Berta Gleizer Ribeiro é sempre lembrada como uma pessoa afável, generosa e como uma antropóloga, pesquisadora e escritora incansável. Sua vida e seu trabalho foram marcados pela militância, exercida em muitas frentes e abraçando causas políticas, ecológicas, patrimoniais, museológicas, conectadas com povos e comunidades tradicionais amazônicas, tendo sido, em especial, uma militante apaixonada da causa indígena.
Berta Ribeiro nasceu em uma família judia, em Beltz, na Romênia, em 2 de outubro de 1924. Era filha de Motel e Rosa Gleizer e irmã caçula de Genny. Fugindo da perseguição antissemita na Europa, Motel se estabelece em 1929 como comerciante no Rio de Janeiro e as filhas chegam à cidade em 1932, após a morte da mãe. Como ocorre frequentemente com os que vêm de outras plagas, a porção romena de Berta Ribeiro se revelou eminentemente desbravadora. Esse sentido foi exercido, por um lado, em inúmeras viagens, iniciadas em 1949-1951 quando, recém-casada com Darcy Ribeiro, passou a acompanhá-lo nas pesquisas de campo entre povos indígenas. As primeiras ocorreram entre os Kaingang no Sul, depois vieram os Kadiweu e os Terena no Mato Grosso, em seguida os Ka’apor no Maranhão. No alto e médio rio Xingu esteve entre os Yawalapiti, os Kayabi, os Juruna, os Araweté e os Asurini. (Figura 1)
Figura 1. Berta Gleizer Ribeiro passou a acompanhar Darcy Ribeiro nas pesquisas de campo entre povos indígenas. No alto e médio rio Xingu esteve entre os Yawalapiti, os Kayabi, os Juruna, os Asurini e os Araweté, entre os quais a foto a apresenta.
(Foto: Fundação Darcy Ribeiro. Reprodução)
Durante os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, Berta Ribeiro acompanha Darcy Ribeiro no exílio no Uruguai e, posteriormente, na Venezuela, Chile e Peru. Nesse período, trabalha na organização da documentação de Darcy Ribeiro até o regresso ao Brasil em 1974, ano em que se separam. Entretanto, continuam trabalhando em parceria até o final de suas vidas, como atestam os três volumes da “Suma etnológica brasileira”,[1, 2, 3] de 1986, relativos à Etnobiologia, à Tecnologia Indígena e à Arte Indígena.
Analisar em profundidade a contribuição de Berta Ribeiro a respeito de diferentes povos indígenas do Maranhão, Pará, Mato Grosso e Amazonas extrapola as limitações dessa coletânea. Nas reflexões que seguem, [4, 5, 6] o afeto perpassa o texto e se mescla a uma narrativa a respeito da dedicação de Berta Ribeiro aos estudos da cultura material de povos indígenas amazônicos, a formação de coleções etnográficas, sua classificação e difusão, e as análises que produziu a respeito do papel dos museus, questões que não puderam ser aprofundadas com o rigor que merecem.
As trilhas dos artefatos: exposições e coleções etnográficas
Berta Ribeiro trilhou diferentes caminhos, pois os seus interesses eram diversificados e, assim, compreendiam a antropologia, arqueologia, ecologia, história e a museologia. Nesse último campo possuía especial entusiasmo pela curadoria e montagem de exposições, como o caso de “Os índios das Águas Pretas: Uma área cultural no noroeste do Amazonas”, inaugurada em 1980 por ocasião de uma reunião da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), no Rio de Janeiro. Constituiu uma das primeiras exposições que organizou e envolveu, como as demais, a comunicação clara e objetiva de aspectos da vida indígena e a discussão de temas amazônicos, relacionados a uma preocupação ecológica. Ao longo dos anos sucederam-se: “Índios do Brasil: cultura e identidade” em Roma, em 1983; “Brasilidades” na Casa França-Brasil, no Rio de Janeiro, em 1991; “Amazônia Urgente: cinco séculos de história e ecologia” [7] foi apresentada durante a ECO 92, na Estação Carioca no Rio de Janeiro e nos anos subsequentes em São Paulo, em Brasília e em Belém.
“Berta Ribeiro trilhou diferentes caminhos, pois os seus interesses eram diversificados e, assim, compreendiam a antropologia, arqueologia, ecologia, história e a museologia.”
