Floresta concreta

Juventudes urbanas amazônicas e o racismo ambiental

Resumo

O presente artigo analisará a incidência do racismo ambiental com a transversalidade climática nas dinâmicas das cidades brasileiras situadas na Amazônia, em que através das desigualdades sociais apontará o quanto a raça é fundamental para a compreensão da crise ambiental. A partir de uma perspectiva socioambiental crítica, investiga-se principalmente como o papel das juventudes urbanas enquanto protagonistas de práticas regenerativas podem ser um forte aliado à adaptações climáticas nos territórios periféricos. O texto buscará articular debates teóricos com experiências concretas, propondo caminhos para a construção de cidades mais justas e ecologicamente sustentáveis e principalmente antirracistas.

Introdução

Há no imaginário popular, para quem mora em outras regiões fora do Norte, que quando falamos de cidades amazônicas, falamos somente de floresta. Porém, essas cidades carregam em seus corpos urbanizados a marca de um Brasil que, enquanto é profundamente desigual, também carrega a criatividade unida aos saberes tradicionais como resistência à vida.

A atual crise climática se amplifica em uma urbanização predatória e excludente, fazendo com que a dinâmica dessa emergência climática não alcance todos da mesma forma. E na ambiguidade da vida social dessas cidades nortistas, juventudes negras, indígenas e periféricas vivenciam cotidianamente os efeitos do racismo ambiental — uma forma de violência dimensional e estrutural que territorializa o racismo por meio da degradação ambiental seletiva.

O presente artigo parte da hipótese de que tais juventudes, historicamente marginalizadas, desempenham um papel central na reinvenção de seus territórios, tensionando a monocultura do urbano e propondo práticas regenerativas enraizadas em uma justiça socioambiental e ao direito à cidade.

 

Racismo ambiental nas cidades amazônicas

Conceitualmente, o Racismo Ambiental é compreendido como a exposição desproporcional de populações racializadas a riscos ambientais. [1, 2] Elaborado em 1981 pelo líder afro-americano e ativista pelos direitos civis Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., em um momento de manifestações do movimento negro contra injustiças ambientais, ele define como:

 

“O racismo ambiental é a discriminação racial no desenvolvimento de políticas ambientais, na aplicação de regulamentos e leis, na segmentação deliberada de comunidades de cor para instalações de resíduos tóxicos, na sanção oficial da presença de venenos e poluentes que ameaçam a vida nas comunidades e na exclusão de pessoas negras da liderança de movimentos ecológicos.” [3]

Embora o conceito tenha sido elaborado e disseminado nos Estados Unidos, é fundamental perceber que, mesmo nas particularidades da violência do racismo nos diversos países e territórios, ele se apresenta com a construção de suas respectivas histórias. No Brasil, por exemplo, o conceito abrange grupos étnicos que, por razões raciais, culturais e políticas, sofrem com desigualdades e discriminação em diferentes níveis. Deste modo, entende-se que o racismo ambiental é uma das consequências do racismo institucional, pois as desigualdades raciais e sociais são ampliadas na esfera ambiental devido à escassez de políticas públicas que considerem a existência da fragmentação racial. O racismo ambiental não se refere somente a ações que têm intenção racista, mas também inclui ações com impacto racista, independentemente de sua intenção.[4]

 

“A atual crise climática se amplifica em uma urbanização predatória e excludente.”

 

Segundo dados do Instituto Trata Brasil (2022), apenas 14% da população da região Norte tem acesso à rede de esgoto, sendo que em cidades como Manaus, 75% da população vive sem esgotamento sanitário adequado. Em Belém, cerca de 212 mil pessoas não têm acesso regular a saneamento básico — uma realidade concentrada nos bairros periféricos e favelas urbanas, onde residem, em sua maioria, populações negras, indígenas e ribeirinhas.[5]

Já no campo educacional, a desigualdade também se expressa territorialmente. Jovens das classes mais baixas têm apenas 2% de chance de ingressar em universidades públicas, contrastando com 40% dos jovens das famílias mais ricas.[6] Os estados da região Norte — como Pará e Amazonas — seguem abaixo da média nacional no percentual de pessoas com ensino superior completo, acentuando a exclusão da juventude periférica no acesso à educação formal.[7]

Olhando as desigualdades no Brasil como um todo, elas se manifestam em forma de alagamentos, ausência de saneamento básico, poluição de rios e contaminação de solos — realidades concentradas nos bairros periféricos e ocupações informais.[8] Cidades como Belém e Manaus, marcadas por um crescimento acelerado e políticas urbanas fragmentadas, exemplificam essa distribuição desigual dos impactos ambientais.[9]

Essas dinâmicas revelam uma geopolítica interna que atravessa a Amazônia brasileira: ao mesmo tempo que é representada como “pulmão do mundo”, suas cidades são negligenciadas em políticas públicas estruturantes. Essa invisibilidade alimenta uma ecologia política da exclusão,[10] na qual o acesso à água potável, moradia digna e mobilidade urbana é condicionado por critérios raciais e territoriais.

