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Spix e Martius: os cientistas que mapearam o Brasil com olhos e mãos do século XIX

Em uma jornada de mais de 14 mil quilômetros entre 1817 e 1820, dois naturalistas bávaros enfrentaram o desconhecido para revelar ao mundo a biodiversidade, os povos e os biomas do Brasil.

 

Imagine cruzar o Brasil em plena década de 1810, quando não havia estradas de ferro, automóveis ou embarcações motorizadas. Enfrentar a floresta, os rios, o calor, as doenças tropicais e a vastidão do território apenas com barcos a remo, cavalos, registros feitos à mão e uma imensa curiosidade científica. Foi exatamente esse o desafio assumido pelos naturalistas Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix, protagonistas de uma das mais ambiciosas expedições científicas já realizadas no Brasil.

Entre 1817 e 1820, os dois pesquisadores bávaros percorreram mais de 14 mil quilômetros pelo interior do país — um feito colossal mesmo para os padrões atuais. A aventura, parte da chamada expedição austríaca, teve início com a chegada da arquiduquesa Leopoldina ao Brasil, vinda da Áustria para se casar com D. Pedro I. Integrando a comitiva, Martius e Spix desembarcaram no Rio de Janeiro com uma missão oficial dada pelo rei da Baviera: explorar cientificamente o território brasileiro, registrando sua flora, fauna, geografia e culturas humanas.


Figura 1. Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix
(Divulgação)

 

Na bagagem, levavam instrumentos rudimentares, cadernos de anotações, talento artístico e uma inquietação científica que os guiaria por estados como São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas. Em suas andanças, enfrentaram desde a mata fechada da Serra da Mantiqueira até os rios caudalosos da Amazônia. E tudo o que viam, ouviam e tocavam era transformado em registros meticulosos: textos descritivos, ilustrações minuciosas e coletas sistemáticas.

O resultado dessa jornada é assombroso. Estima-se que a dupla tenha coletado milhares de espécimes e catalogado mais de 3 mil espécies animais e vegetais — muitas delas descritas pela primeira vez. A famosa ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), por exemplo, ganhou esse nome em homenagem a Spix, seu descobridor. Mas o trabalho não se limitou à natureza: os naturalistas também se dedicaram a estudar os povos indígenas, seus idiomas, costumes, artefatos e modos de vida, demonstrando uma curiosidade e um respeito pouco comuns na época.

Os frutos dessa expedição deram origem a obras monumentais. O relato da viagem foi publicado em três volumes acompanhados de um atlas ilustrado, lançados na Europa a partir de 1823. Spix ainda publicou mais nove volumes sobre a fauna brasileira antes de falecer, prematuramente, em 1826. Já Martius continuou seu trabalho por décadas: sua obra-prima, Flora Brasiliensis, começou a ser publicada em 1840 e só foi concluída depois de sua morte, com 15 volumes e 40 fascículos que reúnem mais de 22 mil espécies vegetais.

 

“Estima-se que a dupla tenha coletado milhares de espécimes e catalogado mais de 3 mil espécies animais e vegetais.”

 

Mais do que um feito isolado, a jornada de Spix e Martius foi parte de um movimento maior no século XIX, em que cientistas e artistas europeus se lançavam ao “Novo Mundo” para estudá-lo e divulgá-lo no Velho Continente. Mas poucos o fizeram com tanta profundidade, amplitude e espírito científico. Seus trabalhos lançaram as bases para a divisão dos biomas brasileiros como conhecemos hoje e permanecem, dois séculos depois, como referência para botânicos, zoólogos, historiadores e antropólogos.

 

O novo mundo

A influência dos estudos de Spix e Martius foi tamanha que extrapolou os limites do campo científico, alcançando inclusive a literatura alemã, em especial a obra de Johann Wolfgang von Goethe. Fascinado pelos estudos botânicos, o poeta manteve correspondência com Martius e chegou a encontrá-lo algumas vezes após seu retorno do Brasil. Há fortes indícios de que Goethe tenha consultado a Flora Brasiliensis enquanto escrevia a segunda parte de Fausto.

Mas a troca não foi unilateral. Assim como Goethe se inspirou na obra científica de Martius, este também se valeu da produção literária do poeta para refinar sua própria escrita. Martius leu A Metamorfose das Plantas, publicada por Goethe em 1790 — obra que revela o lado cientista do autor — e também Fausto I. Há registros de que Martius compôs poemas sobre os lugares que visitou no Brasil, o que evidencia a influência mútua entre ciência e literatura.