A mostra “Amazônia Urgente”, acompanhada de livro de mesmo título, teve grande repercussão. No estabelecimento da curadoria dessa exposição, a antropóloga, objetivando defender os ecossistemas e as populações amazônicas, destacou, de forma pioneira, pautas ecológicas, sociais e políticas. A urgência que Berta Ribeiro apontou, no passado, sobre a Amazônia, ainda se reproduz na atualidade, pois as invasões das terras indígenas, o desmatamento e as queimadas, o garimpo ilegal e outros ilícitos ainda afligem a Amazônia no mundo contemporâneo. (Figura 2)
Figura 2. Menino e tatu. Registro de Aspectos cotidianos e rituais dos índios do alto Xingu.
(Foto: Fundação Darcy Ribeiro. Reprodução)
Berta Ribeiro se dedicou, de forma contínua, a aspectos museológicos e à reflexão sobre o papel dos museus. Além de formada em História e Geografia, e de ser doutora em Antropologia, possuía registro de museóloga no Conselho Regional de Museologia do Rio de Janeiro. Institucionalmente, esteve associada ao então Museu do Índio/FUNAI, chefiando o Serviço de Museologia e, posteriormente, ao Museu Nacional/UFRJ, onde atuou como pesquisadora e formadora de coleções etnográficas no Setor de Etnologia, organizando fichários e a documentação relativa aos povos indígenas do Xingu.
Os acervos etnográficos de instituições museais, oriundos dos povos indígenas que estudava constituía um de seus interesses capitais, pois como estudiosa de cultura material, Berta Ribeiro lia objetos e os colecionava, atividade associada à identificação e registro minucioso da tecnologia indígena, empregada na produção dos objetos, sobretudo os utilizados na vida cotidiana, associados às práticas produtivas. Em seu apartamento, pacientemente reuniu, ao longo dos anos, um vasto acervo que contou com contribuições de Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão. Eram destinados a viabilizar um projeto de Museu do Índio a ser implantado na capital federal, o que se efetivou através do atual Memorial dos Povos Indígenas.
Os seus projetos de pesquisa entre os povos indígenas Wanana, Naduhup, Baniwa do alto Rio Negro e Kayabi do Alto Xingu, resultaram em acervos de artefatos cerâmicos, armas e cestarias e destinados ao Museu Nacional. Outras coleções, organizadas posteriormente entre os Araweté do Pará e os Asurini do Xingu e se destinaram ao Museu do Índio, no Rio de Janeiro, e ao Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém. Paralelamente, empenhou-se na promoção e publicação de estudos museológicos, a despeito de seu baixo prestígio na época. Berta Ribeiro acreditava que esses estudos permitiam apoiar a causa indígena e porque encarava os museus enquanto um meio de educação pública.
No campo da materialidade, os elementos centrais dos interesses e das pesquisas de Berta Ribeiro foram a plumária, os trançados e a cerâmica indígena, como uma consulta à sua bibliografia permite detectar. O seu interesse esteve conectado, desde o início, a trabalhos de referência que tivessem uma aplicação prática. Assim sendo, o seu sentido de desbravamento na abertura de trilhas do conhecimento, Berta Ribeiro os exerceu com maestria no campo da elaboração de instrumentos para os estudos e classificação de objetos de cultura material. A primeira publicação com esse intuito é o artigo “Bases para uma Classificação dos Adornos Plumários dos Índios do Brasil”,[8] de 1957. Trata-se de um estudo em que propõe uma classificação de procedimentos técnicos relativos à plumária, enfocando, também, o conteúdo estético e funcional desses adornos na vida de povos indígenas amazônicos.
“Berta Ribeiro acreditava que esses estudos permitiam apoiar a causa indígena porque encarava os museus enquanto um meio de educação pública.”
Em 1980, Berta Ribeiro obtém o título de doutora em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação do professor Amadeu Lanna. A tese, intitulada “A civilização da palha. A arte do trançado dos índios no Brasil”,[9] representa um dos mais completos estudos da cestaria de povos indígenas amazônicos. Aborda critérios de classificação tipológica, aspectos morfológicos, funcionais e, em especial, os grafismos apresentados nos trançados.
Diferentes capítulos da tese foram reelaborados por Berta Ribeiro e publicados em livro, sob o título “A arte do trançado dos índios no Brasil. Um estudo taxonômico”,[10] de 1985. O texto explicita que a trilha seguida associou levantamentos bibliográficos, estudos de campo entre povos indígenas no alto rio Xingu e nos tributários do alto rio Negro, e a acurada análise e documentação de coleções musealizadas, pertencentes ao Museu Nacional. Essa conjugação de referências permitiu a sistematização de aspectos relacionados com os trançados dos povos indígenas, a classificação das formas, das técnicas de execução e dos padrões ornamentais, relacionados ao ato de trançar. Esse livro ilustra o empenho de Berta Ribeiro, ao longo dos anos, na promoção e publicação de estudos museológicos, a despeito de seu baixo prestígio na época. Acreditava que eles permitiam apoiar a causa indígena e porque encarava os museus enquanto um meio de educação pública e de preservação de memórias.
