Introdução
Há evidências crescentes, nas últimas décadas, de que os centros urbanos estarão na linha de frente dos impactos das mudanças climáticas.[1] Desde seu Primeiro Relatório de Avaliação, em 1990, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês) tem aumentado gradualmente seu foco nas cidades, reconhecendo a necessidade de atenção a esses espaços, dado o rápido processo de urbanização. Nesse sentido, o Painel aponta que as cidades enfrentarão muitos riscos físicos, como ondas de calor, inundações repentinas, entre outros, devido às mudanças climáticas.
Considerando que mais da metade da população mundial vive atualmente em áreas urbanas — e muitos desses moradores vivem e trabalham em condições de informalidade, especialmente no Sul Global — os trabalhadores da economia informal e os residentes de assentamentos informais estão entre os grupos mais propensos a serem afetados pelas mudanças climáticas. Os catadores são um desses grupos diretamente expostos aos efeitos das mudanças climáticas. Em todo o mundo, esses trabalhadores prestam serviços ambientais essenciais que fortalecem a resiliência dos territórios urbanos frente aos impactos climáticos. Além disso, seu trabalho contribui para economias verdes e circulares, ampliam a vida útil dos aterros sanitários e cooperam na redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE).
Contudo, os catadores também estão mais suscetíveis a vivenciar os efeitos diretos e indiretos das mudanças climáticas nas áreas urbanas — como ondas de calor, inundações repentinas, interrupções nas cadeias de abastecimento de alimentos, elevação do nível do mar, insegurança hídrica e disseminação de doenças. Apesar dessa exposição acentuada, seu papel na mitigação das mudanças climáticas e os impactos que enfrentam devido a eventos climáticos extremos ainda recebem pouca atenção.
Este trabalho busca contribuir para esse debate analisando a relação entre o trabalho dos catadores e as mudanças climáticas, a partir das perspectivas de vulnerabilidade, adaptação e mitigação. O objetivo do artigo é apresentar um panorama das ações de pesquisa-ação desenvolvidas pela rede global Mulheres no Trabalho Informal Globalizando e Organizando (WIEGO sigla em inglês), com destaque para elementos distintivos desse trabalho na cidade de Belo Horizonte. Pretende-se também identificar e articular aspectos que ajudem a compreender como as mudanças climáticas afetam o cotidiano desses trabalhadores, identificar suas estratégias de enfrentamento e adaptação e, por fim, evidenciar como a análise da situação de vulnerabilidade climática nos territórios onde os catadores atuam pode ser uma ferramenta importante na adaptação climática.
Na primeira parte, argumentamos sobre a invisibilidade do tema relacionado ao trabalho de catadores e às mudanças climáticas e discutimos a natureza multifacetada da vulnerabilidade climática. Destacamos a importância do mapeamento dos impactos das mudanças climáticas e da identificação das vulnerabilidades climáticas nos territórios. Inserir catadores nas agendas de pesquisa e nas estratégias de ação climática é fundamental para a resiliência urbana.
Na segunda parte do artigo, traçamos um panorama da agenda de pesquisa e documentação da WIEGO na pauta climática — desde a pesquisa nacional publicada em 2023 até os trabalhos mais recentes, que usam bases de dados públicas sobre vulnerabilidade climática nos territórios, analisando sua correlação com os espaços de trabalho de catadores da cidade de Belo Horizonte. Também abordamos a aplicação da calculadora de emissões de gases de GEE da WIEGO que identificou a contribuição das cooperativas do sistema municipal de coleta seletiva em Belo Horizonte (MG) na mitigação desses gases.
Por fim, na última parte, argumentamos que fortalecer a resiliência dos catadores frente às mudanças climáticas contribui para a resiliência de toda a cidade. A experiência vivida e o conhecimento acumulado por esses trabalhadores já moldam respostas cruciais às mudanças climáticas, mas o avanço nessa direção requer ações coordenadas dos principais atores urbanos.
Catadores e mudanças climáticas
Catadores — pessoas que coletam, separam e revalorizam materiais recicláveis — desempenham um papel fundamental na gestão de resíduos sólidos (GRS) nos países do Sul Global. Eles coletam recicláveis nas ruas, lixeiras, pontos de entrega voluntária e lixões a céu aberto. Ao contribuir na limpeza urbana desviando materiais que seriam aterrados, eles contribuem para o prolongamento da vida útil dos aterros e abastecem a indústria com recicláveis.
