Berta Ribeiro no Noroeste Amazônico

As palhas, os traçados e as tecnologias nas terras dos rios de águas pretas

Resumo

Em 1978, Berta Ribeiro realizou uma investigação inovadora na região do Alto Rio Negro, Amazonas, sobre a arte do traçado em folhas e palhas entre os povos indígenas. Esta pesquisa contribuiu enormente para os campos disciplinares da antropologia e da museologia, integrando conhecimentos etnográficos e promovendo a divulgação das práticas tradicionais culturais. A documentação etnográfica realizada através desta importante investigação, gerou um repositório significativo das tecnologias indígenas no uso das palhas e fibras Estes conhecimentos fazem parte do saber fazer dos povos indígenas desta região até a presente data fundamentais para sua sobrevivência física e cultural.

Preâmbulo

Encontrei pela vez com Berta Ribeiro em 1978, em Iauaretê, na região do Alto Rio Negro, na bacia hidrográfica do rio Uaupés. Eu estava nesta ocasião, a convite dos Salesianos, organizando treinamentos para que os alunos da Escola pudessem estabelecer grupos de alfabetização de adultos em seus respectivos povoados. Era essa a ideia para fazer com que todos possam ler e escrever minimamente o português. Evidentemente, para missão, esses grupos tinham muito sentido, pois se poderiam aumentar o número de pessoas que teriam conhecimentos suficientes na leitura da literatura missionária, a única impressa existente até então em todo este imenso território da região do médio e alto Rio Uaupés.

Então o Salesiano, diretor da missão, durante o almoço informou a todos que ele recebera duas mulheres antropólogas, do Museu Nacional, Berta Ribeiro e Janet Chernela, haviam chegado na Missão. Berta Ribeiro há uns meses havia-me escrito uma carta informando que ela estaria chegando nesta região para realizar uma pesquisa sobre o que ela chamava a arte do traçado em folhas e palhas.

Durante o intervalo, eu vou até ao quarto de hóspedes (que ficava na ocasião nos fundos do prédio dos correios) da missão encontrar com as duas antropólogas, que chegaram para realizar suas pesquisas para suas respectivas teses de doutoramento. Na realidade, meu papel foi de dar as informações que eu conhecia sobre este espaço cultural bem delimitado, o que representava naquele momento os entornos da “Missão Salesiana de Iauaretê”, acredito que fiz muito bem este papel. Pois afinal eu já conhecia, todas as aldeias dos povos indígenas desta região e podia falar com certa propriedade os nomes na língua tukano, bem como conhecia de modo geral os principais eventos do mito de criação destes povos, que passei em primeira mão para as duas colegas, de sorte que elas pudessem ter conhecimentos bem apropriados sobre estes povos que habitavam esta região e seus interesses de pesquisa.

Berta Ribeiro tem contribuições em diferentes campos da antropologia brasileira. Não é simplesmente como uma acadêmica pesquisadora, mas também no campo editorial, principalmente com os livros produzidos por Darcy Ribeiro, em geral, lembrando aqui o esforço hercúleo de organizar os três volumes da Suma Etnológica. Uma característica fundamental do seu fazer com as informações etnográficas que organizava era de imediato colocar em uma linguagem, seja em forma de livro, em forma de exposições ou mesmo em forma de desenhos animados. Era muito importante para ela divulgar e dar a conhecer a diversidade cultural e os conhecimentos dos povos indígenas. Na foto abaixo, que faz parte de uma exposição que organizei para a RBA de 2006 em Goiânia, vemos Berta Ribeiro, de vestido preto, com as mulheres antropólogas que estavam participando da 3⁠ª. Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) em 1958 no Recife. Berta como sempre a organizar e debater a possibilidade de mostrar ao mundo as principais questões relacionadas ao mundo dos povos originários.[I] (Figura 1)


Figura 1. Berta Ribeiro, de vestido preto, com as antropólogas que participavam da 3a. Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) em 1958 no Recife.
(Fonte: 3a. Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) em 1958. Reprodução)

 

