Introdução
A ciência cidadã é possivelmente uma das vertentes menos conhecidas dentre os movimentos pela ciência aberta, embora, ao menos desde o século XIX, se observe a contribuição à ciência dos chamados “amadores”, aqueles que se interessam por ciência, mas não tiveram um treinamento específico para praticá-la. O termo cientista surge na terceira década daquele século,[1] indicando o início da profissionalização da prática científica, o que se intensifica a partir da segunda metade do século XX.
Trata-se de um termo polissêmico, que admite diferentes interpretações, métodos e práticas, dependendo de quem o mobiliza, com que motivações, pontos de vista e objetivos, contextos e condições. Outras expressões — como ciência comunitária, ciência participativa, engajamento público na ciência, geração cidadã de dados, entre outras — são termos análogos à ciência cidadã, mas guardam distinções semânticas e eventualmente métodos distintos.[2]
Este artigo faz um apanhado de diferentes concepções, motivações e tipos de projetos de ciência cidadã, seus métodos e instrumentos, bem como os protocolos e salvaguardas para sua implementação de modo ético e justo. Apresenta ainda um panorama de temas e exemplos de projetos desenvolvidos no Brasil com essa abordagem.
Um termo em construção
O termo ciência cidadã começou a ser utilizado nas décadas de 1980 e 1990, expandindo-se nas primeiras duas décadas deste século, a partir de um conjunto de fatores.[3]
Um primeiro aspecto refere-se ao aumento da complexidade dos desafios postos à ciência e à necessidade de produção de um maior volume de dados heterogêneos e dispersos, intensificando seu processo de datificação, e evidenciando também os limites das equipes científicas e orçamentos disponíveis para enfrentá-los. Um segundo aspecto, relacionado ao anterior, diz respeito à difusão de novos meios técnicos de informação e comunicação, especialmente as plataformas, dispositivos móveis e aplicativos digitais que permitem o registro e o envio de dados à distância, a custos acessíveis e com interface amigável, facilitando a contribuição social na produção de dados. Um terceiro aspecto remete à valorização da coprodução de conhecimentos como parte da construção da cidadania, projetando a ideia de cidadania científica.[4]
“Valorização da coprodução de conhecimentos como parte da construção da cidadania, projetando a ideia de cidadania científica.”
Por fim, a ciência cidadã é vista ainda como forma de contribuir para a educação, a divulgação e a popularização científica e ambiental, em formatos mais dialógicos, não se tratando de termos equivalentes. Esse papel da ciência cidadã ganha importância ante o crescimento de campanhas de descrédito da ciência e a disseminação de notícias falsas (fake news) e de falsa ciência (fake Science).[5]
Em linhas gerais, duas grandes abordagens de ciência cidadã se projetam, desde sua disseminação. Uma de viés mais instrumental, cujo propósito é mobilizar a contribuição social para a coleta e o registro de dados, visando o aumento da quantidade e da velocidade dos resultados da pesquisa científica. Outra de viés mais democrático ou participativo, tendo como foco ampliar a colaboração entre a ciência e outros tipos de conhecimentos, de forma mais horizontal. Essas duas abordagens não são necessariamente opostas e podem ser complementares, envolvendo, entretanto, métodos e protocolos distintos.
Um projeto ou iniciativa de ciência cidadã pode ser iniciado e liderado por uma equipe científica, como pode também partir de um indivíduo, grupo ou comunidade sem formação acadêmica. As motivações envolvem desde lazer ou interesse em ciência, até a produção de dados, informações e conhecimentos por grupos mobilizados em torno de causas de interesse coletivo, incluindo grupos em situação de risco ou vulnerabilidade, buscando ampliar sua participação e influência na tomada de decisão e em políticas públicas que os afetam, especialmente em questões sob controvérsia ou conflito. Muitas vezes buscam colaboração ou certificação de equipes científicas.
Diversos termos têm sido utilizados para denominar quem participa de projetos e iniciativas de ciência cidadã, tais como: cidadãos cientistas, não-cientistas, leigos, amadores, “hobbystas”, voluntários, além de outras denominações mais genéricas, como participantes, contribuidores, colaboradores, comunidades, público, grupos de interesse, entre outras, o que é também objeto de debate.[6]
Ciência cidadã: protocolos e salvaguardas
A ciência cidadã vem sendo objeto de políticas públicas e de diretrizes de organizações internacionais.[7] Nas Recomendações da Unesco sobre Ciência Aberta,[8] dois de seus quatro eixos orientadores fazem referência direta ou indireta à ciência cidadã, quais sejam, o “envolvimento aberto dos atores sociais” e o “diálogo aberto com outros sistemas de conhecimento”.