 

Juventudes como agentes de regeneração territorial

Compreender a juventude é reconhecer que ela não é uma categoria biológica ou homogênea, mas uma construção social e histórica atravessada por marcadores como classe, raça, território e gênero.[11] Mais do que uma fase de transição, a juventude constitui um campo de disputas simbólicas e políticas, onde sujeitos jovens produzem fundamentalmente cultura, criam redes e lutam por reconhecimento. Para Dayrell (2003),[12] as juventudes devem ser entendidas em sua pluralidade e potência de ação, como sujeitos históricos que produzem sentidos e transformam o mundo a partir de suas realidades concretas. (Figuras 1)


Figura 1. Comunidade Indígena do Vale do Juruá.
(Foto: Instituto Juruá. Reprodução)

 

Segundo o Banco Mundial, a juventude amazônica está entre as que mais sofrem os impactos da crise socioambiental — seja por desmatamento, violência, falta de educação ou saúde precária.[13] O relatório destaca que jovens negros nas periferias brasileiras têm taxa de homicídio letal até três vezes maior do que jovens brancos com o mesmo nível de escolaridade.[14]

Em 2021, o risco de homicídio para jovens negros com ensino superior chegou ao triplo do observado entre jovens brancos do mesmo nível educacional.

Se por um lado são os mais atingidos, sempre em risco, por outro, são também os que mais usam a criatividade para elaborar saídas. As juventudes amazônicas têm protagonizado formas políticas de resistência frente à crise climática. Através de coletivos, redes e tecnologias sociais, essas juventudes operam uma reterritorialização simbólica e material de suas comunidades.[15] Não se trata apenas de “sobrevivência”: trata-se da proposição ativa de futuros regenerativos, orientados por valores de solidariedade e principalmente ancestralidade.

 

“Olhando as desigualdades no Brasil como um todo, elas se manifestam em forma de alagamentos, ausência de saneamento básico, poluição de rios e contaminação de solos.”

 

As práticas juvenis periféricas se inserem, assim, em uma ecologia dos saberes,[16] onde o conhecimento técnico-científico dialoga com saberes locais, orais e ancestrais. A partir dessa articulação, surgem hortas comunitárias, mutirões de limpeza, ações de educação ambiental e lutas por moradia e saneamento. Em um cenário de ausência estatal, são essas juventudes que encarnam, na prática, o direito à cidade.[17]

A COJOVEM (Cooperação da Juventude Amazônida para o Desenvolvimento Sustentável), por exemplo, atua na Amazônia urbana promovendo formações em justiça climática com jovens de zonas periféricas, estimulando seu engajamento em processos decisórios e de advocacy territorial. Em Belém, o coletivo Mandí mobiliza juventudes para atividades de educação ambiental, reflorestamento e escuta comunitária, utilizando metodologias de sensibilização baseadas em arte, cultura e comunicação popular. Já a Rede Jandyras, também em Belém, articula jovens ativistas em uma frente coletiva de cuidado e regeneração dos territórios urbanos, com foco em gênero, clima e território.

Nas áreas rurais e ribeirinhas, experiências como a da Associação Vaga Lume vêm fortalecendo crianças e jovens por meio da leitura e da gestão de bibliotecas comunitárias, formando redes de aprendizagem autônoma e enraizada na cultura local. Ao mesmo tempo, organizações como o IDESAM e a FAS fomentam a atuação juvenil em projetos de manejo florestal sustentável, agroecologia, bioeconomia e capacitação para empreendimentos comunitários — incluindo formações específicas voltadas para juventudes ribeirinhas e indígenas.