A sua estadia na região do Alto Rio Negro, em 1978, foi um grande aprendizado e dará a ela caminhos para que ela pudesse juntar todas as informações que dispunha para mostrar o país dos Rios das Águas Pretas. O seu livro “Os Índios das Águas Pretas” depois de sua tese de doutorado, citada abaixo, mostra um retrato minucioso dos povos do Alto Rio Negro, desvendando seu saber sobre o meio amazônico e suas técnicas de preservação do ambiente. Em uma descrição densa e intensa, Berta demonstra como os povos preservam quase intacta uma diversidade biológica ainda pouco conhecida e estudada. “Os Índios das Águas Pretas” mostra a importante contribuição que os estudos antropológicos podem fornecer na busca de soluções alternativas para problemas que têm mobilizado organizações do mundo todo e exigido a tomada de decisões com relação a um desenvolvimento sustentável.

O interesse de Berta Ribeiro com relação aos povos indígenas desta imensa região estava basicamente relacionado com o ambiente e a produção de utensílios que possibilitasse uma vida adequada e melhor para estas populações. Sem dúvida o conhecimento deste meio ambiente que gerará os diversos utensílios como as cestarias dos povos desta região. O seu interesse acadêmico vinha de uma preocupação real com as questões que envolvem os objetos etnográficos em museus. Berta sabia já desta importante problemática tanto para os campos da antropologia como o da museologia. Nesse diálogo inicial concentraremos nossas conversas nas especialidades étnicas dos traçados. Certamente as mais importantes produções para o cotidiano nas aldeias dos povos desta imensa e bonita região. E nada mais importante de entender como estes objetos aparecem nas narrativas mitológicas. Evidentemente o principal tema de sua tese de doutorado que estava realizando na Universidade de São Paulo (USP)[1] era o “traçado” tal como ela me explicava na ocasião. Essa tese representa uma grande inovação nos conceitos de documentação museológica com relação aos objetos etnográficos e sobretudo aqueles objetos que permite que o cotidiano seja amplamente adequado ao seu ambiente. Pessoalmente eu me impressionei com esta realidade, tão presente para mim no cotidiano desses povos. Na realidade, não existiam autores que trataram desta temática nesta região, acredito que até a presente data se faz necessário um debate atual sobre estes artefatos de palhas e barro que passaram a ser usados com outros materiais.

 

“Berta Ribeiro tem contribuições em diferentes campos da antropologia brasileira. Não é simplesmente como uma acadêmica pesquisadora, mas também no campo editorial. Era muito importante para ela divulgar e dar a conhecer a diversidade cultural e os conhecimentos dos povos indígenas.”

 

Como Berta Ribeiro (1980:7) [1] assinala em sua tese de doutoramento, apenas o estudo interdisciplinar da tecnologia, ou seja, os modos de fazer, da morfologia dos objetos e sobretudo do contexto ecológico ambiental onde estes objetos produzidos pode mostrar as associações e “organização dos homens para a obtenção de subsistência”. O que na realidade estes objetos explicam a relação destes povos com o ecossistema. Mas, na realidade, Berta Ribeiro ampliará este axioma, quando incorpora na sua tese os conhecimentos indígenas que ela recebera pessoalmente de Firmiano e Luiz Lana no povoado desana de São João no Rio Tiquié, que logo após ela edita e publica a primeira narrativa desana sobre os eventos da criação em um livro intitulado “Antes o Mundo não Existia” com os nomes tradicionais dos autores Umusi Pãrõkumu e Tõrãmu Kehíri (1980).[2]

Pretendo neste texto apontar elementos sobre alguns objetos que fazem parte de minha pesquisa atual, sobre objetos xamânicos (Athias, 2015)[3] e que a produção acadêmica de Berta Ribeiro sugere a incluir no debate sobre objetos etnográficos, seja no campo mesmo da produção de artefatos, mas sobretudo de mecanismos que melhorem a documentação museológica e no entendimento sobre o uso do objeto.

 

Os rios das Águas Pretas

Quando Berta Ribeiro volta de sua viagem de campo da região do Alto Rio Negro, após realizar quase o mesmo trajeto que Koch-Grunberg (1909) e Curt Ninuendajú (1927)[III] realizaram, ela toma consciência, como muitos de nós pesquisadores desta região, sobre o impacto dos rios-de-águas-pretas sobre o conjunto da cultura e, sobretudo, na tecnologia do uso de matéria-prima por parte dos povos desta região. Dificilmente uma pessoa sem ter estado nesta região compreende este impacto dos rios de águas pretas no cotidiano destes povos.