Os catadores já sofrem diretamente os impactos das mudanças climáticas, mas isso ainda não é amplamente documentado, com algumas exceções identificadas na literatura.[1, 2] Ao mesmo tempo, os catadores desenvolvem tarefas essenciais que contribuem tanto para a redução da vulnerabilidade dos espaços urbanos aos impactos climáticos quanto para a mitigação das emissões climáticas. Por exemplo, o trabalho dos catadores pode facilitar ganhos de eficiência na gestão de resíduos sem aumentar as emissões de combustíveis fósseis, além de apoiar a economia circular.[3] As funções de limpeza desempenhadas pelos catadores também são essenciais para prevenir enchentes, facilitar a circulação da água, preservar espaços urbanos verdes que podem reduzir o efeito de ilhas de calor ao realizar uma série de micro intervenções no ambiente urbano promovendo tanto a sustentabilidade quanto a resiliência nas cidades.[4] (Figura 1)

Figura 1. Os catadores oferecem serviços ambientais vitais que aumentam a resistência dos territórios urbanos frente às alterações climáticas.
(Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil. Reprodução)
Existe um vasto corpo da literatura sobre os aspectos relacionados às mudanças climáticas, como mitigação, gestão de desastres, resiliência urbana, adaptação e vulnerabilidade climática. Uma parte significativa dessa literatura documenta a vulnerabilidade climática, que pode ser espacial, socioeconômica e política.[5, 6] Nesse sentido, a pobreza é o principal indicador que determina a vulnerabilidade climática nos territórios.[7, 8] Além disso, as mudanças climáticas amplificam vulnerabilidades estruturais e econômicas pré-existentes dos grupos sociais. Elas agravam os processos sociais, econômicos e políticos que produzem pobreza e desigualdade.[10, 11, 12] E muitos estudiosos investigam a relação entre vulnerabilidade às mudanças climáticas e pobreza.[12, 13]
A capacidade de tornar-se resiliente às mudanças climáticas é afetada por processos de desigualdade e exclusão social — como etnia, gênero e classe — que frequentemente “levam ao aumento da exposição a riscos e impedem certos grupos de acessar os recursos necessários para se protegerem e se recuperarem dos choques”.[5] Dias et al. (2024)[4] acrescentam para o debate apontando que a resiliência também é afetada por déficits de infraestrutura nos locais de trabalho.
Sverdlik (2021)[14] tematiza trabalhadores informais ao discutir os desafios das mudanças climáticas enfrentados por vendedores ambulantes e catadores, como calor, enchentes, poluição e seca, e como estes trabalhadores são geralmente ignorados nas estratégias climáticas. Como afirma a autora, as soluções para esses desafios devem abordar a resiliência da saúde e os impactos no local de trabalho, como o estresse térmico.
“Esses trabalhadores prestam serviços ambientais essenciais que fortalecem a resiliência dos territórios urbanos frente aos impactos climáticos.”
Se vulnerabilidades pré-existentes amplificam impactos de mudanças climáticas, é preciso reconhecer que a justiça climática passa pelo reconhecimento da precariedade econômica.[15] Dessa forma, o enfrentamento da precariedade econômica contribui na resiliência climática. Nessa linha, Agarwal et al. (2022)[16] apontam que a diversificação dos meios de subsistência dos trabalhadores informais e o fortalecimento de seus ativos são cruciais para enfrentar os riscos climáticos e suas experiências vividas validadas no desenho de estratégias adaptativas.
Os resíduos desempenham um papel significativo nas mudanças climáticas e nas emissões globais de gases de GEE [17, 18] e autores como King & Gutberlet (2013)[19] examinam as contribuições dos catadores na mitigação de gases de efeito estufa e argumentam pelo reconhecimento do papel de cooperativas na mitigação climática e por seu acesso ao mercado de créditos de carbono. Vergara et al. (2016)[20] também quantificaram as reduções de gases de efeito estufa no contexto da reciclagem informal em Bogotá, na Colômbia.
Enquanto a maior parte da literatura foca nos impactos das mudanças climáticas sobre populações urbanas vulneráveis, o foco tem sido assentamentos informais e raramente trabalho informal. Esse foi um achado crucial que ajudou a moldar nossa pesquisa e documentação, centrada no mapeamento dos impactos no local de trabalho, para lançar luz sobre como fatores de vulnerabilidade pré-existentes relacionados à infraestrutura de trabalho — como espaços de triagem deteriorados em galpões de reciclagem — agravam os impactos de eventos climáticos extremos.
