Mudanças climáticas e incêndios florestais: implicações sobre a saúde

Impactos das mudanças climáticas exigem intervenções coordenadas para proteger a saúde pública e o meio ambiente no Brasil

Resumo

Os incêndios florestais, exacerbados pelas mudanças climáticas, representam uma séria ameaça à saúde e ao meio ambiente no Brasil. A crescente frequência e intensidade desses incêndios têm gerado impactos devastadores, não apenas em termos ambientais, mas também na saúde pública e no bem-estar socioeconômico das populações afetadas. Além dos efeitos diretos na saúde, os incêndios florestais contribuem para o ciclo vicioso das mudanças climáticas. Enfrentar esses desafios complexos requer intervenções abrangentes e coordenadas. Isso inclui desde o fortalecimento das regulamentações ambientais e práticas sustentáveis de manejo de terras até políticas públicas que promovam a adaptação climática e a resiliência comunitária. A pesquisa científica contínua e a formulação de políticas baseadas em evidências são cruciais para mitigar os impactos crescentes dos incêndios florestais no Brasil, garantindo um futuro onde tanto a saúde pública quanto o meio ambiente estejam protegidos contra os desafios emergentes das mudanças climáticas.

Introdução

As mudanças climáticas estão levando a eventos climáticos extremos mais frequentes e graves no Brasil, como ondas de calor, secas e inundações.[1,2] Esses eventos podem impactar diretamente a saúde através de doenças, lesões e mortes relacionadas ao calor, bem como indiretamente através de perturbações nos sistemas de água, alimentos e saneamento.[3,4] Populações vulneráveis, como idosos, crianças e comunidades de baixa renda, são desproporcionalmente afetadas por esses riscos de saúde relacionados ao clima.[5,6]

Além disso, as mudanças nos padrões de temperatura e precipitação estão alterando as áreas geográficas e a dinâmica de transmissão de doenças transmitidas por vetores, como dengue, zika e chikungunya, no Brasil.[7,8] O desmatamento e as mudanças no uso do solo também estão facilitando a propagação de doenças zoonóticas, ao aproximar os humanos dos reservatórios de doenças na vida silvestre.[9,10] Espera-se que os surtos de doenças infecciosas emergentes aumentem em frequência e gravidade devido aos efeitos combinados da mudança climática e da degradação ambiental.[11,12] Ademais, eventos climáticos extremos, perda de meios de subsistência e deslocamento devido à mudança climática podem ter impactos graves na saúde mental, incluindo aumento da ansiedade, depressão e estresse pós-traumático.[13,14] As comunidades indígenas e tradicionais no Brasil são especialmente vulneráveis aos impactos da saúde mental decorrentes da degradação ambiental e da perda de práticas culturais. (Figura 1)


Figura 1. Aedes aegypt, vetor de doenças como dengue, zika e chikungunya
(Foto: acervo CCS. Reprodução)

 

Mudança climática exacerbando os riscos de incêndios florestais

As alterações no clima, estão levando a condições mais quentes, secas e propensas a incêndios em todo o mundo. Esses impactos, estão tornando as florestas mais suscetíveis a incêndios, à medida que secam a vegetação e criam condições ideais para que os incêndios se iniciem e se espalhem rapidamente.

Quando as florestas queimam, elas liberam grandes quantidades de carbono armazenado na atmosfera, exacerbando ainda mais o aquecimento global e criando um ciclo perigoso de feedback. Se o crescimento da vegetação após os incêndios for lento ou incompleto, como quando as florestas são substituídas por agricultura, o carbono liberado não é totalmente recapturado, contribuindo para as mudanças climáticas. Incêndios florestais graves e generalizados também podem perturbar os padrões climáticos regionais, como, por exemplo, no caso da floresta amazônica que produz e recicla grande parte do vapor de água que flui para a América do Sul.[20, 21]