Como escrevi anteriormente (Athias, 1995) [4] o Rio Negro talvez seja o maior rio de águas pretas da Amazônia. Os especialistas caracterizam estas águas como extremamente ácidas e pobres em nutrientes. As terras que drenam são de solos muito empobrecidos e lixiviados. Esta pobreza em nutrientes dos rios influi na vida dos peixes, que, para se sustentar, obtêm a maior parte de sua alimentação de matéria orgânica oriunda principalmente das margens dos rios (vários tipos de insetos, frutas, flores, folhas e sementes). Estas características vão influenciar nas técnicas e armadilhas de caça e pesca, nos traçados e confecção de cestos e outros objetos produzidos com material biológico oriundos de palhas e cipós.

O contrário acontece nos rios de águas brancas, ricos em nutrientes, como o Amazonas e do Solimões. E. Moran (1991) [5] tem assinalado muito bem as características desse ecossistema visando a um entendimento da organização das populações em explorar a biodiversidade existente nesta região. E os povos indígenas conseguiram uma convivência exemplar nesse contexto geográfico muito adverso e pobre. Nesse sentido, essa vivência possibilitou que esses povos pudessem ampliar um conhecimento necessário para uma exploração racional dos recursos provenientes dos serviços dos ecossistemas. A narrativa de Berta Ribeiro em “Os índios das Águas Pretas” é um diálogo com E. Moran, ampliando para as questões relacionadas às tecnologias indígenas neste contexto ecológico.

 

“Através de uma narrativa indígena autêntica, esses objetos contariam suas histórias de sequestro, rompendo com as versões museológicas frequentemente desvinculadas da realidade indígena.”

 

Nimuendajú foi o primeiro a apontar (Athias, 1995) [4] uma controvérsia entre os cientistas sociais e os ecólogos a respeito dos ecossistemas da bacia do Rio Uaupés. Para os primeiros, a região apresenta uma homogeneidade; para os demais, essa homogeneidade não existe, discordam sob o argumento de uma distribuição desigual das características biogeográficas, sobretudo com relação à biomassa pesqueira (Chernela, 1993:123).[6] A bacia do Uaupés se caracteriza por seu regime bianual de cheias e vazantes, diferente de outras áreas da bacia Amazônica. Essas flutuações resultam da variação nas precipitações pluviais que afetam os mananciais superiores do sistema do rio, seus tributários.

Importante assinalar que o Rio Uaupés tem um percurso de 520 km no lado brasileiro, apresentando uma largura máxima de 3 km quando deságua no Rio Negro, um pouco acima de São Gabriel. Existindo duas principais estações, a das chuvas, de abril a setembro, e a da seca, ou seja, menos chuvosa, de outubro a março. Segundo informações do centro meteorológico de Pari Cachoeira (Athias, 1995),[4] no Rio Tiquié chove cerca de 200 dias por ano. O curso dos principais rios, Uaupés, Tiquié e Papuri, é atravessado por numerosas cachoeiras (corredeiras) constituindo um obstáculo natural à navegação de grande porte. E, foi graças a esses acidentes geográficos que os indígenas puderam ficar longe das grandes chacinas do século XVIII, praticadas pelos portugueses no baixo Rio Negro. No Rio Uaupés existem pelo menos trinta cachoeiras grandes, e outras sessenta menores. Essas cachoeiras abrigam uma fauna adaptada às condições rigorosas das corredeiras, à sua grande turbulência e à saturação do oxigênio. Os peixes se adaptaram a essa situação com um comportamento e morfologia específica (Chernela, 1993:243).[6] Além de abrigos, as rochas oferecem alimentos aos peixes, como algas e plantas aquáticas. Por sua vez, este tipo de vegetação atrai certa quantidade de larvas de insetos, nutrindo assim os peixes.

