Confira entrevista com Marina Hirota, professora do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Matemática por formação, cientista por vocação e interdisciplinar por natureza, Marina Hirota é uma das pesquisadoras brasileiras que mais se destacam no estudo das interações entre clima, vegetação e dinâmica ecológica. Graduada em Matemática Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ela iniciou sua trajetória acadêmica com um mestrado em Engenharia Elétrica, mas foi no doutorado em Meteorologia, realizado no CPTEC-INPE, que começou a aprofundar o olhar sobre os sistemas terrestres. Desde então, sua carreira tomou rumos cada vez mais conectados com os grandes desafios socioambientais do nosso tempo. Durante o pós-doutorado na Universidade de Wageningen, na Holanda, Marina passou a investigar os chamados tipping points — pontos de inflexão ecológicos — em biomas tropicais como a Amazônia e o Cerrado, buscando entender os limites críticos de resiliência desses sistemas. “Mesmo que o desmatamento parasse hoje, o sistema amazônico ainda continuaria mudando por inércia”, explica. Hoje, como professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e integrante do Group for Interdisciplinary Environmental Studies (IpES), ela combina ferramentas da matemática, física, ecologia e antropologia para mapear vulnerabilidades da floresta, desenvolver modelos computacionais e repensar os caminhos da ciência diante da complexidade das mudanças climáticas. Nesta entrevista à Ciência & Cultura, Marina Hirota fala sobre sua trajetória híbrida, os sinais de alerta nos ecossistemas tropicais, a urgência de compreender os sistemas complexos e a importância de romper as fronteiras entre disciplinas — e entre ciência e sociedade. “Não existem caixas rígidas entre física e ecologia. Está tudo conectado — e as membranas entre essas áreas são muito permeáveis”, defende. Confira!
Ciência & Cultura – Sua carreira une duas áreas aparentemente distantes: Física e Ecologia. Como essa interdisciplinaridade moldou sua visão sobre os estudos de mudanças climáticas e sistemas complexos?
Marina Hirota – A primeira coisa importante é que sou, na verdade, matemática. Dou aulas de física porque estou no departamento de Física, mas atuo principalmente no curso de Meteorologia — foi aí que comecei a me aproximar das questões do clima e das mudanças climáticas. A Ecologia veio depois, no doutorado. Naquele momento, eu sentia a necessidade de entender melhor a dinâmica ecológica para interpretar os resultados dos modelos que eu usava na tese. Muitos deles me pareciam pouco confiáveis, então resolvi ir a campo, aprender Ecologia com os próprios ecossistemas, observando diretamente.
Essa trajetória não foi exatamente planejada. As coisas foram acontecendo e fui sendo levada por elas. E, sinceramente, não vejo Física e Ecologia como áreas distantes. Pelo contrário: vejo uma profunda interconexão entre elas. Muitas das relações que existem na natureza podem ser explicadas pela Física, embora nos trópicos essas relações se tornem mais complexas e heterogêneas — as chamadas “leis universais” nem sempre se aplicam. No campo, percebemos isso com clareza.
Para mim, os limites entre disciplinas são muito permeáveis. Não existem “caixas” rígidas: o conhecimento circula, se mistura. Acho que essa perspectiva integrada faz parte da minha personalidade. Tenho uma formação ampla, conheço um pouco de várias áreas — solos, geologia, clima, ecologia — e estou sempre aprendendo mais, inclusive agora com antropólogos e arqueólogos. Essa visão integrada permite estabelecer conexões e pontes entre campos que, à primeira vista, parecem separados.
Ao mesmo tempo, essa postura vem com a consciência da ignorância: estar sempre aprendendo, escutando, expandindo. Isso exige humildade, mas também permite ver o mundo de forma menos fragmentada e mais sistêmica — o que, nas discussões científicas, pode ser uma enorme vantagem.
“A Amazônia continua sendo floresta, mas já é uma floresta com outra composição — que transpira, troca calor e interage com a atmosfera de maneira diferente.”
C&C – Você trabalha com ecossistemas críticos para o clima global, como florestas tropicais e savanas. Quais são os principais sinais de alerta que sua pesquisa já identificou sobre o impacto das mudanças climáticas nesses biomas?
MH – Quando falamos em florestas tropicais, especialmente na Amazônia, há sinais muito claros de que o clima está mudando. Não se trata mais de exceções: os extremos climáticos se intensificaram e o “normal” já mudou. Em diversas regiões da Amazônia, há registros de eventos de mortalidade de árvores que não víamos antes. A estação seca está ficando mais prolongada, e o início da estação chuvosa está cada vez mais atrasado — já há um deslocamento de 15 a 30 dias, e isso continua aumentando.
A média de chuvas tem diminuído em grande parte da bacia, com exceção do noroeste, e as temperaturas estão muito elevadas. Eventos extremos como os El Niños de 2014-2016 e os mais recentes (2023-2025) têm sido mais prolongados e intensos, com impactos significativos na vegetação, inclusive na fenologia das árvores (o ciclo de troca de folhas).
Além disso, em áreas sem desmatamento, estamos observando mudanças na composição da floresta. Espécies mais adaptadas à seca estão se estabelecendo com mais frequência, enquanto espécies típicas de ambientes mais úmidos têm apresentado maiores taxas de mortalidade. Ou seja, a floresta permanece, mas com uma nova composição — o que afeta diretamente as trocas de energia e de água com a atmosfera.
