Caso se anunciasse que, com os meios técnico-científicos da engenharia genética, se “construíra” uma bactéria capaz de fixar nitrogênio atmosférico e degradar celulose, a repercussão seria grande. Pois uma descoberta igualmente importante foi feita recentemente: essa bactéria, ao contrário do que se supunha, existe na natureza.
A celulose, produzida pela fotossíntese, é um carboidrato constituído de carbono, hidrogênio e oxigênio, que forma a parede celular dos vegetais, permitindo-lhes resistir às diferenças de pressão osmótica entre os ambientes interno e externo das células, além de propiciar a rigidez das raízes, dos caules e das folhas. Muito abundante, está presente, por exemplo, na madeira, no algodão ou no capim.
Alguns microrganismos são capazes de atacar essa rígida estrutura química através de uma enzima, a celulase. Podem então usá-la como fonte de carbono e energia química e introduzi-la na cadeia alimentar de outros seres vivos.
“Essa bactéria, ao contrário do que se supunha, existe na natureza.”
A celulose não tem em sua molécula o nitrogênio (N), elemento constituinte dos aminoácidos que formam as proteínas. O nitrogênio é um nutriente vegetal escasso na maioria dos solos agrícolas, sendo cara a sua adição por adubação química corretiva. Em contrapartida, na forma biatômica (N2), é abundante na atmosfera terrestre (79%). Nessa forma, contudo, é pouco reativo: só as bactérias chamadas diazotróficas são capazes de fixá-lo em forma química mais reativa (amônio, NH+4) e incorporá-lo em proteínas diversas.
O microbiologista S. B. Leschine e seus colaboradores,[1] da Universidade de Massachusetts (EUA), relataram o isolamento de quatro extirpes de bactérias fixadoras de nitrogênio, celulolíticas e anaeróbicas, oriundas do lodo de água doce e do solo. Demonstraram que possuem uma nitrogenase ativa, o que indica serem capazes de fixação de nitrogênio. São bactérias de vida livre, não associadas a outro organismo.
O achado da fixação de N2 em organismos que degradam a celulose em condições de vida livre, aliado à abundância da celulose, distribuída em diferentes ambientes, abre uma nova perspectiva para o uso dessas bactérias na melhoria da fertilidade dos solos e na conversão de refugos celulolíticos em produtos beneficiados.
“A capacidade das bactérias de degradar celulose e fixar nitrogênio abre novas perspectivas para melhorar a fertilidade do solo.”
O primeiro relato de organismos com dupla capacidade de transformar celulose e fixar nitrogênio foi feito também por pesquisadores norte-americanos, J. B. Waterbury e seus colaboradores.[2] O grupo isolou uma bactéria que vive associada à glândula de Deshayes, exclusiva de certos moluscos marinhos que, quando adultos, vivem em cascos de navio e outros objetos de madeira submersos em águas oceânicas, podendo alimentar-se exclusivamente dela.
Tal fato suscita duas questões: qual a origem da enzima que degrada a celulose e qual a fonte de nitrogênio para a produção de proteína, uma vez que a madeira é rica em celulose e pobre em nitrogênio? As funções da glândula de Deshayes têm sido inferidas a partir de evidências circunstanciais, presumindo-se que nela ocorrem tanto a produção de enzimas celulolíticas quanto a síntese de aminoácidos. Como a bactéria foi isolada do tecido que forma a glândula e mostrou-se capaz de degradar celulose e fixar nitrogênio atmosférico, cabe pôr em dúvida a atribuição dessa função à própria glândula do molusco. Sendo a bactéria abundante nesse tecido animal, parece provável que estejamos diante de um caso em que as funções de celulase e de nitrogenase exercidas pela bactéria auxiliariam o molusco. (Figura 1)
Figura 1. Esquema simplificado dos processos de atividade celulolítica e de fixação de nitrogênio atmosférico, quando ocorrem num mesmo organismo.
(Fonte: Elaboração dos autores)
A bactéria foi isolada da glândula de um molusco em meio mineral, com celulose em pó como fonte de carbono, tendo como única fonte de nitrogênio disponível o nitrogênio molecular atmosférico. Tentativas de isolá-la da água do mar ou da flora não foram bem-sucedidas, o que sugere que seu hábitat se restringe à glândula do molusco. Todos os microrganismos isolados mostraram similaridade, parecendo ser de uma mesma espécie. Como esta não pôde ser enquadrada em nenhuma chave taxonômica, concluiu-se: era uma bactéria até então desconhecida.
A atividade celulolítica é comum em invertebrados e está associada ao trato digestivo desses animais. Isto não ocorre neste caso, fazendo com que esta seja, também nesse sentido, uma associação singular.
“Estudos recentes mostram que bactérias fixadoras de nitrogênio podem contribuir para uma agricultura de menor custo e mais sustentável.”
O mérito da descoberta desses organismos ao mesmo tempo, celulolíticos e capazes de fixar nitrogênio não deve, contudo, desviar nossa atenção de dois outros aspectos do uso combinado do carbono e do nitrogênio. Um deles é a associação de bactérias diazotróficas, não celulolíticas, com microrganismos celulolíticos, não diazotróficos, em cultura mista para degradação de palha e cereais. Descobriu-se, na Austrália, que as bactérias fixadoras de N2 do gênero Azospirillum são capazes de fixar N2 com xilana ou palha de trigo como fonte de carbono. O outro aspecto é a capacidade que têm alguns organismos de ambiente úmido — as cianofíceas (algas verde-azuladas) e algumas bactérias fotossintéticas — de fixar N2 e gás carbônico (CO2) do ar para produzir proteínas e carboidratos num mesmo organismo. As opções vêm crescendo no universo científico dos fixadores de N2 que usam fonte de energia e carbono abundantes e pouco dispendiosos. O desenvolvimento e a adaptação tecnológica desses trabalhos poderão contribuir, num futuro próximo, para uma agricultura de menor custo.