Entre as cachoeiras do Uaupés e seus dois principais afluentes — Tiquié e Papuri — existem aquelas que são permanentes, com declives mais íngremes. As outras, com menos declive, são sazonais, desaparecendo durante o período de seca. As cachoeiras permanentes impedem a passagem de certos peixes. Até a cachoeira Fortaleza, naqueles anos de 1970, em São Gabriel, a maior em todo o curso do Rio Negro, por exemplo, pode-se encontrar o Pirarucu (Arapaima gigas) e o Tambaqui (Colossoma macropomum). Acima dessa cachoeira esses peixes não são mais vistos. Certamente existirão outras espécies que não conseguiriam ultrapassar esses obstáculos. Esse habitat irá influenciar consideravelmente como os índios da bacia do Uaupés praticam a busca e a captura de peixes como proteínas para completar uma dieta sustentada, praticamente, à base de mandioca.

Portanto, toda a região é entrecortada de pequenos riachos e igarapés. Em alguns deles pode-se navegar durante todo o ano. Outros, porém, estão secos durante o período da vazante. Dias antes de secarem, os indígenas que vivem nas proximidades destes, praticam nesses igarapés a pesca com veneno, conhecido como timbó, capturando todos ou quase todos os peixes desses igarapés que secarão. Os Igapós são os terrenos inundáveis, mais baixos, que ficam cheios durante as enchentes sazonais. Existem algumas colinas que são famosas fazendo parte da tradição mitológica dos habitantes dessa região, como, por exemplo, a serra denominada de “Bela Adormecida”, chamada assim desta maneira por se parecer a uma mulher deitada, e está situada do outro lado do Rio Negro, em frente à cidade de São Gabriel, e outras. Na região, por exemplo, encontra-se o famoso Pico da Neblina, bem na fronteira com a Venezuela, em terras Yanomami, com altitude de 3.045 m, o mais alto do Brasil, o mais importante vestígio no escudo (bouclier) guianês.

Subindo o Rio Uaupés, afluente da margem direita do Rio Negro, desde São Gabriel várias colinas ou pequenas montanhas isoladas são encontradas durante esse trajeto. Se a viagem for feita por um Tukano, em cada uma delas, num total de sete, seguindo até a grande cachoeira de Ipanoré, ele se refere a um ente mitológico. São Pedras-Monumento, como diz Durvalino Chagas (2001) [7] em sua dissertação de mestrado, ao se referir aos aspectos simbólicos destas pedras e serras que encontramos em toda a região. Cada uma delas conta as histórias contidas nas diversas narrativas mitológicas dos povos desta região.

 

Arte da vida

Todos os utensílios de um grupo doméstico são lindamente elaborados de barro, argila e palhas, em geral, de palmeiras. Berta Ribeiro traz na sua tese de doutorado os principais utensílios com os quais ela realiza uma excelente narrativa meta etnográfica. Ou seja, não somente realizando descrições sobre esses objetos, mas apontando na narrativa mitologias dos desana de São João do Rio Tiquié: Luiz Lana e seu pai Firmiano. Berta Ribeiro soube usar muito bem a compilação de narrativas ditadas por Firmiano a seu filho Luiz Lana, ao trazer essas narrativas ela produz um texto que pode ser visto nestas narrativas mitológicas e, ao mesmo tempo, podendo ser encontrado na realidade ambiental onde estas povoações foram estabelecidas.

Ao se encontrar objetos de barro e de palhas, percebe-se muito bem que estes povos indígenas desta região já se encontram sedentarizados em lugares devidamente marcados por histórias mitológicas. E esses instrumentos confeccionados com esta matéria-prima denota claramente o caráter sedentário e as práticas econômicas destes povos. Em outras palavras, como a própria Berta Ribeiro diz em sua tese de doutoramento, todos os utensílios utilizados por estes povos finamente elaborados com barro e determinados tipos de argilas são provenientes de povos que têm a agricultura como base das atividades econômicas.

 

“As contribuições de Berta Ribeiro inspiram uma abordagem inovadora e necessária para a relação entre museus e povos indígenas, indo além da preservação dos objetos etnográficos.”