É inegável que há uma estratégia política que, por meio da educação, viu-se uma ferramenta de autonomia diante da crise climática, demonstrando uma das formas criativas que a juventude viu em como construir uma cidade antirracista e em harmonia com a natureza. Muitos desses jovens são filhos e filhas da geração que acessou à universidade por meio da política de cotas, que completou 20 anos e transformou o perfil do ensino superior no Brasil. Como aponta o Banco Mundial:

 

“o ingresso de jovens pretos, pardos e indígenas no ensino superior aumentou 20% entre 2016 e 2019. Em 2021, 52,4% dos estudantes universitários de 18 a 24 anos eram pretos, pardos ou indígenas, contra 43,7% em 2012”

 

Essa geração, ao ocupar espaços antes negados, não se limitou à educação formal: ela a expandiu. Isso porque o acesso da população negra dentro dos espaços que antes eram embranquecidos possibilitou a ampliação da cultura racializada no debate científico. Juventude essa que não se limitou na formalidade da educação e pulverizou o conhecimento acadêmico em práticas informais e comunitárias, adjunto com a ancestralidade. Resgatando soluções para adaptação climática que eram executadas: como hortas agroecológicas, bibliotecas populares, rádios comunitárias e formações autônomas.

Já entre os povos indígenas, o protagonismo jovem se expressa em movimentos como o Movimento dos Estudantes Indígenas do Acre e Sul do Amazonas e o Movimento dos Povos Indígenas do Vale do Juruá, que promovem mobilizações por acesso à educação, defesa dos territórios e reconhecimento das identidades originárias. Organizações como a Agroextrativista Jaminawa e a Comunidade Kaxarari também vêm fortalecendo a transição geracional, conectando os saberes dos mais velhos com a ação dos mais jovens em processos de regeneração cultural e ambiental.

Esse movimento de ascensão da juventude indígena pode ser lido como uma resposta histórica ao processo de silenciamento etnocida que marcou os séculos de colonização no Brasil. Como escrevi anos atrás: “os autóctones foram colocados na posição de objeto animado […] julgando inferiores e vazios culturalmente”.[vi] Hoje, essa juventude se levanta não apenas para afirmar sua humanidade, mas para reivindicar protagonismo político, epistemológico e territorial. Trata-se de uma reocupação simbólica e prática dos espaços que lhes foram negados, onde o corpo indígena jovem não é mais descrito como “item na paisagem”, mas sim como autor de sua própria história — e da regeneração do planeta.

 

Amazônia urbana e o direito à cidade climática

Essas práticas não apenas respondem à ausência estatal e aos efeitos da crise climática, mas produzem uma ecologia de soluções onde juventude, ancestralidade e território são inseparáveis. São elas que operam uma regeneração cotidiana, territorial e simbólica, que emerge da Amazônia profunda e das margens invisibilizadas das cidades.

A Amazônia urbana desafia as categorias clássicas da urbanização. Suas cidades são, simultaneamente, rurais, florestais e urbanas. A presença de comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas em áreas urbanizadas complexifica o entendimento de cidade como espaço exclusivamente moderno e ocidental.[18] Nessa pluralidade de modos de vida, o direito à cidade precisa ser reconfigurado para incluir não só infraestrutura e serviços, mas também modos de existência múltiplos, que não cabem na lógica colonial do progresso. (Figura 2)


Figura 2. A Amazônia urbana desafia as categorias clássicas da urbanização com cidades que são, simultaneamente, rurais, florestais e urbanas.
(Foto: Raphael Luz/ Agência Pará. Reprodução)

 

As juventudes dessas cidades, por sua vez, têm articulado reivindicações que vão além da infraestrutura: lutam pelo reconhecimento simbólico e político de seus modos de vida. Nesse sentido, os jovens amazônicos atuam como guardiões de futuros possíveis, reconfigurando a cidade a partir de outras epistemologias e temporalidades — aquelas que Krenak (2019) [19] nos convoca a imaginar como formas de adiar o fim do mundo. Como nos lembra Davi Kopenawa, a floresta sonha — e seus filhos e filhas precisam continuar sonhando por ela, para não adoecer e morrer em silêncio.[20] Essas juventudes não só protegem os territórios, como também protegem os mundos.

 

Considerações Finais

Este artigo buscou evidenciar como o racismo ambiental nas cidades amazônicas estrutura desigualdades territoriais e climáticas que afetam, principalmente, juventudes racializadas. Ao mesmo tempo, reconheceu o papel central dessas juventudes como agentes de transformação, regeneração e reinvenção urbana. Em um contexto de emergência ecológica e esgotamento do modelo urbano dominante, são elas que apontam caminhos para uma cidade outra: viva, plural, ecológica e enraizada em justiça social.

