Introdução
Reportar-se a memória é adentrar uma temática com várias possibilidades de análises. Em busca de encontrar um caminho para esse desafio, o presente artigo divide-se em dois momentos. No primeiro, o tema será problematizado com base em algumas reflexões de estudiosos que se debruçaram sobre a matéria. O segundo momento aborda os trabalhos, da Comissão “Memória e Verdade das Universidades Públicas do Estado do Ceará”, constituído a partir do depoimento de antigos militantes políticos ligados a essas instituições.
Maurice Halbwachs, pioneiro no estudo da memória, acentua seu caráter social relacionado à estrutura material de grupos e populações. O autor fez parte de uma geração de intelectuais que procurava desenvolver uma ciência aplicada à solução de problemas sociais. O conceito de memória social trabalhado pelo autor foi desenvolvido sobretudo na obra “Os quadros sociais da Memória” (1952), apontando delineações claras sobre o que seria uma sociologia baseada no tema da rememoração. Nela, Halbwachs dialogou com a Psicologia (Freud) e com a Filosofia (Bergson), elaborando uma abordagem alicerçada na Sociologia de Émile Durkheim. Concluiu serem as lembranças frutos de quadros socialmente adquiridos, não havendo criação ou inspiração no ato de rememorar. Nesse sentido, o que existe é uma complexa combinação de variados quadros adquiridos socialmente no percurso dos indivíduos, sendo os atos de lembrar e esquecer associados à vida social. No intercurso das ideias, a memória, até então, amplamente reconhecida como determinada por aspectos subjetivos, passou a ser objeto de estudo como fato social.
Outro autor digno de destaque nessa reflexão é Michael Pollak, cujo interesse acadêmico esteve direcionado, de início, para as relações entre Política e Ciências Sociais, tema de sua tese de doutorado orientada por Pierre Bourdieu e defendida na École Pratique des Hautes Études, em 1975. Na ocasião, os diversos ambientes investigativos confluíam para uma reflexão teórica sobre o problema da identidade social em situações-limite. A primeira proposição, expressa por vários estudiosos desta área do conhecimento, repousa na ideia de que o conceito de memória social é transdisciplinar, não pertencendo a qualquer disciplina específica. (Figura 1)
Figura 1: Maurice Halbwachs e Michael Pollak, figuras pioneiras no estudo da memória, identidade e sociedade.
(Imagem: Reprodução)
É importante evidenciar que os textos sobre Memória Social, de Pollak, quase sempre, iniciam perguntando: O que é memória social?
A ligação entre memória e identidade social, especificamente, no âmbito das histórias de vida, é para o sociólogo vianês uma tentativa de encontrar uma metodologia para apreender, nos vestígios da memória, aquilo que é apto a relacioná-los, a exemplo da memória política.
O ponto de relevo está no fato de que, para Michael Pollak, se for levado em conta certo número de conceitos usados frequentemente na História, principalmente da França, há algumas designações atribuídas a determinados períodos, que aludem diretamente a fatos de memória, muito mais do que a acontecimentos ou eventos históricos não trabalhados por memórias. Por exemplo, quando se fala nos “anos sombrios” para designar a época do Estado Francês de Vichy – a conhecida República-Fantoche – sob o marechal Henri Philippe Pétain, ou se a fala nos reporta aos “trinta gloriosos”, que são os 30 anos posteriores a 1945, essas expressões remetem mais a noções de memória.
“Com implantação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, foi configurado um novo momento no plano da repressão, instaurando-se um clima de terror nas universidades, ocorrendo várias prisões e expulsões de estudantes, forçando a que uma boa parcela deles entrasse na clandestinidade.”
Em termos metodológicos, Pollak analisa elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva. Considera que em primeiro lugar estão os acontecimentos vividos pessoalmente. Depois, as ocorrências “vividas por tabela”, ou seja, experimentadas pelo grupo ou coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais ela nem sempre participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se fez parte deles.
Os acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar a todos os eventos não situados no âmbito do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão robusto ao ponto de ser suscetível de se referir a uma memória quase que herdada.