 

As palhas são parte integrante do trabalho de Berta Ribeiro, e seria interessante ressaltar aqui o sentido da palha de palmeira nesta região como um todo. Um dos argumentos centrais de seu trabalho é que ela recupera no texto de Lewis H. Morgan que dizia que o traçado dos objetos seria como “arte da vida” (Ribeiro, 1980:4),[8] ou seja, como ela mesmo explica “como criação cultural de domínio da natureza que possibilita a vida social. Nesse sentido, ele é estudado como elemento integrante e integrado de uma cultura”. Esta frase toma sentido muito forte quando estamos nos museus estudando os objetos desses povos pode-se entender olhando para trás para a sua estadia nesta região, estes objetos de arte, nos museus adquire de fato um valor explicativo para os fenômenos culturais.

Nestes últimos anos, viajando em vários lugares e visitando os museus, encontramos alguns objetos interessantes que se encontram em museus que nos interessam, sobretudo pela falta de informação etnográfica a respeito. Para mim, demorou alguns anos para juntar algumas informações sobre um artefato que vi no Museu Etnográfico de Gotemburgo, em 2014, que me intrigou bastante, e não podia relacionar com nenhum outro objeto que vira. Poderia ser um objeto de uso para cavar ou talhar. Então comecei a olhar este objeto que parecia um tipo de enxó. Meses depois, eu perguntei para vários indígenas na região, e me confirmaram que parecia ser uma enxó. Lembrei-me, que eu digitalizara uma carta de Curt Nimuendajú, do acervo documental da coleção Carlos Estevão Oliveira do Museu do Estado de Pernambuco, que não se encontrava no livro “Cartas do Sertão” organizado por Teckla Hartmann. Curt Nimuendajú falava, nesta carta, que coletara um enxó e informava que esse enxó era de uso ritual utilizado nas festas. Então iniciou-se uma série de entrevistas com representantes indígenas para falar sobre este instrumento, o mais interessante é que vários não sabiam explicar exatamente. Um deles me informou que o pai falara sobre esse enxó ritual, mas que não lembrava mais exatamente o sentido da utilização nas festas e que ele nunca vira. (Figura 2)


Figura 2. Fotografia de um “Enxó – Objeto Ritual dos Tukano do Rio Uaupés
(Fonte: Museu Etnográfico de Gotemburgo, Suécia, Foto: R. Athias 2014)

 

Escudo identitário

O presente texto apresenta sinteticamente o significado cultural e simbólico dos escudos nas sociedades indígenas Desana e Tukana, que ocupam vastas regiões do Noroeste Amazônico, na região do Alto Rio Negro. Com base em relatos etnográficos e fontes históricas, argumenta-se que esses objetos desempenham um papel central na identidade e organização social dessas comunidades, além de estarem intrinsecamente ligados à cosmologia e à relação com o mundo espiritual. Em seu estudo sobre o traçado, Berta Ribeiro faz um detalhamento não só do saber fazer mas também a realidade simbólica que este objeto mostra, destacando-se no escudo, um objeto de profundo significado cosmológico e identitário. Conforme observado tanto nas comunidades dos Desana quanto nas dos Tukano, cada clã possuía um escudo exclusivo, que estava sempre presente nas casas comunais (malocas). Esse escudo era utilizado exclusivamente pelo chefe do clã, simbolizando não apenas a autoridade, mas também a unidade e a integridade do grupo.

A foto acima tirada por Koch-Grunberg (1909) [9] e sua importante etnografia sobre a região ilustra dois indivíduos de uma sociedade indígena tradicional, ambos portando escudos circulares de características distintas. Esses estudos são elaborados com materiais naturais, fibras vegetais muito bem descritas por Berta Ribeiro, e apresentam padrões únicos que refletem os traços identitários de cada clã. A disposição da palha na estrutura desses escudos parece corresponder a uma prática artesanal única, evidenciando o modo como a estética e a funcionalidade se entrelaçam no processo do saber fazer. (Figura 3)


Figura 3. Indivíduos de uma sociedade indígena tradicional portando escudos circulares de características distintas.
(Fonte: Koch-Grunberg, 1909)

 

Os escudos, como observado nas figuras e descrições etnográficas, são mais do que simples instrumentos de defesa. Eles representam marcas identitárias profundas. Cada clã tinha um escudo exclusivo, que, juntamente com outros objetos sagrados como o colar de quartzo, simbolizava o poder e a linhagem de seu portador. O colar de quartzo, frequentemente citado em relatos de viajantes que exploraram essas regiões, complementa o escudo como um marcador de status e conexão espiritual.