 

“As juventudes amazônicas têm protagonizado formas políticas de resistência frente à crise climática.”

 

Reafirmar o papel das juventudes amazônicas na luta por justiça climática é também um ato de imaginação política. Como bem nos lembram os povos originários, regenerar o território é regenerar o sonho. Como escreve Julie Dorrico, a juventude indígena escreve para não desaparecer — e ao escrever, reencanta o mundo a partir das margens. Daniel Munduruku ensina que educar é plantar memória coletiva, e Eliane Potiguara nos lembra que o corpo da mulher indígena é o primeiro território violado e, por isso mesmo, também o primeiro a florescer resistência.

Talvez, seja essa a mais potente forma de existência política no século XXI: sonhar, narrar e reconstruir — mesmo com as mãos ainda sujas de barro, tinta, terra e esperança.

 

Capa. Jovens da Amazônia sofrem com as mudanças climáticas e com o racismo ambiental – e lutam para mudar essa realidade.
(Foto: Lidia Guajajara. Arquivo pessoal)

 

Ciência & Cultura © 2022 by SBPC is licensed under CC BY-SA 4.0  
[1] BULLARD, Robert D. Dumping in Dixie: Race, Class, and Environmental Quality. 3. ed. Boulder: Westview Press, 2001.
[2] ACSELRAD, Henri. Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
[3] CHAVIS JR., Benjamin Franklin. Racism and the Environment. United Church of Christ, 1981.
[4] ROBERTS, J. Timmons; TOFFOLON-WEISS, Melissa M. Chronicles from the Environmental Justice Frontline. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
[5] INSTITUTO TRATA BRASIL. Região Norte do Brasil carece de investimentos em saneamento básico. 2022. Disponível em: https://tratabrasil.org.br/regiao-norte-do-brasil-carece-de-investimentos-em-saneamento-basico/. Acesso em: 18 jul. 2025.
[6] INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Políticas públicas no Brasil: acesso ao ensino superior e desigualdades sociais. Brasília: IPEA, 2018. p. 245-260. Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/livros/livros/181009_politicas_publicas_ no_brasil_cap18.pdf. Acesso em: 18 jul. 2025.
[7] IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNAD Contínua – Educação 2022. Rio de Janeiro: IBGE, 2023. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/. Acesso em: 18 jul. 2025.
[8] SILVA, Cristiane Alves da. Racismo ambiental: produção de desigualdades socioambientais no Brasil. In: OLIVEIRA, Lúcio Flávio de Almeida (org.). Capitalismo, ambiente e justiça social. São Paulo: Outras Expressões, 2022. p. 95-110.
[9] PEREIRA, 2021; RIBEIRO, Gustavo Lins. Globalização e os paradoxos das cidades na Amazônia. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 73-89, 1995.
[10] MILANEZ, Bruno. Justiça ambiental e conflitos territoriais. Revista Ciência & Trópico, Recife, v. 43, n. 2, p. 145-162, 2019.
[11] ABRAMOVAY, M.; MARGULIS, M.; URRESTI, M. Juventudes e exclusão social: dilemas da democratização no Brasil. Brasília: UNESCO, 2003.
[12] DAYRELL, J. (2003). O jovem como sujeito social. Revista Brasileira de Educação, 24, 40–52. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/zsHS7SvbPxKYmvcX9gwSDty/
[13] BANCO MUNDIAL. Juventudes brasileiras: diversidade, desigualdades e desafios para o desenvolvimento. Washington, DC: Banco Mundial, 2023. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/099031125103037423/pdf/P181402-a0c1ec80-38c6-45b 3-aa5d-8759fb47d837.pdf. Acesso em: 18 jul. 2025.
[14] ALVES DOS SANTOS, Gabriela. A violência do silenciamento. Introdução para a disciplina de Antropologia – ABI Ciências Sociais, UNIFESP, 2017.
[15] CASTRO, Edson Silva de. Juventudes e meio ambiente: práticas socioambientais em contextos urbanos. São Paulo: Cortez, 2023.
[16] SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.
[17] ROLNIK, Raquel. O que é cidade. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 2009.
[18] CUNHA, Manuela Carneiro da. Sociobiodiversidade e saberes locais: subsídios para políticas públicas. São Paulo: ISA, 2019.
[19] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[20] KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Gabriela Alves dos Santos é diretora e sócia-fundadora do Instituto Perifa Sustentável.

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