhos do Brasil. Salvador: EDUFBA, 2013.
Vicente Eudes Lemos Alves é professor de Geografia no Instituto de Geociências (IG) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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