Essa singularidade do escudo também se reflete em sua fabricação. O padrão de traçados, organização das palhas e o estilo de entrelaçamento eram todos específicos para cada comunidade. Tais traços conferiam a cada escudo um significado particular, transformando-o em um símbolo próprio do clã, remetendo a uma ancestralidade, portanto insubstituível. Assim, o escudo não apenas protegia o corpo físico do líder, mas também assegurava a continuidade espiritual e cosmológica do clã.

Na imagem apresentada, os escudos são elementos centrais, tanto em termos de composição visual quanto em relação ao contexto cultural. Os homens estão claramente associados a uma posição de autoridade, possivelmente chefes ou guerreiros, como sugerido pelo porte dos escudos e lanças. O padrão do escudo maior, com uma disposição circular e entrelaçada, evidencia o complexo trabalho artesanal característico dessas sociedades, conforme descrito no texto.

A disposição da palha tanto nos escudos quanto na parede ao fundo também indica uma continuidade estética entre o material usado para a fabricação de artefatos de defesa e o ambiente arquitetônico das malocas. Essa estética compartilhada reforça a noção de que o escudo não é apenas um objeto funcional, mas parte de um sistema simbólico mais amplo, que abrange desde o espaço social até o cosmológico.

Os escudos nas sociedades Desana e Tukano servem como poderosos símbolos de identidade e poder. Além de sua função prática, os escudos encapsulam a estrutura social e espiritual desses grupos. A relação entre o material utilizado, o traçado dos padrões e a exclusividade de cada escudo para seu respectivo clã demonstra o papel central desses artefatos na construção e manutenção da identidade coletiva. A imagem analisada complementa essa compreensão, fornecendo uma representação visual do escudo em seu contexto cultural. (Figuras 4, 5 e 6)


Figura 4, 5 e 6. Escudo, possivelmente Tukano, na reserva técnica Museu Nacional de História Natural do Smithsonian Institution, Washington
(Fonte: R. Athias, 2017)

Lições tiradas das obras de Berta Ribeiro

Os textos de Berta Ribeiro ajudam a dar profundidade nas atividades colaborativas que tenho realizado com os representantes indígenas na região, especificamente os colegas Domingos Barreto, Tukano; Max Menezes, Tukano; Marcelino Massa, Desana e Alfredo Fontes, Tukano, nos levam a pensar um modelo, não apenas de documentação museológica, dos objetos indígenas, dos indígenas do Rio das Águas Pretas, que se encontram em diferentes museus na Europa, mas sim um trabalho contínuo com esses objetos, que devolvem uma memória sobre a história social dos deslocamentos destes objetos, sobretudo busca dar pista para protocolos de reparação para esses povos e continuidade de atividade com estes objetos na Europa e o nos Estados Unidos.

O modelo de reparação em discussão pelas organizações indígenas propõe uma abordagem inovadora nas negociações com os museus em relação às coleções etnográficas. A proposta sugere que os objetos atualmente abrigados nos museus permaneçam nessas instituições. No entanto, a gestão dessas coleções seria assumida pelos povos indígenas por meio de um protocolo formal (formal agreement), estabelecido entre as organizações indígenas e os museus. Esse acordo visaria garantir que as comunidades indígenas possam gerenciar plenamente todos os aspectos das coleções, desde sua conservação até sua interpretação.

Uma parte crucial desse modelo de reparação envolve a libertação simbólica dos objetos, permitindo que eles revelem a verdade sobre suas trajetórias históricas. Através de uma narrativa indígena autêntica, esses objetos contariam suas histórias de sequestro, rompendo com as versões museológicas frequentemente desvinculadas da realidade indígena. Para as comunidades, esse processo seria visto como a restituição das memórias contidas nos objetos, permitindo uma reconexão profunda com suas histórias e culturas.

Ademais, essa proposta representa um passo concreto em direção à “gestão compartilhada” das coleções, na qual os povos indígenas desempenham um papel ativo na administração e interpretação dos objetos que fazem parte de seu patrimônio. Nesse contexto, a decolonização dos museus não se limita à simples devolução física de artefatos, mas abrange uma transformação mais ampla, onde as vozes indígenas são reconhecidas e respeitadas no âmbito das narrativas e práticas museológicas.