Além dos acontecimentos e das pessoas, Pollak arrola os lugares. Existem loci da memória, particularmente ligados a uma lembrança, pessoal, mas também desprovida de apoio no tempo cronológico. Exemplificando, um lugar de férias na infância, que permaneceu muito intenso na memória da pessoa, independentemente da data real em que a vivência sucedeu. Na memória mais pública é provável haver lugares de apoio referentes aqueles de comemoração; locais muito longínquos, fora do espaço-tempo da vida de uma personagem, são constitutivos de ambientes importantes para a memória do grupo, e, por conseguinte, da própria pessoa, seja por tabela, seja por pertença a esse grupo.
Além de diversas projeções, que, recorrentemente, sucedem em relação a eventos, lugares e personagens, há também o problema dos vestígios datados da memória, ou seja, aquilo que resta gravado como data precisa de um acontecimento, revelando seletividade.
As pesquisas de Pollak, ao privilegiarem a análise dos excluídos, marginalizados e minorias, ressaltaram, na história oral, a importância de memórias subterrâneas que se opõem à “memória oficial”, no caso, a memória nacional.
A referência a esses supostos estão longe de esgotar o tema, destacando-se no caso desse artigo duas questões. A primeira destaca a ideia da memória como fato social e a segunda refere-se à vigência política da memória que se pluraliza e opõe a memória oficial e a memória de coletivos dominados em vários momentos da história. Tomo esta última elaboração de Pollak para pensar a oposição entre memória e verdade que deu subsídio ao investimento narrado a seguir referente ao estudo sobre a Comissão da Verdade das Universidades Públicas do Ceará.
Memória e verdade
A pesquisa teve como foco a memória e a constituição da verdade, principalmente, com amparo nos depoimentos de ex-estudantes ou ex-professores, classificados como militantes políticos, que sofreram violações dos direitos humanos, no âmbito das Universidades públicas, por parte dos órgãos de repressão do regime militar implantado no Brasil em 1964.
“Um dos aspectos que demarcam os prejuízos na universidade resultante do golpe de 1964 é o tempo que alguns estudantes levaram para a conclusão dos seus cursos, provocados por prisões, afastamentos ou expulsões e a vida clandestina.”
Em 2013, foi criada, em comum acordo entre os reitores da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e da Universidade Federal do Ceará (UFC), uma “Comissão da Verdade das Universidades do Estado do Ceará”. Esta foi destinada a examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos, praticadas durante a ditadura militar, com apoio de setores civis, que vigorou no País de 31 de março de 1964 a 15 de março de 1985, contra docentes, alunos e funcionários não docentes das duas academias. As contribuições dessa Comissão serviram de subsídios para a Comissão Nacional da Verdade, no que se referem, fundamentalmente, à identificação e a informações sobre professores, alunos e funcionários presos e que sofreram torturas, desapareceram ou foram mortos, bem como os docentes banidos e os alunos impedidos de frequentar as universidades. A Comissão das Universidades do Estado do Ceará trabalhou, principalmente, como fonte de dados, os depoimentos prestados à Comissão por professores, estudantes e funcionários vítimas dos órgãos de repressão. (Figura 2)
Figura 2: A Comissão da Verdade das Universidades do Estado do Ceará destinou-se a examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos, praticadas durante a ditadura militar, contra docentes, alunos e funcionários das duas academias.
(Foto: Arquivo UNE. Reprodução)
Os depoimentos de pessoas que passaram por violações dos direitos humanos ocupam lugar central nas configurações de reconstituições da memória de uma verdade, ainda em grande parte desconhecida. Os depoentes foram escolhidos ou selecionados com amparo numa pesquisa exploratória, com pessoas que vivenciaram os momentos mais intensos de repressão nas universidades e que conheciam professores, estudantes e funcionários que haviam sido expulsos da vida acadêmica, presos ou submetidos à vida clandestina. Preparada uma lista inicial de nomes, esta foi sendo acrescida de outras indicações. O rol dos depoentes convidados foi elaborado da maneira mais ampla possível, buscando cobrir um conjunto plenamente representativo em termos de momentos históricos vividos, inserções políticas e gravidades das violações sofridas.
Analisar a documentação relativa à ditadura militar no âmbito das universidades públicas do Estado do Ceará, no período de 1964 a 1985, implicou adentrar o terreno de uma violência política cometida contra a comunidade acadêmica dessas instituições e abordar as práticas adotadas pelos órgãos de repressão do Estado brasileiro.