O desmatamento e os incêndios florestais associados são um dos principais contribuintes para a poluição do ar no Brasil. Dados de satélite mostram que mais de 13% da cobertura florestal natural do Brasil foi perdida de 1985 a 2019. Embora as taxas de desmatamento tenham diminuído de 2005 a 2013 devido a novas regulamentações, elas aumentaram constantemente desde então, com mais de 10.000 km2 desmatados na Amazônia brasileira entre 2018-2019. Esses incêndios são frequentemente provocados deliberadamente para limpar a terra para a agricultura, levando a picos de poluição do ar durante a estação mais seca. (Figura 2)


Figura 2. Pantanal registrou mais de 3 mil focos de incêndio em junho deste ano
(Foto: Joédson Alves/ Agência Brasil. Reprodução)

 

A literatura científica destaca vários fatores-chave que impulsionam o aumento da frequência e intensidade dos incêndios florestais na América do Sul. A grande maioria dos incêndios florestais é causada por atividades humanas, particularmente a limpeza de terras para pecuária, cultivo de soja e outros fins agrícolas. A negligência durante essas atividades de limpeza de terras é uma causa primária dos incêndios florestais.[19, 23, 24] As secas e ondas de calor prolongadas, exacerbadas pela mudança climática, também aumentaram significativamente o risco de rápida propagação de incêndios em toda a região, agravando-se ainda mais na convergência do El Niño.[25, 26]

A ausência ou aplicação de leis fracas que regulamentam o desmatamento e o uso da terra dificulta os esforços para combater os incêndios e proteger os ecossistemas ameaçados. As influências políticas também impedem a prevenção e o gerenciamento eficazes de incêndios florestais. A pobreza e a falta de oportunidades econômicas em algumas regiões têm impulsionado práticas de uso da terra insustentáveis que aumentam o risco de incêndios. Melhorar os meios de subsistência e fornecer opções econômicas alternativas pode ajudar a reduzir a dependência de incêndios para a limpeza de terras.

 

Poluição do ar por incêndios florestais

Os efeitos da poluição do ar causada pela queima de combustíveis fósseis na saúde humana já são bem conhecidos e extensivamente estudados. A poluição do ar urbana e a fumaça dos incêndios florestais representam ameaças significativas à saúde humana, embora os mecanismos e impactos específicos possam variar. Ambas as fontes de poluição do ar contêm misturas complexas de material particulado, gases e outros compostos tóxicos que podem penetrar profundamente nos pulmões e entrar na corrente sanguínea. No entanto, a composição química da poluição urbana versus a fumaça de incêndios florestais difere, levando a efeitos de saúde distintos. A poluição urbana geralmente é mais alta em óxidos de nitrogênio (NOx), compostos orgânicos voláteis (COVs) e material particulado proveniente de fontes como emissões veiculares e atividades industriais. Enquanto a fumaça de incêndios florestais contém mais carbono orgânico, uma mistura complexa de material particulado, monóxido de carbono, óxidos de nitrogênio, COVs e outros compostos orgânicos. A toxicidade específica depende da composição química, que pode variar com base no tipo de vegetação queimada e nas condições de combustão.[28, 29]

 

“Populações vulneráveis, como idosos, crianças e comunidades de baixa renda, são desproporcionalmente afetadas por esses riscos de saúde relacionados ao clima.”

 

Além disso, os padrões espaciais e temporais de exposição diferem, com populações urbanas experimentando exposições mais crônicas e de baixo nível, em comparação com a natureza aguda e episódica da fumaça de incêndios florestais. Entender essas nuances é crucial para desenvolver intervenções de saúde pública direcionadas para abordar os variados impactos dessas duas principais fontes de poluição do ar.

 

Impactos multifacetados dos incêndios florestais na saúde

A literatura científica destaca ônus significativos de saúde pública devido à poluição do ar decorrente de incêndios florestais. A crescente frequência e intensidade dos incêndios florestais no Brasil têm consequências de longo alcance que se estendem além dos danos ambientais imediatos. Pesquisas emergentes lançaram luz sobre os profundos impactos da exposição à fumaça na saúde pública, no desempenho acadêmico e nos desfechos gestacionais.