Esse artigo busca contribuir nesse sentido e argumenta pela relevância do mapeamento de impactos de mudanças climáticas e da vulnerabilidade climática nos territórios, bem como sobre a importância de se registrar as formas de enfrentamento desenvolvidas por esses atores para as estratégias adaptativas serem baseadas em evidências e na escuta atenta das vozes e do conhecimento dos catadores, o que exploraremos na próxima sessão.
Centralizando catadores na pesquisa, documentação e ação climática
A WIEGO vem implementando uma agenda de pesquisa-ação ancorada nos desafios de mapear e documentar impactos de mudanças climáticas nos catadores, aplicar ferramentas de análise de vulnerabilidade e de identificação da contribuição desses atores na mitigação climática, ampliar a participação de catadores na governança climática e, ao mesmo tempo, contribuir no letramento climático.
Pesquisa Impactos das Mudanças Climáticas e Estratégias de Adaptação com Catadores no Brasil
Entre 2022 e 2023, a WIEGO, em parceria com a Universidade de Sheffield, realizou uma pesquisa qualitativa-quantitativa de caráter exploratório no Brasil, que documentou as percepções e experiências da categoria em relação às mudanças climáticas que nos propiciou os elementos para a atual agenda de pesquisa e ação. Essa pesquisa envolveu um survey com 93 catadores (sócios cooperados e autônomos) em todo o país, grupos focais participativos em Belo Horizonte e região metropolitana e entrevistas com informantes-chave com lideranças nacionais dos catadores. Essa pesquisa se propôs a compreender as perspectivas dos catadores sobre as mudanças climáticas, mapear os impactos nos rendimentos, nas rotinas de trabalho e na saúde dos trabalhadores, mas também identificar as estratégias de enfrentamento e adaptação. A pesquisa explorou, também, a existência de apoio recebido pelos catadores no enfrentamento de impactos e identificou medidas necessárias para lidar com o aumento dos impactos. Essa pesquisa também envolveu uma análise dos impactos diferenciados das mudanças climáticas em três cidades brasileiras: Manaus, Salvador e Belo Horizonte. No que se segue, destacamos alguns dos achados relevantes dessa pesquisa.
Dos nossos achados do survey, destacam-se que dos catadores pesquisados, 58% eram mulheres; e, destes, 84% pertenciam a uma cooperativa, 56% trabalhavam regularmente coletando materiais na rua e 27% relataram morar em áreas de risco. Os galpões de triagem eram o principal local de trabalho para 66%, embora muitos alternam esse trabalho com o trabalho em casa e nas ruas. Os catadores autônomos relataram taxas mais altas de moradia em áreas de risco (40%) e taxas significativamente mais altas (80%) desse grupo coletando recicláveis nas ruas. A grande maioria dos catadores entrevistados (91%) havia vivenciado um ou mais eventos relacionados às mudanças climáticas no último ano — com 85% experimentando calor anormal ou ondas de calor, e 39% relatando ter sido expostos a inundações repentinas. Mais da metade afirmou que as inundações reduziram sua capacidade de se locomover pela cidade. Uma líder catadora do estado da Bahia descreveu os efeitos do calor excessivo: “O calor às vezes é insuportável. Estar dentro de um galpão, que tem um telhado de zinco, afeta a todos. Aqueles que têm pressão alta ou baixa, o impacto é mais imediato. Eles começam a suar e ficam tontos… não há água que reduza esse calor”.[21]
“O trabalho dos catadores pode facilitar ganhos de eficiência na gestão de resíduos sem aumentar as emissões de combustíveis fósseis, além de apoiar a economia circular.”
Nossos achados demonstram que os catadores acreditam que fatores como gênero, idade, estado de saúde, local de trabalho e integração nas redes de apoio existentes influenciam sua vulnerabilidade. No entanto, divergem na identificação de qual desses fatores é mais importante. Na pesquisa, 31% dos entrevistados reportaram que os trabalhadores autônomos e catadores de rua são os mais afetados, enquanto 23% se preocuparam com os catadores mais velhos e 18% com as mulheres.