Artigos de Berta Ribeiro sobre aspectos da arte e da vida material indígena são encontrados nas páginas da “Suma etnológica brasileira”, de 1986, que organizou, juntamente com Darcy Ribeiro, e que representam muito mais do que a simples tradução do “Handbook of South American Indians”. Acervos musealizados, em particular, estão inseridos no volume 2, intitulado “Tecnologia indígena”, que aborda os conhecimentos indígenas referentes à atividade artesanal, à tecnologia e aos artefatos, associados às suas dimensões socioculturais, respaldando a documentação de acervos musealizados. No prefácio desse volume, Berta Ribeiro indica que ele se propõe orientar e incentivar pesquisas de campo voltadas para o estudo da cultura material, assim como para classificar, catalogar e analisar coleções museológicas. Conclui indicando a importância da contextualização do artefato na cultura que o produziu, a par do estudo detalhado de seus componentes físicos e tecnológicos.
O “Dicionário do artesanato indígena”,[11] de 1988, constitui uma das mais significativas contribuições de Berta Ribeiro para os estudos de cultura material e tecnologias ameríndias. Trata-se, em suas palavras, de uma “ferramenta” classificatória para documentar coleções etnográficas, assim como padronizar as nomenclaturas nos inventários dos acervos dos museus antropológicos brasileiros. Para a concretização desse dicionário, Berta Ribeiro realizou um extenso levantamento de coleções e de fichas catalográficas do Museu Nacional e em outras instituições museológicas. (Figura 3)
Figura 3. Livro “Dicionário do Artesanato Indígena”, de Berta Ribeiro
(Reprodução)
Os volumes da “Suma etnológica brasileira”[1, 2, 3] e o “Dicionário do artesanato indígena”,[11] representam bases metodológicas e classificatórias indispensáveis para as pesquisas de cultura material e a documentação etnomuseológica de acervos de origem indígena. Essa constatação permite enfatizar a importância que Berta Ribeiro concedia aos estudos de acervos musealizados, pois julgava, acertadamente, que a sua precisa catalogação ofereceria instrumentos para a sua preservação e estudo. No prefácio do segundo livro, destaca que os povos indígenas poderiam encontrar, na catalogação proposta, documentos sobre as manifestações materiais de sua cultura. Essa perspectiva já antevia o atual engajamento de técnicos de museus e pessoas indígenas em experiências de museologia colaborativa na documentação de coleções etnográficas, reforçando o protagonismo indígena e ampliando o diálogo intercultural.
Na década de 1980, Berta Ribeiro presta concurso e se torna professora adjunta do Departamento de Antropologia do Museu Nacional. Posteriormente, como professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ministra aulas no curso de Pós-Graduação em História da Arte, nas disciplinas de Arte Indígena no Brasil e Cultura Material e Arte Étnica e orienta alunos nos temas de sua especialidade, incutindo em todos o entusiasmo e uma busca qualitativa pelos estudos de cultura material.
Compartilhei essa inspiração ao escrevemos juntas o artigo “Coleções etnográficas: documentos materiais, a história indígena e do indigenismo”,[12] incluído no livro, “História dos índios no Brasil”, de 1992, organizado por Manoela Carneiro da Cunha. O texto explora as potencialidades dos estudos de coleções etnográficas enquanto documentos materiais de uma determinada cultura. Neste sentido, destaca que, paralelamente à informação escrita e à iconografia, as coleções etnográficas constituem matéria-prima para o trabalho do etno historiador, do historiador da arte, do antropólogo e de curadores de museus interessados nas expressões materiais da atividade humana, pois constituiriam “artefatos-documentos”. Voltando-se para a análise de coleções, indica que ela se desdobra em diferentes itinerários, incluindo metodologias e análises referenciais e tipológicas, no desenvolvimento de projetos destinados à documentação e divulgação das coleções etnográficas. Conclui enfatizando o papel político das coleções etnográficas e dos próprios museus para os povos indígenas ao permitir que estabeleçam encontros com suas memórias específicas, (re) contextualizando e resgatando referências para seu uso, através de trabalhos de identificação, documentação e restauro de objetos.