O Brasil, que até então era visto por muitos europeus como exótico e primitivo — uma visão herdada de relatos como os de Hans Staden no século XVI, marcados por imagens de canibalismo e por uma estereotipação da população indígena — passou, no século XIX, a ser representado sob uma ótica mais científica. Essa transformação, no entanto, não eliminou por completo os estigmas anteriores; eles foram ressignificados. O país passou a ser valorizado, sobretudo, pela diversidade natural que abriga.


Figura 2. Alsophila armata e Didymochaena sinuosa
(Fonte: Martius, 1828-34. Reprodução)

 

Os naturalistas alemães desempenharam um papel fundamental na difusão dessa nova imagem do Brasil, sem abrir mão, contudo, de certo lirismo e ficcionalidade. Em suas descrições, Martius chega a evocar o universo dantesco como recurso comparativo. O primeiro volume da Flora Brasiliensis é exemplar dessa tendência: nele, Martius oferece uma visão panorâmica de várias regiões do Brasil — esboçando, inclusive, o que viria a ser a divisão em cinco biomas — e adota uma linguagem acessível, reduzindo o uso de jargões científicos para alcançar também leitores não especializados.

Até mesmo as ilustrações da obra tinham um papel que ia além do registro visual da vegetação. Elas buscavam representar a integração entre plantas, animais, clima e, também, as populações nativas. As litogravuras de Flora Brasiliensis documentavam não apenas dados técnicos, mas contavam histórias sobre os lugares retratados, tecendo relações entre o meio ambiente e seus habitantes.

Martius e Spix catalogaram mais de 22 mil espécies de plantas, o que corresponde, segundo especialistas, a quase metade de toda a flora brasileira conhecida atualmente. Seus estudos foram tão abrangentes que estabeleceram as bases para a divisão do território brasileiro em cinco grandes biomas: Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga e Pampa.

 

“A expedição dos dois naturalistas resultou em importantes obras científicas e também em expressivas produções artísticas.”

 

A expedição dos dois naturalistas resultou em importantes obras científicas e também em expressivas produções artísticas. A Reise in Brasilien, organizada por Martius e Spix, constitui um dos mais relevantes relatos de viagem sobre o Brasil. Publicada em três volumes (1823, 1828 e 1831), foi fruto de quase quatro anos de expedição, durante os quais a dupla percorreu cerca de 10 mil quilômetros pelo interior do país. O trajeto teve início no Rio de Janeiro e passou por São Paulo e Minas Gerais, subindo o rio São Francisco até os limites de Goiás. Em seguida, seguiram para a Bahia, Pernambuco, Piauí e Maranhão, encerrando a jornada em Santarém, após passarem por Belém do Pará.

Outra obra monumental oriunda dessa viagem foi a Flora Brasiliensis (1840–1906), editada por Martius, August Wilhelm Eichler e Ignatz Urban. Patrocinada por três monarcas — o Imperador do Brasil, o Rei da Baviera e o Imperador da Áustria — contou com a colaboração de 65 especialistas de diversos países. Composta por 15 volumes, 40 tomos e 140 fascículos, descreveu 22.767 espécies, das quais 19.698 eram nativas e 5.689 desconhecidas até então pela ciência. É, até hoje, a obra mais completa já realizada sobre a flora brasileira e serviu como base para a sistematização da botânica moderna.

 

Ciência, história e ficção

A jornada de Spix e Martius pelo Brasil revela que a ciência, sobretudo em contextos tão desconhecidos como o da América tropical no século XIX, não se faz apenas de dados e classificações. É também feita de narrativas, impressões e interpretações. Essa abordagem se reflete também na forma como os viajantes se interessaram não apenas pela flora e pela fauna, mas pelas línguas, culturas, mitos e histórias das populações locais — ainda que filtradas por um olhar eurocêntrico comum à época, que via os indígenas e africanos como inferiores. Martius, no entanto, revisita essa perspectiva anos depois, em Frei Apollonio, romance em que um personagem europeu abandona seus preconceitos ao conhecer mais profundamente o Brasil. A mudança de visão demonstra não só uma abertura à alteridade, mas também um compromisso ético com a ciência, que em Martius se alia à admiração pela diversidade da vida em todas as suas formas.

Hoje, suas obras seguem sendo referência mundial — não apenas pelas riquíssimas contribuições à botânica, mas também pela intersecção entre ciência, cultura e história. Ao disponibilizarmos parte desse acervo, que inclui textos e imagens sobre fauna, flora, política, medicina e muito mais, tornamos acessível uma herança que ultrapassa fronteiras disciplinares, inspirando novas leituras e descobertas.

 

Capa. Martius, 1823-53. Reprodução
Blog Ciencia e Cultura

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