Os achados sobre o enfrentamento das ondas de calor, sugerem a predominância de estratégias individuais tais como aumento de ingestão de água (41%), uso de protetor solar (14%) e roupas mais leves (12%) e o uso de ventiladores e mudança de horário de trabalho foram mencionadas por 21% dos entrevistados. Poucas estratégias coletivas foram mencionadas e, quando o foram, as mesmas tendem a ser reativas e pontuais, com impacto limitado sobre os fatores de vulnerabilidade, como pobreza, serviços precários e infraestrutura deteriorada.
Os achados dos grupos focais lançam luz sobre os impactos de ondas de calor e enchentes repentinas sobre os catadores organizados, incluindo efeitos sobre o bem-estar físico, a dinâmica de trabalho individual e coletiva e os ativos produtivos coletivos. Os catadores que trabalham ao ar livre estão expostos a todas as condições climáticas e sofrem diretamente com os impactos das enchentes e do calor. Os catadores que trabalham em ambientes fechados ou cooperativas sofrem com a má circulação e qualidade do ar, superaquecimento e falta de conforto térmico, além de maior exposição a organismos patogênicos. Os achados dos grupos focais evidenciaram como as mudanças climáticas agravam os desafios preexistentes relacionados à infraestrutura do local de trabalho. Nas entrevistas em grupo focal, os catadores descreveram as mudanças necessárias para tornar os galpões de triagem à prova do clima. A infraestrutura e os equipamentos adequados no local de trabalho determinam o grau em que as mudanças climáticas impactam a saúde, o bem-estar, a produtividade e os rendimentos dos catadores.
Sumariando, essa pesquisa evidenciou como os catadores estão sendo impactados por eventos extremos nos espaços de trabalho, na saúde e como estão reagindo aos mesmos, revelando também desigualdades significativas entre os catadores organizados e os autônomos. Os catadores autônomos relataram maiores níveis de exposição a enchentes e calor, bem como maiores dificuldades para acessar formas de apoio institucional. Essa diferença evidencia a importância das redes coletivas para a construção de resiliência climática no setor, além de destacar a fragilidade dos trabalhadores que atuam à margem das estruturas organizativas formais.
A pesquisa exploratória de 2023 apontou as lacunas no papel das municipalidades e da indústria no que tange ao fortalecimento da capacidade adaptativa e no equacionamento das questões tanto de déficits de infraestrutura de trabalho pré-existentes quanto de infraestrutura sensível ao clima, bem como forneceu elementos para o desdobramento do trabalho de pesquisa, documentação e ação da WIEGO, em geral e em especial em Belo Horizonte.
Belo Horizonte: Adaptação, vulnerabilidade climática e catadores como agentes na mitigação climática
A emergência climática global tem efeitos localizados e desiguais nas cidades. Em Belo Horizonte, a relação entre vulnerabilidade climática e as condições de trabalho dos catadores é uma realidade pouco visibilizada, mas de crescente importância. A exposição a eventos extremos, como ondas de calor, enchentes e a proliferação de doenças como a dengue, afeta diretamente os galpões de triagem, revelando a sobreposição de riscos ambientais, socioeconômicos e estruturais.
Numa colaboração entre WIEGO, ICLEI e usando base de dados da Secretaria Municipal do Meio Ambiente da Prefeitura de Belo Horizonte, WayCarbon e do próprio ICLEI foi realizado o cruzamento da localização dos galpões de triagem das cooperativas de Belo Horizonte com os índices municipais de vulnerabilidade a três tipos de eventos climáticos: ondas de calor, inundações e dengue.[21] Os resultados revelam que diversas cooperativas atuam em territórios de alta ou muito alta vulnerabilidade. É o caso da Coopesol Leste, localizada em área com alto risco de calor extremo e dengue; da Coopemar, em zona crítica de exposição; e da Associrecicle, que apresenta níveis elevados de risco para os três indicadores avaliados.
A Figura 2 apresenta os mapas de vulnerabilidade climática da cidade, com destaque para a distribuição dos galpões de triagem das cooperativas e associações de catadores sobre as zonas de risco. As visualizações permitem compreender com maior precisão a espacialização das desigualdades ambientais que incidem sobre esses trabalhadores.

Figura 2. Mapas de vulnerabilidade climática em Belo Horizonte: ondas de calor, inundações e dengue sobrepostos à localização dos galpões de triagem de catadores.