Praticamente a totalidade dos depoentes vitimados pela repressão foi detida e presa ilegalmente, com encarceramentos de variadas durações, mas que, na totalidade, nunca obedeciam a qualquer norma legal.
Um aspecto importante, ressaltado nos depoimentos, é que, do mesmo modo como os aparelhos ideológicos da repressão, contavam com todo um aparato para que suas ações fossem concretizadas, ganhando destaque pessoas infiltradas irregularmente nas Universidades, alguns professores, funcionários ou estudantes que exerciam o papel de colaboradores, o movimento estudantil também se organizou como podia. Nesta perspectiva, estruturaram suas redes sociais informais a fim de que suas ações fossem concretizadas. Assim, tinham sua rede sintagmática e paradigmática para divulgar suas ações e se protegerem dos organismos repressores.
“As práticas ditatoriais no Estado castraram e alijaram, em boa parte da vida política brasileira, toda uma geração que estava sendo formada e gestada na prática política estudantil; uma liderança que vivenciava práticas democráticas, em um clima político de compartilhamento.”
O desmantelamento ou a “operação-limpeza” nas universidades, como relatado nos depoimentos, ocorreu, clara e principalmente, pela expulsão de alguns professores e na intervenção das entidades estudantis. Se esse processo, no primeiro momento, levou a um recuo dos movimentos de contestação no interior das universidades, logo em seguida, ressurgiram as contestações, principalmente por parte do movimento estudantil. Com implantação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, foi configurado um novo momento no plano da repressão, instaurando-se um clima de terror nas universidades, ocorrendo várias prisões e expulsões de estudantes, forçando a que uma boa parcela deles entrasse na clandestinidade.
A ilegalidade, como ressaltado, marcou profundamente as prisões, tendo como aspectos delineadores a ausência de processos judiciais e o uso da força e da violência. As prisões ocorriam, na sua maioria, nas residências dos pais dos estudantes, sendo sequenciadas por torturas físicas e psicológicas.
As ilegalidades e não transparências marcaram os processos de expulsão. Em alguns casos, o Decreto-Lei 477 era acionado e, em sua maioria, decorriam de um ato administrativo da direção da universidade, constando afirmações como: “suspensa matrícula por ordem superior”. Um dos aspectos que demarcam os prejuízos na universidade resultante do golpe de 1964 é o tempo que alguns estudantes levaram para a conclusão dos seus cursos, provocados por prisões, afastamentos ou expulsões e a vida clandestina.
Um aspecto importante na conformação do movimento estudantil é configurado nas perdas políticas e de cidadania sofridas à extensão do tempo. Os espaços políticos e culturais então utilizados pelo Diretório Central dos Estudantes e pelos centros acadêmicos são praticamente irrecuperáveis. Estes ocupavam uma pauta acadêmica, política e cultural antes de 1964 e totalmente cerceada em 1968.
Segundo os depoimentos, as práticas ditatoriais no Estado castraram e alijaram, em boa parte da vida política brasileira, toda uma geração que estava sendo formada e gestada na prática política estudantil; uma liderança que vivenciava práticas democráticas, em um clima político de compartilhamento.
Os depoimentos, colhidos pela Comissão da Verdade das Universidades Públicas do Ceará, podem ser nomeados como uma tentativa de resgatar as histórias de vida de militantes políticos que foram vítimas do regime, a partir do golpe militar de 1964.
Durante os depoimentos ficou muito presente a discussão que Halbwachs fez sobre os atos de lembrar e esquecer, associados com a vida social. Os militantes políticos utilizaram imagens do passado, nos seus depoimentos, como participantes de comunidades afetivas.
A transdisciplinariedade da memória social, enfatizada por Pollak, evidenciou-se no fato de tratar a memória como não pertencente a qualquer disciplina específica.
Um aspecto, também, presente na construção dos relatos das histórias de vida configurou um fenômeno de projeção ou de identificação com determinados fatos do passado dos “anos sombrios”. Os depoimentos, seguindo a perspectiva de Pollak indicaram fatores de projeção e socialização política associados ao sofrimento, risco de vida e dificuldade posterior de recomposição de caminhos.