Pieter Romer é um homem de múltiplos talentos e identidades, cuja vida e trabalho refletem uma rica mistura de tradição e inovação. Membro da Nação Nisga’a, conhecida como os “Povos do Rio Nass”, e descendente de uma família de capitães frísios, Pieter Romer carrega consigo a sabedoria ancestral de suas raízes indígenas e a visão global de sua herança europeia. Como Contato com a Comunidade Indígena do Ocean Networks Canada (ONC) e consultor em engajamento com povos originários, ele dedica sua vida a construir pontes entre o conhecimento tradicional e a ciência moderna. Além disso, Pieter é um premiado produtor, diretor e roteirista, responsável pela série CTV First Story, que há 16 anos leva às telas canadenses histórias e questões relevantes sobre as Primeiras Nações. Sua trajetória única o torna uma voz essencial no diálogo entre culturas e na promoção de parcerias significativas. A Ocean Networks Canada (ONC) é uma das principais instalações de pesquisa e observação oceânica do mundo, sediada e pertencente à Universidade de Victoria. Gerenciada pela ONC Society, uma organização sem fins lucrativos, a ONC opera observatórios únicos nas águas profundas e costeiras dos três oceanos do Canadá: Ártico, Pacífico e Atlântico. Por meio de uma rede de cabos submarinos, sensores móveis e instalações costeiras, a ONC coleta dados biológicos, químicos, geológicos e físicos que impulsionam soluções para a ciência, a indústria e a sociedade. Além disso, a ONC colabora estreitamente com comunidades indígenas e outros parceiros em programas de monitoramento costeiro, educação científica e treinamento de jovens, promovendo a ciência cidadã e o engajamento comunitário. As ações de Pieter Romer e da Ocean Networks Canada são um exemplo inspirador de como a ciência aberta e a inclusão podem transformar realidades. Ao integrar o conhecimento tradicional indígena com as mais avançadas tecnologias de observação oceânica, eles não apenas ampliam o entendimento sobre os ecossistemas marinhos, mas também fortalecem a resiliência das comunidades costeiras. Nesta entrevista, realizada e traduzida por Claudia Bauzer Medeiros, professora do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Pieter Romer e a ONC demonstram que a ciência, quando feita de forma colaborativa e respeitosa, tem o poder de unir pessoas, culturas e saberes em prol de um futuro mais sustentável e justo. Confira!
Ciência & Cultura — O que é o Ocean Networks Canada?
Pieter Romer — O Ocean Networks Canada (ONC) é uma potência tecnológica e de dados sobre oceanos, se especializando em observatórios baseados em cabos, que coleta dados oceanográficos com instrumentos que transmitem dados para o litoral, em tempo real, usando cabos de fibra ótica. Nós nos referimos à tal infraestrutura como o “oceano conectado pela internet”. Nosso maior observatório, chamado NEPTUNE, tem 800 km de comprimento, na costa oeste da ilha de Vancouver. A maioria de nossos observatórios está situada em territórios das Primeiras Nações na Colúmbia Britânica. Temos um observatório da comunidade com os Gitga’at, os Tsleil-Waututh e os Inuit no Ártico, e um observatório na costa leste do Canadá. Doze mil sensores fornecem informação acessível globalmente, em tempo real, 24/7 e 365 dias por ano, mostrando como o oceano está mudando. Esta informação está disponível na internet para qualquer pessoa, no mundo inteiro. Monitoramos tudo possível no oceano, até mesmo neutrinos vindos do espaço! (Figura 1)

Figura 1. Uma das principais instalações de pesquisa oceânica do mundo, a ONC coleta dados essenciais e promove ciência cidadã, educação e parcerias com comunidades indígenas.
(Fonte: Arquivo pessoal. Reprodução)
C&C — Qual a importância das parcerias do ONC com povos indígenas? Quantas parcerias existem? Cite alguns tópicos associados a essas colaborações.
PR — Nosso objetivo é tornar dados sobre os oceanos acessíveis, relevantes e úteis para comunidades costeiras e indígenas. As colaborações em andamento informam o desenvolvimento de programas, de projetos de curto e longo prazos, de treinamentos e workshops, de apoio a infraestruturas e produtos de dados. As comunidades costeiras são as guardiãs do conhecimento e gestoras e administradoras dos seus territórios marítimos. As comunidades indígenas vêm testemunhando essas mudanças desde tempos imemoriais e conhecem os desafios que seus ambientes estão enfrentando. Em outro programa em parceria, chamado Community Fishers, membros da comunidade indígena recebem treinamento para coletar dados de colunas de água e trabalham com o ONC para estabelecer um plano de amostragem em sua área de interesse. A construção do Programa Community Fishers foi liderada pela comunidade; reconhece o imenso valor do conhecimento indígena e o combina com dados providos por instrumentos oceanográficos, treinamento e com suporte científico. Isto significa que os dados de alta qualidade sendo coletados são relevantes para interesses de pesquisa daqueles locais, além de contribuir para ampliar o conhecimento científico sobre os oceanos de uma forma mais ampla. Um aspecto fundamental das colaborações do programa de parceria Community Fishers é a atribuição de posse e autoria dos dados à comunidade que está realizando a pesquisa. No nosso programa de monitoramento do Community Fishers, estamos atualmente trabalhando em parceria com 13 comunidades indígenas; este número está crescendo constantemente. No todo, temos atualmente 37 parcerias de vários tipos em educação e monitoramento. O número flutua conforme os projetos. Alguns são bastante complexos, enquanto para outros o papel é mais voltado a suporte.
