Fundada em 1950 sob os auspícios da UNESCO, a International Association of Universities (IAU) é uma das principais associações globais de instituições de ensino superior, reunindo quase 600 membros de mais de 130 países. Como fórum global para líderes de universidades e organizações, a IAU conecta atores-chave da educação superior para refletir e agir sobre prioridades comuns, promovendo o papel transformador das universidades na construção de um mundo mais sustentável. Conversamos com dois destacados membros da IAU: Peter Aronsson, Vice-Chanceler da Linnaeus University (Suécia) e membro do Conselho Administrativo da IAU desde 2022, e Trine Jensen, Gerente de Educação Superior e Transformação Digital na IAU. (Figura 1) Ambos estão na vanguarda de iniciativas que buscam integrar a Ciência Aberta e a inovação tecnológica ao futuro da educação superior. Peter Aronsson, com um PhD em história pela Lunds University, dedicou sua carreira a entender as condições históricas para a criação de uma cultura democrática durável. Sua experiência em projetos internacionais sobre o uso do passado em museus nacionais, como o Eunamus, traz uma perspectiva única sobre a importância da educação e da memória coletiva. Como Vice-Chanceler da Linnaeus University, ele tem trabalhado para fortalecer o papel das universidades como agentes de mudança social. Já Trine Jensen, na IAU desde 2012, lidera iniciativas de transformação digital, incluindo o desenvolvimento de um Grupo de Especialistas em Ciência Aberta, que apoia a adoção dos princípios da UNESCO nessa área. A IAU, com seu Estratégia 2030, adotada em 2022, concentra-se em quatro temas prioritários para a educação superior, incluindo a promoção da Ciência Aberta e o uso responsável de tecnologias emergentes, como a inteligência artificial. Recentemente, a associação relançou seu Institutional Site Visits Program, que promove o aprendizado entre pares e a troca de práticas digitais inovadoras. Essas iniciativas refletem o compromisso da IAU em utilizar a tecnologia para melhorar o acesso e a qualidade da educação, garantindo que as universidades continuem a desempenhar um papel central no avanço das sociedades. Nesta entrevista, realizada e traduzida por Claudia Bauzer Medeiros, professora do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Peter Aronsson e Trine Jensen compartilham suas visões sobre os desafios e oportunidades da Ciência Aberta, a transformação digital na educação superior e o papel das universidades na construção de um futuro mais inclusivo e sustentável. Confira!

Figura 1. Peter Aronsson e Trine Jensen
(Foto: Arquivo pessoal. Reprodução)
Ciência & Cultura — Vocês coordenaram um grande esforço do Grupo de Especialistas em Ciência Aberta da IAU para produzir um relatório inicial e recomendações para universidades de todo o mundo sobre adoção e implementação de políticas de Ciência Aberta. Podem, por favor, nos dar uma visão geral sobre a IAU, e o que levou o organismo a criar o Grupo?
Peter Aronsson & Trine Jensen — A Associação Internacional de Universidades (IAU — International Association of Universities) foi fundada em 1950 sob os auspícios da UNESCO; sua secretaria está na sede da UNESCO em Paris desde então. É uma associação de membros, que busca congregar instituições de ensino superior de todas as regiões do mundo, bem como associações regionais de universidades. No papel de fórum global de líderes universitários, a IAU abriga e conecta quase 600 membros de mais de 130 países para identificar, refletir e agir na direção de prioridades comuns. A IAU age como a voz global de instituições de educação superior para um leque amplo de organizações internacionais e intergovernamentais, em particular a UNESCO. A IAU criou o Grupo de Especialistas em Ciência Aberta como parte da adoção da declaração de políticas constante do documento Transformando a Educação Superior num mundo Digital para o Bem Global Comum (Transforming Higher Education in a Digital World for the Global Common Good, 2022). Este documento reconhece a Recomendação da Unesco para a Ciência Aberta. O objetivo do Grupo é reunir líderes e especialistas em Ciência Aberta que trabalham em universidades para delinear os desafios e oportunidades-chave para as universidades nesta transição tão importante. O valor agregado da Associação é que ela tem âmbito global, o que significa que essas conversas e intercâmbios reúnem perspectivas, oportunidades e desafios de todas as regiões do mundo. Também é um meio de criar consciência sobre como certas maneiras de buscar a Ciência Aberta em certas regiões podem ter implicações em outras partes do mundo. O principal grupo-alvo da IAU são as lideranças universitárias, uma audiência importante a atrair para promover mudanças. Além disso, a Ciência Aberta está relacionada com todas as diferentes prioridades nas quais a IAU vem trabalhando — sejam elas liderança, internacionalização, desenvolvimento sustentável ou transformação digital. A Ciência Aberta aparece como um tema central em todos esses aspectos e é pré-requisito para que o intercâmbio acadêmico global possa usar todo o seu potencial.