“A ciência cidadã amplia o significado de abertura para além do campo estrito da ciência, implicando maior porosidade na relação com outros tipos de saberes.”
Por um lado, a ciência cidadã amplia o significado de abertura para além do campo estrito da ciência, implicando maior porosidade na relação com outros tipos de saberes. Esforços de diálogo entre conhecimentos científicos e conhecimentos tradicionais e ancestrais têm tido seu papel reconhecido no enfrentamento dos atuais desequilíbrios socioambientais planetários. Articular distintos regimes de conhecimento é, entretanto, um desafio. Não se trata de validar cientificamente outros tipos de conhecimentos, mas de promover e valorizar os aprendizados recíprocos entre diferentes práticas e modos de conhecer, que ao final expressam diferentes modos de viver.[9]
Por outro, a adoção de princípios e requisitos da ciência aberta vem sendo requerida a projetos de ciência cidadã, especialmente no que se refere ao compartilhamento dos dados, o acesso aberto às publicações deles resultantes, e o uso de hardware e software abertos e livres. O papel crescente de infraestruturas e ferramentas digitais para coletar e registrar dados, incluindo recursos de inteligência artificial,[10] requer atenção dos projetos de ciência cidadã quanto a protocolos que salvaguardem a ética na pesquisa e a soberania sobre os dados. Para além dos princípios FAIR de gestão de dados (que os dados sejam localizáveis, acessíveis, interoperáveis e recuperáveis), trata-se também de considerar os princípios CARE (benefícios coletivos, autoridade para controlar, responsabilidade e ética).[11]
Aí incluem-se o consentimento livre, prévio e informado dos participantes, o reconhecimento das contribuições recebidas, a devolutiva e o acesso aos resultados e a repartição justa de benefícios deles derivados. Trata-se de estabelecer mecanismos que resguardem os envolvidos quanto ao extrativismo acadêmico e, eventualmente, comercial de projetos de ciência cidadã, e quanto ao neoextrativismo de dados da emergente Economia de Plataforma.[12]
Cabe ainda atentar para outros aspectos do arcabouço jurídico-normativo que afeta projetos de ciência cidadã, como direitos de propriedade intelectual (sobre imagens, dados, textos e outros materiais), proteção de dados pessoais e coletivos, entre outros.[13]
Ciência cidadã no Brasil
A América Latina possui uma larga trajetória de reflexões, conceituações e experimentações que fornecem uma fundamentação própria para a ciência participativa e cidadã na região. Têm-se a pedagogia do oprimido do educador brasileiro Paulo Freire; a pesquisa-ação participativa do sociólogo colombiano Orlando Fals Borda; a perspectiva decolonial de vários autores, como Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Walter Mignolo; as formulações e experiências no campo das tecnologias e inovações sociais; o pensamento anticolonial de autores indígenas, quilombolas, afrodescendentes, feministas e interseccionais, como Andre Baniwa, Ailton Krenak, Antonio Bispo dos Santos (Nêgo Bispo) e Lelia González, só para destacar alguns no Brasil.
“A América Latina possui uma larga trajetória de reflexões, conceituações e experimentações que fornecem uma fundamentação própria para a ciência participativa e cidadã na região.”
No Brasil, iniciativas e projetos de ciência cidadã vêm se expandindo na última década, fortalecendo-se também sua institucionalização. Em 2021, foi formada a Rede Brasileira de Ciência Cidadã (RBCC), contando atualmente com mais de 400 membros, visando promover o diálogo e o aprendizado entre pesquisadores e praticantes de ciência cidadã; incentivar o engajamento em projetos de ciência cidadã; subsidiar políticas públicas de apoio à ciência cidadã.
Ao final de 2023, foi aprovado, no âmbito do Edital 2022 de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Instituto Nacional de Ciência Cidadã (INCC), projeto com duração de cinco anos, sob coordenação desta autora, tendo como instituição executora o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), contando também com o apoio da Capes. Trata-se de uma rede com a participação de cerca de 50 pesquisadores do Brasil e alguns do exterior, estruturando-se em sete linhas de pesquisa e ação: (1) Coprodução e Engajamento Social em Iniciativas de Ciência Cidadã; (2) Tecnologias, Ferramentas e Infraestruturas; (3) Governança, Avaliação e Protocolos; (4) Formação e Educação; (5) Disseminação Social e Subsídios a Políticas; (6) Arcabouço Teórico-Conceitual; (7) Gestão, Articulação e Internacionalização.
Desde 2022, está em operação a Cívis, plataforma de ciência cidadã desenvolvida pelo IBICT, a partir do código-fonte aberto da plataforma europeia de ciência cidadã Eu-Citizen.Science, tendo como foco iniciativas e projetos desenvolvidos no Brasil e em outros países da América Latina e Caribe. A maioria desses projetos tem foco na área socioambiental, consoante com o que se verifica em outros países e regiões, onde se tem dado ênfase ao papel da ciência cidadã para o alcance dos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS).