Um estudo recente de McGrath et al.[31] usou uma abordagem de inferência causal para examinar a relação entre a exposição a incêndios florestais e o desempenho acadêmico entre mais de 1,5 milhão de estudantes no Brasil. Os pesquisadores constataram que a exposição a incêndios florestais estava associada a um declínio significativo no desempenho acadêmico, particularmente em matemática e leitura. Importante, os efeitos variaram por região e tempo, com impactos mais pronunciados em áreas com maior atividade de incêndios florestais. Isso sugere que os incêndios florestais podem ter consequências de longo prazo nos resultados educacionais.

Cobelo et al.[32] investigaram o impacto dos incêndios florestais na qualidade do ar e na saúde em diferentes categorias de uso do solo no país ao longo de um período de 16 anos. Seus achados indicam que os eventos de incêndio florestal aumentaram os níveis de poluição do ar e representaram riscos substanciais à saúde, com os maiores impactos observados em áreas de cultivo de soja do bioma amazônico.

Requia et al.[33-36] publicaram uma série de estudos documentando as amplas consequências de saúde da exposição à fumaça de incêndios florestais no Brasil. Suas pesquisas vincularam a poluição do ar relacionada a incêndios florestais a um aumento nas internações hospitalares por condições respiratórias e cardiovasculares,[35] bem como resultados adversos de nascimento, como baixo peso ao nascer e prematuridade.[33,34,36]

 

“O desmatamento e as mudanças no uso do solo também estão facilitando a propagação de doenças zoonóticas, ao aproximar os humanos dos reservatórios de doenças na vida silvestre.”

 

Uma análise de séries temporais a nível nacional no Brasil revelou que a exposição à poluição por partículas finas (PM2,5) relacionada com incêndios florestais está associada a um aumento significativo das internações hospitalares, especialmente por doenças respiratórias. Um aumento de 10 μg/m3 na concentração de PM2,5 gerado por incêndios florestais foi associado a um aumento de 1,65% nas admissões hospitalares por todas as causas e a um aumento de 5,09% nas admissões respiratórias nos 0-1 dias seguintes. Os efeitos foram mais pronunciados nos grupos vulneráveis, como as crianças com menos de 4 anos (aumento de 4,88%) e os idosos com mais de 80 anos (aumento de 3,7%). O estudo estimou que mais de meio por cento das admissões hospitalares por todas as causas, ou seja, 35 casos por 100 000 pessoas por ano, eram atribuíveis à exposição a fumaça dos incêndios florestais, com os maiores impactos nas regiões norte, sul e centro-oeste. Essas descobertas ressaltam o ônus substancial para a saúde pública da poluição causada por incêndios florestais no Brasil e a necessidade de intervenções direcionadas para proteger as populações em risco.[37]

Um novo estudo retrospectivo de âmbito nacional no Brasil concluiu que a exposição a partículas finas relacionadas com incêndios florestais (PM2,5) estava associada a riscos de mortalidade por câncer significativamente mais elevados em comparação com a poluição PM2,5 não relacionada com incêndios florestais. Um aumento de 1 μg/m³ nas PM2,5 relacionadas com os incêndios florestais foi associado a um aumento de 2% na mortalidade por todos os tipos de câncer, um efeito superior ao impacto de um aumento semelhante nas PM2,5 não relacionadas com os incêndios florestais. O estudo identificou especificamente riscos elevados de câncer de nasofaringe, esófago, estômago, fígado, pâncreas, pulmão e bexiga. Os autores salientam que diante do um aumento de incêndios florestais em grande escala nos últimos anos na região amazônica, deve-se considerar o câncer como uma consequência importante para a saúde pública ao avaliar os impactos dos incêndios florestais e de implementar políticas e intervenções para mitigar esta ameaça crescente no Brasil.[38]