“A ciência cria conhecimento a partir de um esforço da comunidade.”
C&C — Vocês podem destacar alguns dos principais desafios para as universidades para implementar tais políticas?
PA & TJ — Um dos maiores desafios para universidades é implementar uma mudança cultural em direção à Ciência Aberta, ao requerer mudanças em processos, em tradições em toda a instituição (o que toma tempo) e depende dos diferentes incentivos estabelecidos para favorecer tal mudança. No entanto, o grupo de especialistas destacou três aspectos essenciais para ter em mente durante este processo, a saber:
- Construção de confiabilidade na ciência: A ciência cria conhecimento a partir de um esforço da comunidade. No seu melhor, tal comunidade é global e aberta para pesquisas e pesquisadores de todas as partes do mundo. O compartilhamento de práticas aumenta a acurácia e reduz as incertezas dos resultados. Idealmente, a ciência se autocorrige por meio de revisões críticas, reprodução ou replicação independente e validação estatística. Seus processos nos ajudam a garantir qualidade acadêmica e diferenciar entre desinformação e conhecimento legítimo baseado em evidências. Desta forma, garantir a confiabilidade da ciência requer vigilância constante por parte dos cientistas e suas instituições, particularmente universidades.
- Construção de um fluxo global de conhecimento: Outra prioridade importante é que as universidades precisam reconhecer, respeitar e se beneficiar da diversidade global de culturas, práticas e prioridades que elas englobam internacionalmente. O fluxo global de conhecimento é muito desigual e não é representativo de todos os países do mundo. Deve haver um compromisso na direção de uma contribuição mais inclusiva e colaborativa para a produção de conhecimento, para endereçar as desigualdades que ainda prevalecem no mundo de hoje.
- Construção de sistemas equitativos para compartilhamento do conhecimento: Na pergunta anterior, mencionamos a importância de um fluxo de conhecimento verdadeiramente global em termos de produção de conhecimento. Da mesma maneira, o acesso equitativo ao fluxo global de conhecimento é igualmente importante, tanto como um ativo profundo para pesquisa e ensino em uma universidade quanto como um meio através do qual a pesquisa desenvolvida em uma universidade pode contribuir para a riqueza da compreensão humana. No mundo de hoje, grande parte do fluxo de conhecimento é possuído por editoras comerciais, que ou requerem pagamento para liberá-lo para as universidades, ou permitem aos leitores acesso livre (publicações em acesso aberto), mas transferem este pagamento aos autores. Independente do modo de pagamento, este sistema infelizmente representa um grande desafio para instituições mais pobres e países de renda média e baixa — e, portanto, impacta negativamente a diversidade inclusiva mencionada acima.
Portanto, embora essas sejam aspirações importantes por detrás da agenda da Ciência Aberta, elas requerem transformações profundas nos sistemas e tradições atuais, que levam tempo e exigem liderança para implementar tais mudanças. No entanto, esperamos que as recomendações do relatório incentivem as universidades a se engajarem e contribuírem para dar forma a esta transformação.
“Garantir a confiabilidade da ciência requer vigilância constante por parte dos cientistas e suas instituições, particularmente universidades.”
C&C — Vários países, organizações científicas e organismos internacionais (notavelmente a UNESCO e a OECD) já publicaram relatórios e recomendações sobre Ciência Aberta. Por que a necessidade para um documento voltado a universidades?