(Fonte: Dias et al. (2024) adaptado de WayCarbon)
Essas vulnerabilidades são determinadas por múltiplos fatores: densidade populacional, baixa arborização, infraestrutura urbana deficitária, presença de áreas impermeáveis e ausência de mecanismos adequados de drenagem. Regiões como Nordeste, Venda Nova e Leste concentram os maiores índices de risco, enquanto regiões como Centro-Sul e Pampulha, mais arborizadas e com maior renda, apresentam menor exposição.
A análise também destaca que os galpões de triagem muitas vezes não dispõem de estrutura apropriada para lidar com os eventos climáticos. O calor excessivo, por exemplo, tende a ser agravado por telhados metálicos e ambientes sem ventilação cruzada, enquanto a ausência de sistemas de escoamento expõe os recicláveis e equipamentos a danos frequentes em períodos de chuva intensa. O risco sanitário é ampliado pela presença de vetores como o mosquito da dengue, favorecido pelo acúmulo de resíduos e água parada em áreas mal manejadas.
Esses elementos revelam que os catadores que atuam nos galpões das cooperativas, ainda que formalizados e vinculados a políticas públicas municipais, continuam operando em condições de elevada exposição climática. Por isso, o estudo recomenda que os planos de adaptação climática da cidade incorporem os espaços de trabalho dos catadores, tanto físicos (galpões) quanto móveis (pontos de coleta e triagem em ruas e feiras), como componentes estratégicos da resiliência urbana. [21]
Nesse sentido, a vulnerabilidade climática deve ser entendida não somente como risco ambiental, mas como expressão de uma desigualdade estrutural. Garantir infraestrutura adequada e inserção dos catadores nas políticas climáticas não é apenas uma medida técnica, mas uma forma de fortalecer a resiliência dos catadores e, consequentemente, das próprias cidades.
Em 2018, a WIEGO desenvolveu uma calculadora de emissões de GEE que permite a medição das emissões evitadas por meio dos seguintes métodos de tratamento de resíduos: desvio de resíduos da decomposição em aterros sanitários e lixões; reciclagem e eliminação de matérias-primas; triagem e transporte manuais e com menor consumo de combustível; e eliminação da queima a céu aberto.
A ferramenta foi aplicada em Belo Horizonte em 2024 no âmbito de um trabalho colaborativo entre organizações integrantes do Fórum Municipal Lixo e Cidadania (FMLC). A aplicação da ferramenta, com base nos dados fornecidos pela SLU e validados pelos próprios catadores, permitiu estimar que, em 2023, as cooperativas e associações integradas ao programa público de coleta seletiva da cidade evitaram a emissão de 6.308,88 toneladas de CO₂ equivalente.[22] Esse volume corresponde à mitigação de aproximadamente 950 kg de CO₂ e por tonelada de material reciclado, indicador que pode ser aplicado para estimativas futuras e comparações com outras cidades.
Apesar da relevância do dado, é importante ressaltar que o cálculo não contempla dados do recolhimento de recicláveis realizado de forma autônoma e informal por catadores autônomos. Ainda assim, o levantamento dos dados constitui um avanço metodológico crucial ao estabelecer uma base empírica para reconhecer o papel dos catadores na mitigação climática.
Por fim, é relevante abordar o tema da governança climática participativa. Catadores estão na linha de frente dos impactos das mudanças climáticas, mas ainda são raras as ocasiões em que são efetivamente consultados e, quando o são, com frequência suas contribuições são ignoradas. A questão da governança climática participativa se apresenta como crucial para mudar narrativas e práticas em direção à coprodução das estratégias adaptativas que possam fortalecer a capacidade de resiliência desses atores. Nessa direção, o trabalho da WIEGO facilita a participação de catadores na Câmara Temática de Economia Circular do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima, de âmbito nacional, e no Comitê de Ecoeficiência e Adaptação no município de Belo Horizonte. A ampliação da participação dos catadores em espaços mais diretamente ligados à questão climática contribui na incidência, mas também na capacitação dos mesmos.
Considerações finais
Neste artigo trouxemos dados de pesquisa e mapeamentos que evidenciam a urgência de integrar o trabalho dos catadores às estratégias de enfrentamento da crise climática, tanto sob a ótica da adaptação quanto da mitigação. Em Belo Horizonte, como demonstrado, os impactos das mudanças climáticas sobre esse grupo revelam não somente a precariedade das condições de trabalho, mas também a invisibilização estrutural de suas contribuições à sustentabilidade urbana.