Em conclusão, essa forma de reparação implica uma reestruturação significativa das relações entre museus e comunidades indígenas, com potencial para avançar no processo de decolonização dessas instituições. Resta saber se os museus estarão dispostos a adotar esse modelo de reparação, que reconhece a soberania indígena sobre suas próprias histórias e memórias, proporcionando uma verdadeira justiça reparatória.

Podemos concluir que as contribuições de Berta Ribeiro inspiram uma abordagem inovadora e necessária para a relação entre museus e povos indígenas, indo além da preservação dos objetos etnográficos. Sua obra sugere reconexões profundas entre os povos indígenas e seu patrimônio cultural, contribuindo para as discussões contemporâneas sobre modelo de reparação proposto neste texto, que inclui uma gestão compartilhada das coleções, o que é um passo importante para a decolonização das instituições museológicas. No entanto, resta o desafio de os museus adotarem essa visão, permitindo uma verdadeira justiça reparatória e reconhecendo plenamente a soberania indígena sobre suas narrativas e memórias.

 

Capa. Berta Ribeiro fomentou discussões fundamentais sobre a preservação e valorização dos povos indígenas e suas tradições culturais.
(Fonte: Fundação Darcy Ribeiro. Reprodução)
NOTAS
[I] Esta exposição na sua totalidade pode ser visualizada através deste link: https://renatoathias.blogspot.com/2007/06/#7420874635291909197
[II] RIBEIRO, Berta G. A civilização da palha: a arte do trançado dos índios do Brasil. Desenhos de Rodolfo Burgos; Fotos de Domingos Lamônica. São Paulo: Fac. Fil. Letras e Ci. Humanas da USP, 1980. 451 p. il. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo: Faculdade de Filosofia Ciências e Letras e Ciências Humanas.
[III] Conferir Athias, 2015 sobre o registro de Curt Nimuendaju sobre esta viagem.

REFERÊNCIAS
[1] RIBEIRO, Berta Gleizer. 1980. A civilização da palha: a arte do trançado dos índios do Brasil. Desenhos de Rodolfo Burgos; Fotos de Domingos Lamônica. São Paulo: FFLCH/USP, Tese de doutoramento.
[2] UMUSI Pãrõkumu & Tõrãmu Kehíri. 1980. Antes o Mundo não Existia. Cultura Editora 1ª Edição
[3] ATHIAS, R. 2016 Objetos Indígenas Vivos em Museus: Temas e Problemas Sobre a Patrimonialização In: Athias, R.; Lima Filho, M.; Abreu, R. Museus e Atores Sociais: Perspectivas Antropológicas, Editora da UFPE, ABA Publicações,
[4] ATHIAS, R. 1995 Hupdë-Maku et Tucano – Les relations Inégales entre deux Sociétés du Uaupés Amzonien (Brésil). Tese de Doutoramento. Universite de Paris Nanterre.
[5] MORAN, E.F., 1991. Human adaptive strategies in Amazonian blackwater ecosystems. American Anthropologist, 93(2), pp.361-382.
[6] CHERNELA, J. 1993. The Wanano (Kotiria) Indians of the Brazilian Amazon: A Sense of Space. Austin: University of Texas Press.
[7] CHAGAS, Durvalino 2001 Cosmologia, Mitos e História: O Mundo dos Pamulin-Mahsã Waikhana do Rio Papuri – Amazonas. Dissertação de mestrado no PPGA/UFPE
[8] RIBEIRO, Berta Gleizer. 1980. A civilização da palha: a arte do trançado dos índios do Brasil. (Desenhos de Rodolfo Burgos; Fotos de Domingos Lamônica). São Paulo: FFLCH/USP, Tese de doutoramento.
[9] KOCH-GRÜNBERG, T. 1909, 2005 Dois Anos entre os Indígenas – Viagens no Noroeste do Brasil 1903/1905 (Trad. Casimiro Beksta), Manaus, EDUA, Faculdade Salesiana
Renato Athias é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (NEPE) do Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco.

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