Cerca da metade dos projetos no Brasil, atualmente cadastrados na Cívis, tratam de temas associados à biodiversidade e à conservação ambiental. Vejam-se, por exemplo, o Programa de Ciência Cidadã do Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA) e o Programa Monitora do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio-MMA). (Figura 1)

Figura 1. O programa Ciência Cidadã para Amazônia, da rede Aliança Águas Amazônicas, envolve comunidades pesqueiras locais para gerar informações sobre peixes e águas na escala amazônica.
(Foto: Guillermo Estupiñan / WCS Brasil. Reprodução)
Um terço do total de projetos brasileiros presentes na Cívis trata de temas associados a ambientes marinhos, costeiros e fluviais. Vejam-se, por exemplo, a Brydes do Brasil, uma rede sobre a baleia-de-bryde em águas jurisdicionais brasileiras, mobilizando a pesquisa científica participativa; e o programa Ciência Cidadã para Amazônia, desenvolvido pela rede Aliança Águas Amazônicas, tendo por objetivo gerar informações sobre peixes e águas na escala amazônica, envolvendo comunidades pesqueiras locais. (Figura 1)
Outros temas são objetos das iniciativas e projetos, como clima, resíduos sólidos, e ainda:
- Avistamento e registro de espécies de aves, como o caso do Wikiaves, disponibilizando ferramentas para controle de registros fotográficos e sonoros, textos sobre espécies de aves, promovendo a comunicação entre observadores; e o Projeto Cidadão Cientista da Save Brasil, com diversas iniciativas de ciência cidadã sobre pássaros. (Figura 2)
- Observação do céu, como as iniciativas EXOSS (Exploring the Southern Sky) e Bramon (Rede Brasileira de Observação de Meteoros), ambas orientadas para o monitoramento de meteoros e bólidos na atmosfera, envolvendo redes de voluntários e parcerias com instituições de ensino e pesquisa.
- Polinizadores, como o projeto Guardiões da Chapada, visando o monitoramento participativo sobre a interação entre plantas e seus visitantes em ambientes naturais, urbanos e agrícolas, por meio de registros fotográficos.
- Animais silvestres e vetores de doenças, como o SISS‑Geo — Sistema de Informação em Saúde Silvestre, desenvolvido pela Fundação Oswald Cruz (Fiocruz), em parceria com o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC);
- Prevenção de desastres e situações pós-desastres ambientais, como o projeto Cemaden Educação, que mobiliza jovens e comunidades para construir conhecimentos, refletir e agir na prevenção de riscos de desastres; o CoAdapta | Litoral, que visa melhorar a adaptação aos riscos climáticos através de estratégias e ações de cogestão de riscos baseadas na comunidade; e o Que Lama é Essa, Rede de Monitoramento Geoparticipativo, que visa investigar a situação das águas, lama de enchentes e solos após as chuvas de janeiro e fevereiro de 2022, em pontos das bacias do Rio das Velhas, do Rio Paraopeba e do Rio Doce, em Minas Gerais.
- Grupos em áreas urbanas ou rurais, que mobilizam produção de dados e ciência cidadã para a defesa dos interesses de comunidades e localidades, em risco ou vulnerabilidade, como o Instituto Decodifica, com foco nas realidades e necessidades das periferias, sendo um desdobramento do projeto LabJaca.[14]

Figura 2. Projeto Cidadão Cientista, da SAVE Brasil, visa realizar monitoramentos participativos de aves em Unidades de Conservação e parques urbanos.
(Foto: SiBBr. Reprodução)
Vários projetos e iniciativas desenvolvem atividades de educação formal ou informal, dentro ou fora do ambiente escolar, como o Programa Interinstitucional de Ciência Cidadã na Escola (PICCE), envolvendo uma rede de instituições no estado do Paraná.
Muitos projetos utilizam aplicativos de celular e dispõem de plataformas de dados ou utilizam-se de infraestruturas de terceiros. Alguns recorrem a dispositivos de hardware aberto, por exemplo, para o monitoramento de condições meteorológicas e da qualidade da água. O uso de ferramentas de geovisualização participativa e, em alguns casos, de cartografia social é recorrente.
Há, portanto, um amplo espectro de possibilidades de entendimentos e de usos da ciência cidadã, como conceito, método e abordagem, de modo situado e adequado à cada realidade, temas e questões. São também inúmeros os desafios, que envolvem sobretudo como e em que condições promover uma ciência cidadã participativa, responsável e comprometida com os direitos e interesses dos diversos grupos envolvidos.