“Reconhece o imenso valor do conhecimento indígena e o combina com dados providos por instrumentos oceanográficos, treinamento e com suporte científico.”
C&C — Poderia nos dar um ou dois exemplos em que essas parcerias foram essenciais para obter resultados de qualidade?
PR — Todas as nossas parcerias são essenciais, mas uma que se destaca é a recente Avaliação de Riscos de Tsunami da Costa Noroeste da Ilha de Vancouver (Tsunami Risk Assessment of the Northwest Coast of Vancouver Island) em que trabalhamos com cinco Primeiras Nações: Quatsino First Nation e quatro Nuu-chah-nulth First Nations. Sobrevoamos essas comunidades utilizando Lidar para entender as zonas de impacto se um tsunami acontecesse. A partir desse levantamento, criamos modelos digitais de terreno para entender as velocidades das correntes. Nossas equipes de atração e envolvimento de indígenas realizou pesquisa e entrevistas antes dos voos com os anciãos detentores do conhecimento, além de reuniões com grupos assessores, para entender os cenários realmente vividos pelos moradores (em inglês, “boots on the ground”, significando constatação no local) desde 1700 até o tsunami de 1964 e o presente. Aprendemos como alinhar o conhecimento tradicional com nossos dados, e vice-versa. Se não tivéssemos trabalhado com as comunidades indígenas, não teríamos os dados completos, e tampouco poderíamos entender totalmente como as ondas e o seu surgimento repentino interagiram com as comunidades. O não estabelecimento desta parceria teria sido uma oportunidade perdida, tornando o estudo incompleto. Como parte do projeto e baseando-nos na pesquisa desenvolvida pela equipe de engajamento indígena, produzimos um documentário de meia hora sobre a história indígena dos tsunamis na costa oeste da ilha de Vancouver. O documentário é mais uma forma de retribuir às comunidades que compartilharam seu conhecimento conosco. Outro projeto que acabamos de terminar é o WSÁNEĆ Ocean Knowledge Cards, que é um conjunto de cartões educativos que crianças e adultos podem usar para aprender sobre espécies do oceano e o conhecimento tradicional sobre como as Primeiras Nações WSÁNEĆ usavam essas espécies para fazer comida e fabricar ferramentas, bem como os nomes das espécies na linguagem indígena. Há também muitos exemplos no nosso programa de monitoramento Community Fishers em que colaboramos com 13 comunidades indígenas distintas. (Figura 2)

Figura 2. A integração do conhecimento indígena com tecnologias avançadas amplia o entendimento dos ecossistemas marinhos e fortalece comunidades costeiras.
(Fonte: Arquivo pessoal. Reprodução)
C&C — A integração de conhecimento científico e tradicional apresenta muitos desafios. O senhor pode nos dar exemplos de enfoque que estão sendo usados por esses projetos conjuntos para resolver tais desafios?
PR — Não os encaro como desafios, mas sim como oportunidades. A melhor forma de construir uma parceria verdadeira e significativa é a partir da sua construção, desde o início, em equipe. Desta forma, todos estão sintonizados e a comunicação é clara. No entanto, projetos variam em sua capacidade e nem todos os projetos começam a partir de uma proposta. Engajar-se desde o início e de forma significativa com povos indígenas é chave para uma parceria e projeto bem sucedidos.
C&C — Essas colaborações de pesquisa são todas iniciadas pela ONC, ou há casos em que as colaborações são iniciadas pelo lado dos parceiros indígenas?
PR — Não, nem todas as parcerias com comunidades indígenas são iniciadas pelo ONC. Frequentemente, uma comunidade indígena recebe financiamento federal e nos envolve visando um sensor de monitoramento, software e treinamento.
“Aprendemos como alinhar o conhecimento tradicional com nossos dados, e vice-versa. Se não tivéssemos trabalhado com as comunidades indígenas, não teríamos os dados completos.”
C&C — Vocês estão envolvidos na iniciativa CARE? Pode nos contar um pouco sobre iniciativas baseadas ou influenciadas pelos princípios CARE?
PR — Incorporamos os princípios FAIR e CARE nos nossos acordos de gestão de dados. As comunidades indígenas se beneficiam imediatamente dos dados para sua tutela, pesca ou gestão e administração. Elas também têm controle sobre seus dados, por exemplo, podem desligar um sensor público no nosso sistema de gestão de dados Oceans 3.0. Podem também solicitar mudanças nos acordos a qualquer momento.
“A melhor forma de construir uma parceria verdadeira e significativa é a partir da sua construção, desde o início, em equipe.”
Confira a entrevista na versão original em inglês!