Em outro estudo de âmbito nacional realizado no Brasil, concluiu-se que a exposição a curto prazo a partículas finas (PM2,5) provenientes de incêndios florestais estava associada a aumentos significativos dos riscos de mortalidade. Um aumento de 1 μg/m³ nas PM2,5 relacionadas com incêndios florestais foi associado a um aumento de 2% na mortalidade por todas as causas, um aumento de 3% na mortalidade cardiovascular e um aumento de 5% na mortalidade respiratória, com efeitos mais fortes observados nas mulheres e nos adultos com mais de 60 anos. O estudo estimou que 130 273 mortes entre 2000 e 2016, ou 7 663 por ano, poderiam ser atribuídas à exposição a fumaça de incêndios florestais. Esses resultados, baseados em uma análise robusta de dados de séries temporais nacionais, fornecem fortes evidências epidemiológicas das consequências agudas para a saúde pública da fumaça de queimadas no Brasil. Os autores enfatizam a necessidade de intervenções de saúde pública e de planejamento de emergência para mitigar a crescente ameaça dos incêndios florestais provocados pelas alterações climáticas, especialmente para as populações vulneráveis.[39]

O relatório do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), do Instituto de Estudos de Políticas de Saúde (IEPS) e da Human Rights Watch estima que, em 2019, 2195 internações por doenças respiratórias foram atribuídas a incêndios relacionados ao desmatamento na Amazônia brasileira. O relatório afirma que essas hospitalizações representaram apenas uma fração do impacto total na saúde, e que os custos públicos totais associados a essas hospitalizações foram estimados em R$ 5,64 milhões (aproximadamente US$ 1,4 milhão).[40]

 

Considerações finais

Os impactos interligados dos incêndios florestais induzidos pelas mudanças climáticas no ambiente, na saúde e no tecido socioeconômico do Brasil destacam a necessidade urgente de intervenções multifacetadas. À medida que as temperaturas aumentam e os eventos climáticos extremos se tornam mais frequentes, o país enfrenta riscos crescentes de incêndios florestais, exacerbando a poluição do ar e apresentando significativos riscos à saúde, especialmente para populações vulneráveis. A evidência apresentada destaca não apenas os impactos diretos na saúde da fumaça dos incêndios florestais, incluindo condições respiratórias e cardiovasculares, mas também consequências mais amplas, como efeitos adversos no desempenho acadêmico e nos resultados de nascimentos.

 

“Políticas destinadas a reduzir as emissões de gases de efeito estufa e promover a resiliência em comunidades vulneráveis aos impactos climáticos são essenciais para a sustentabilidade ambiental e de saúde pública.”

 

Abordar esses desafios requer esforços coordenados em várias frentes. Estratégias eficazes de manejo de incêndios florestais devem ser combinadas com o fortalecimento da aplicação das regulamentações de desmatamento e práticas sustentáveis de uso da terra. Além disso, intervenções públicas direcionadas são cruciais para mitigar os impactos agudos na saúde da fumaça dos incêndios florestais, especialmente para crianças, idosos e outros grupos em situação de risco. Ainda, políticas destinadas a reduzir as emissões de gases de efeito estufa e promover a resiliência em comunidades vulneráveis aos impactos climáticos são essenciais para a sustentabilidade ambiental e de saúde pública a longo prazo.

Ademais, a pesquisa científica contínua e a formulação de políticas públicas baseadas em evidências serão fundamentais para se adaptar e mitigar as ameaças crescentes causadas pelos incêndios florestais induzidos pelas mudanças climáticas no Brasil. Ao integrar o conhecimento científico com medidas políticas proativas e engajamento comunitário, o Brasil pode buscar um futuro onde tanto a integridade ambiental quanto a saúde pública sejam protegidas contra os desafios crescentes do nosso clima em mudança.

 

Agradecimentos

MMV agradece a bolsa de produtividade em pesquisa CNPq # 311576/2022-2

 

Conflitos de Interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse

 

Capa. Efeitos das mudanças climáticas impactam na saúde e no bem-estar da população, especialmente dos mais vulneráveis
(Foto: Prevfogo/Ibama/MMA/ISA. Reprodução)
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Mariana Matera Veras é pesquisadora científica do Estado de São Paulo (PqC VI) e chefe responsável pelo Laboratório de Patologia Ambiental e Experimental (LIM05), Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo (USP).
Paulo Hilário Nascimento Saldiva é professor do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e membro titular da Academia Nacional de Medicina e da Academia Brasileira de Ciências. É coordenador do Instituto Nacional de Análise Integrada de Risco Ambiental do CNPq e do Núcleo de Pesquisa em Autópsia e Imagenologia (NUPAI-FMUSP).

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