Isso sem contar os impactos das ações humanas: desmatamento, queimadas, degradação. Tudo isso altera a fisionomia da floresta e intensifica os desequilíbrios. Esses são alguns dos sinais mais evidentes que temos observado em campo.
C&C – Como pesquisadora que estuda pontos de inflexão (tipping points) ecológicos, como você explica esse conceito para o público leigo? E por que é tão urgente entender esses limiares no contexto brasileiro?
MH – Eu prefiro usar o termo “ponto de inflexão” mesmo, porque “ponto de não retorno” soa muito alarmista. Ainda estamos tentando entender como esses pontos ocorrem, porque envolvem uma combinação de variáveis: mudanças climáticas, atividades humanas diretas e indiretas.
A ideia central é que os sistemas ecológicos, como a floresta amazônica, são sistemas dinâmicos e complexos. Isso significa que sua resposta a perturbações não é linear. Um pequeno desmatamento pode ter um impacto sutil, mas há um ponto a partir do qual a resposta do sistema se acelera — mesmo que você pare de desmatar, por exemplo.
É como jogar pedrinhas num lago: pequenas ondulações vão se formando, mas chega um momento em que o sistema entra em outra configuração. E não adianta parar de jogar pedrinhas: ele não volta ao que era antes de forma imediata. A floresta funciona da mesma forma. Mesmo que parássemos o desmatamento hoje, o sistema seguiria mudando por um tempo, por causa da inércia desses processos.
Além disso, a Amazônia não é uma floresta única — são várias florestas, com diferentes características. Por isso, os pontos de inflexão variam no espaço e no tempo. E o grande perigo é que, ao cruzar esses limiares, a mudança se torna autossustentada e muito mais difícil de reverter, especialmente na escala de tempo da vida humana.
Mas o foco não deveria estar apenas nos tipping points. O mais urgente é olhar para as mudanças que já estão ocorrendo e que já afetam profundamente as populações que vivem nesses territórios. A ciência deve estar a serviço dessas pessoas também.
“O ponto de inflexão é quando a velocidade da mudança se acelera, mesmo que a perturbação original cesse.”
C&C – Como mulher atuando na interface entre Física e Ciências Ambientais — áreas tradicionalmente masculinas — quais desafios você enfrentou em sua trajetória? Que conselho daria para jovens cientistas mulheres que querem seguir caminhos não convencionais na ciência?
MH – Para mim, sempre foi sobre estar entusiasmada com uma ideia. Isso me movia, me motivava a trabalhar. Talvez por isso eu não tenha sentido, no início, muitos dos desafios que outras colegas me relatavam. Eu estava muito focada no que me interessava.
O maior desafio, talvez, foi encontrar espaços institucionais onde fosse possível trabalhar de forma verdadeiramente interdisciplinar. A maioria dos programas acadêmicos é muito disciplinar, e eu não me sentia pertencente a esses ambientes. Mesmo querendo usar ferramentas da meteorologia, por exemplo, não precisava de tudo que o programa oferecia — e isso criava um desencontro.
Aqui no Brasil, esses espaços ainda são raros, embora algumas iniciativas estejam surgindo. E mesmo quando consegui um emprego em universidade pública, o caminho foi desafiador. Por isso sou muito grata à Universidade Federal de Santa Catarina, que me acolheu e permitiu que eu continuasse trabalhando no Brasil, como eu desejava.
Meu conselho para jovens mulheres que querem trilhar caminhos híbridos e não convencionais é: não se prendam à ideia de ter que dominar tudo de uma área. Estar disponível para aprender e se desapegar da ideia de “especialista em uma coisa só” é fundamental.
Quando meu nome começou a ganhar visibilidade, percebi mais claramente os desafios enfrentados pelas mulheres na ciência. Quanto mais você aparece, mais obstáculos surgem. E o desafio atual é seguir fazendo meu trabalho com o mínimo de ruído externo possível. Mas sigo motivada, e me inspiro muito em colegas como a professora Débora Menezes, do meu departamento, que é um exemplo de persistência, inovação e juventude interna.
C&C – Além da pesquisa acadêmica, você participa ativamente da divulgação científica. Por que é importante levar o debate sobre mudanças climáticas para além dos muros da universidade?
MH – Essa é a pergunta de um milhão, né? Eu diria que há dois grandes motivos. O primeiro é que precisamos compreender os mecanismos por trás das mudanças. Por exemplo: como uma árvore morre? Parece simples, mas é uma questão cheia de variáveis. E quando falamos de ecossistemas tropicais, com tanta biodiversidade, as respostas possíveis se multiplicam — porque cada espécie tem sua própria estratégia de vida, responde de maneira diferente a eventos como secas.
Essas respostas não são só biológicas. A presença humana, a diversidade biocultural, tudo isso interfere. Por isso, é essencial sair da “caixa” disciplinar e conversar com diferentes áreas — e não apenas com cientistas. É preciso dialogar com agricultores, populações locais, gestores públicos, comunidades indígenas. Entender como as pessoas vivem, por que tomam certas decisões, e como isso se relaciona com os ecossistemas.
A divulgação científica é fundamental nesse processo. Não é apenas traduzir a ciência: é criar espaços de escuta e construção conjunta de conhecimento. E, claro, promover ações em escala, que articulem saberes diversos — acadêmicos, tradicionais, técnicos — para enfrentar os desafios das mudanças climáticas de forma justa e eficaz.