As trilhas dos artefatos: as artes indígenas
Os estudos de Berta Ribeiro sobre objetos e coleções de museus estão em estreita sintonia com o seu duradouro interesse pelas artes indígenas, interesse esse compartilhado com Darcy Ribeiro e o livro “Arte plumária dos índios Ka’apor”,[13] de 1957, é testemunho dessa colaboração. Esse diálogo repete-se no volume 3 da “Suma etnológica brasileira”, intitulado “Arte Índia”, de 1986, onde, na alentada introdução, “A linguagem simbólica da cultura material” [14] é destacado que o foco da análise de Berta Ribeiro não seria a valorização das dimensões estéticas ou a sua descrição formal, mas as relações entre a expressão e o conteúdo, que remetem à organização social, à mitologia, aos papéis rituais que podem ser interpretados segundo o contexto cultural em que se inserem. A consideração das relações que envolvem os objetos, como Berta Ribeiro propõe, constitui um ponto de vista que permanece válido e valorizado nos estudos contemporâneos da antropologia da materialidade, incluindo, definitivamente, o estudo de coleções etnográficas salvaguardadas em museus brasileiros e europeus.
“Berta Ribeiro enfatizou o papel político das coleções etnográficas e dos próprios museus para os povos indígenas no estabelecimento de encontros com suas memórias específicas, na (re)contextualização e na apropriação de referências para seu uso.”
A concepção das artes dos povos indígenas enquanto “linguagem visual” permeia as abordagens de Berta Ribeiro no livro “Arte indígena, linguagem visual”,[15] de 1989. O prefácio destaca que ela pretende analisar a cultura material dos indígenas brasileiros de uma perspectiva estética, como documentos etnográficos possuidores de conteúdo artístico, relacionados mitologia e à estrutura social. Berta Ribeiro enfatiza nesse texto que entre os povos indígenas o objeto de arte se confunde com o utilitário, pois a arte impregnaria todas as esferas de vida. Embora permanecendo fiel à sua característica pessoal, eminentemente etnográfica, este livro apresenta a sua mais complexa e completa abordagem dos conteúdos e significados das manifestações estéticas dos povos indígenas.
No artigo “As artes da vida do indígena brasileiro”, de 1994,[16] Berta Ribeiro dedica-se aos objetos utilitários e em especial aos rituais, tais como a arte plumária, a música e instrumentos musicais, as máscaras. Ressalta que os ornatos plumários se conectam ao domínio mítico, estético e ritual e implicam em uma personalização do corpo e veiculando mensagens, pois constituiriam uma forma de comunicação social, semelhante à linguagem oral. Trata-se de um aspecto, também abordado por Berta Ribeiro no livro “Arte indígena, linguagem visual”,[15] em que a atividade ritual, a partir de seus conteúdos simbólicos e estéticos, é compreendida como conformando e comunicando uma identidade pessoal, social e étnica do indivíduo, expressando-se como uma linguagem visual. Essa concepção representa o cerne do pensamento de Berta Ribeiro a respeito do que denomina, em muitos textos, de “arte indígena”.
As trilhas percorridas por Berta Ribeiro sempre foram amplas porque vastos eram os seus interesses. Investiu profundamente no campo antropológico através de detalhadas pesquisas sobre a arte, a cultura material, as técnicas e a tecnologia dos povos indígenas brasileiros. Tinha especial apreço pelo “sabor do saber indígena”, conforme indicado no posfácio de “Índios das águas pretas”,[17] de 1995. A isso conjugava a sua habilidade para um trabalho que pudesse reunir diferentes sujeitos de conhecimento, indígenas e pesquisadores. Ao longo dos anos, realizou estudos e pesquisas em diferentes campos do conhecimento antropológico, museológico, ecológico, histórico, que resultaram em dezenas de artigos e livros. Também selecionou, atualizou, reformulou os seus escritos e desse entrelaçamento, derivaram-se outras obras significativas.
Era consciente da importância e do alcance de seus estudos e registros e a produção de livros, artigos e as intervenções e exposições a que se dedicou, somadas às coleções que formou e que doou a diferentes museus brasileiros, estruturaram um precioso legado que propiciam conexões e fecundos diálogos com a antropologia e a museologia contemporâneas. Oferecem reflexões e práticas inspiradoras que nos alcançam no presente, em 2024, ano em que celebramos o centenário de seu nascimento.