Como discutido na literatura, a relação entre mudanças climáticas, pobreza, vulnerabilidade social e desigualdade se caracteriza por um ciclo vicioso perverso onde as vulnerabilidades pré-existentes conformam a natureza do impacto sofrido por eventos extremos exacerbando-os — seja no espaço da casa, do espaço urbano ou do trabalho. Por sua vez, impactos de mudanças climáticas contribuem para o aprofundamento das desigualdades e vulnerabilidade social desses grupos e comunidades, afetando seus meios de subsistência. O projeto recente da WIEGO — Monitoramento de Eventos Climáticos Extremos e Impactos no Trabalho de Catadores — em cooperativas de seis cidades do Brasil (Belo Horizonte, Belém, Brasília, Florianópolis, Salvador e Manaus) continuará a documentar (2024-2026) impactos na estrutura física dos galpões, equipamentos, rotinas de trabalho, renda e saúde e poderá oferecer uma radiografia mais detalhada para o desenho de políticas climáticas baseadas em evidências.
Argumentamos neste artigo que a construção da resiliência dos catadores às mudanças climáticas é um caminho para aumentar a resiliência das cidades. Reconhecemos que resiliência é um termo contestado. Algumas críticas giram em torno de como o termo despolitiza a análise de risco e a responsabilidade do sistema econômico e político. Trundle (2020),[23] por exemplo, aponta que poucos moradores de assentamentos informais afirmam espontaneamente que são resilientes às mudanças climáticas, mesmo que frequentemente superem eventos climáticos extremos, entre outros múltiplos desafios. Apesar das críticas, o termo resiliência, pelo menos para os contextos urbanos, é muito prevalente, na prática e no discurso político.
“As mudanças climáticas amplificam vulnerabilidades estruturais e econômicas pré-existentes dos grupos sociais.”
Resiliência climática é a capacidade de um sistema absorver as tensões impostas pelas mudanças climáticas, preparar-se para elas, responder a elas, recuperar-se dos impactos e desenvolver-se em sistemas mais sustentáveis e robustos. Nossos achados de pesquisa e documentação, apontam para a relevância da incorporação da resiliência climática em projetos e atividades de gestão de resíduos em geral e na reciclagem inclusiva, pois isso pode contribuir para minimizar riscos e perdas para os catadores e apoiá-los na rápida recuperação.
Dado este contexto, na construção da resiliência urbana é importante: reconhecer as experiências vividas e o conhecimento dos catadores que já estão moldando como eles estão respondendo aos eventos extremos; avançar na conscientização e compreensão das principais questões e linguagem de mudanças climáticas para catadores, a fim de ajudá-los a co-estruturar um roteiro de transição justa; pesquisar e documentar os impactos de eventos extremos e suas estratégias de adaptação como crucial para a compreensão da adaptação: o que funciona, em que medida, onde, porque e para quem; investir em infraestrutura de trabalho sensível às mudanças climáticas e um conjunto de medidas de proteção social para alavancar a resiliência dos catadores aos impactos das mudanças climáticas.
Diante do exposto, o combate à emergência climática requer, assim, a combinação de múltiplas estratégias a diferentes níveis, envolvendo de forma transformativa múltiplos atores. Nesse sentido, a agenda de pesquisa e ação busca incidir no tema de forma multifacetada e interligando frentes diversas que vão da documentação e pesquisa à participação em fóruns e comitês (nacional-subnacional-local), do apoio aos catadores na incidência em políticas governamentais e da indústria ao apoio na sensibilização, capacitação e letramento climático desses trabalhadores.
Mas é preciso cautela, já que uma dupla operação é necessária: por um lado, é fundamental centralizar as vozes dos catadores capturando sua experiência vivida dos impactos, identificar suas estratégias adaptativas e “modos de resiliência endógena”,[23] que operam fora das estruturas de governança formal. Por outro lado, é também importante promover um diálogo e interação com o sistema de governança climática formal, mas para desmontar as abordagens “top-down”, é preciso fazê-lo de forma crítica e reflexiva, para que soluções tecnicistas não acabem minando e destruindo essa resiliência endógena.
Capa. Os catadores são mais propensos a sentir os impactos diretos e indiretos das alterações climáticas em regiões urbanas.
(Foto: Júlia Nagle @ju.nagle / @pimpmycarroca. Reprodução)