PA & TJ — Realmente já há muitos relatórios disponíveis e, como explicado, na IAU estamos também conectando nosso trabalho às Recomendações da Unesco para a Ciência Aberta; estamos contentes de ver este desenho em alto nível de uma estrutura global com princípios e objetivos com os quais todos concordam no nível global. No entanto, no ecossistema global de ciência, há muitos atores e jogadores, e na IAU acreditamos ser importante considerar as perspectivas do ponto de vista das universidades e seus desafios específicos para esta transformação. Universidades são essenciais nesta transformação e deveriam contribuir para moldar a implementação dos princípios. Acreditamos que, embora seja útil que organizações governamentais internacionais coloquem Ciência Aberta na sua agenda, é igualmente importante que universidades contribuam para moldar como esses princípios são implementados na prática, ou chamem a atenção para alguns dos desafios-chave que são difíceis de endereçar. Juntar universidades de diferentes partes do mundo igualmente permite criar conscientização em termos de como iniciativas em partes diferentes do mundo estão se impactando mutuamente, chamando a atenção sobre os desafios que requerem soluções globais. Ao mesmo tempo que os estados-membro da Unesco estão monitorando programas dirigidos aos princípios de Ciência Aberta, a IAU pode ser instrumental no monitoramento do progresso sob a perspectiva das universidades e investigar o que elas veem como os principais obstáculos para buscar atingir esta agenda. A IAU pode também promover intercâmbio de experiências para criar capacitação por meio de colaboração mútua.
“A pesquisa desenvolvida em uma universidade pode contribuir para a riqueza da compreensão humana.”
C&C — Vocês podem, por favor, comentar algumas recomendações do relatório?
PA & TJ — O aspecto mais importante do relatório é que tem um enfoque abrangente de Ciência Aberta: reconhece o amplo escopo de dados, métodos e publicações dos resultados de pesquisa e educação, intercâmbio com todas as partes interessadas, comunidades e empresas de todo tipo. O relatório faz várias recomendações para apoiar os princípios mencionados acima, mas naturalmente cada recomendação deve ser considerada no contexto local, das restrições e oportunidades dentro de cada uma e todas as universidades. No entanto, ele destaca alguns dos desafios importantes para as universidades, e a Associação deseja continuar a criar conversas sobre esses itens, para favorecer intercâmbio de conhecimento entre instituições sobre como tratar dos desafios e co-criar soluções. Enquanto a UNESCO monitora a implementação das Recomendações sobre Ciência Aberta sob os pontos de vista de estado e políticas, a IAU está posicionada de forma ideal para monitorar o estado da arte e transformações, os desafios relacionados à implementação dos princípios de Ciência Aberta no nível institucional.
“As universidades precisam reconhecer, respeitar e se beneficiar da diversidade global de culturas, práticas e prioridades que elas englobam internacionalmente.”
C&C — Este relatório foi apresentado no congresso IAU International 2024, que foi realizado de 22 a 24 de novembro no Japão. Qual o feedback que vocês receberam dos representantes das universidades no congresso? Quais são os planos futuros para o Grupo de Especialistas?
PA & TJ — A recepção do relatório foi imensamente positiva e afirmativa. Muitos participantes estiveram presentes na sessão, tomando parte no debate. O relatório não faz de conta que a transformação será simples, há uma variedade de desafios e problemas interconectados relacionados a cada uma das recomendações. Alguns desses foram discutidos no Congresso, como, por exemplo: será que a Ciência Aberta teria impacto negativo na qualidade das publicações de pesquisa? Como encontrar equilíbrio entre as exigências de rigor científico com respeito às várias práticas de conhecimento? Como defender o caráter livre e público do conhecimento em um mundo no qual a ciência está também sob a pressão de interesses políticos e econômicos? Um dos principais ativos da IAU é que pode reunir conversas sobre esses tópicos importantes com perspectivas de todas as regiões do mundo, ao mesmo tempo, representando a voz das universidades junto a organizações internacionais governamentais como a UNESCO. Esperamos que esta publicação seja recebida tanto como instigante como inspiradora pelas universidades, enquanto refletem sobre como desejam se engajar e contribuir para esta transformação na qual o conhecimento é aberto, visando construir capacitação para endereçar os desafios de nosso mundo.
Leia a entrevista original em inglês!