Montevidéu, 4 de novembro de 1822. Acompanhando o crescimento da imprensa de todo o mundo luso-americano, os recentes impressos da província Cisplatina eram empregados em ataques e polêmicas. Diante da situação inédita, em um panfleto anônimo, El conciliador, era revelada uma preocupação: saber o que seria do território envolvido em conflitos, mudanças de governo e soberania há mais de uma década. Desse modo, em três pontos, era sugerido um debate que paulatinamente também tomava às ruas montevideanas: “O governo do Rio de Janeiro, sendo independente de Portugal, deve continuar a ocupação desta província?”, “esta província pode ser mais feliz estando incorporado ao Brasil ou governando-se a si mesma?”, “esta província pode ser mais feliz em um estado particular ou entrando em uma aliança com Buenos Aires?”. Tratava-se de um contexto de fluidez das identidades e de pluralidade de alternativas políticas em jogo que ao serem reveladas apontam para os conflitos e as negociações que pautaram a efervescente política da região e que serão analisados neste trabalho primeiro na criação da província Cisplatina, nos efeitos da independência do Brasil e nos confrontos da Guerra da Cisplatina.
Negociações armadas: a invasão portuguesa e a criação da província Cisplatina
Em agosto de 1816, sob o comando do Tenente-General Carlos Frederico Lecor, cerca de 12.000 soldados ordenados entre a Divisão de Voluntários Reais e as tropas luso-americanas invadiu o território da Banda Oriental (Figura 2). Em 20 de janeiro de 1817, através de acordos secretos, a cidade de Montevidéu, no Uruguai, capitulava sem a necessidade de batalha. A ação lusitana se baseou em dois argumentos: a conformação de suas possessões americanas a partir do pressuposto das “fronteiras naturais”, demarcando os seus limites do Rio Amazonas até o Rio da Prata. A ação também facilitaria o acesso aos rebanhos orientais pelos criadores rio-grandenses, auxiliando no monopólio do comércio de charque. A presença luso-americana impediria, simultaneamente, o avanço ainda mais ameaçador das ideias emancipacionistas vigentes no Rio da Prata e as fugas de escravos de posse de lusitanos em busca da alforria.
A proposta de pacificação era igualmente interessante, neste momento, para a classe dirigente de Montevidéu, que desde a fundação da cidade, mantinha sólidas ligações mercantis com o Rio de Janeiro, vínculos comerciais que remetiam ainda a Colônia do Sacramento – o enclave português em território espanhol, estrategicamente localizado na margem oposta de Buenos Aires, que oferecia para os lusitanos um canal direto aos metais preciosos que eram escoados pelo Rio da Prata – que desde o final do século XVII e estavam prejudicados em função das constantes batalhas travadas nas águas platinas. Portugal rapidamente tornou-se o principal intermediário no comércio atlântico estabelecido na província Oriental. Nos anos seguintes, buscou-se consolidar a dominação. Entre as principais medidas estava a nomeação de lideranças locais para cargos públicos, a distribuição de títulos nobiliárquicos, a partilha das terras e o casamento de oficiais lusitanos com mulheres de famílias proeminentes da sociedade montevideana. A despeito de Lecor atender a esses, um desejo em especial não poderia ser satisfeito naquele momento: a incorporação definitiva da região aos domínios portugueses. Esta possibilidade era aventada pelos dirigentes orientais desde 1817 com as tratativas secretas para a entrada dos Voluntários Reais em Montevidéu.
A Revolução do Porto (1820) altera esta situação. Com a convocação das Cortes de Lisboa para o retorno da Corte Bragantina a Europa, Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), ministro dos Negócios Estrangeiros e Guerra, antes de regressar para Portugal em abril de 1821, orientou Carlos Frederico Lecor a organizar um congresso soberano em que a população da Banda Oriental decidiria sobre o seu futuro. Ficaria a cargo dos representantes locais, livremente e sob a proteção das armas lusitanas, decidir por se ligar em definitivo ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, aderir a alguma das províncias vizinhas ou constituir-se como um Estado independente. O Congresso Cisplatino ocorreu entre os dias 15 de julho e 8 de agosto de 1821. Como principal resolução, definiu-se que a região passaria a ser oficialmente parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, sob o nome de Estado Cisplatino.
“As transformações políticas no mundo lusitano possibilitaram a efetiva criação da província Cisplatina e, portanto, a oficialização da dominação de Portugal na região.”
Ao longo dos debates foi decidido também que a incorporação teria algumas regras a serem respeitadas: o idioma espanhol, além de leis e costumes em prática, desde que compatíveis com a Constituição lusitana, seriam mantidos. Assim como a posse de boa parte dos cargos burocráticos permaneceria com os habitantes locais e os homens recrutados na província Cisplatina apenas poderiam prestar serviços militares na própria região. O segundo item votado, referia-se aos limites do novo território: o Rio Quaraí ao norte e a Lagoa Mirim e o Chuí ao sul.
Figura 1. Território da Província Cisplatina após Congresso Cisplatino (1821)(“Mapa da Região Cisplatina”, Elaboração própria. Reprodução)
As transformações políticas no mundo lusitano possibilitaram a efetiva criação da província Cisplatina e, portanto, a oficialização da dominação de Portugal na região. O resultado – a anexação oficial lusitana – não foi o esperado por Silvestre Pinheiro Ferreira, que desejava o afastamento de Portugal das questões platinas e temia causar conflitos com a Espanha. No entanto, poderia ser mais palatável do que anteriormente, em 1817, quando solicitado por parcela da elite montevideana. Afinal, possuía respaldo jurídico e representava pretensamente a vontade da população oriental, não sendo completamente desinteressante aos projetos lusitanos – especialmente de seus representantes americanos, dentre eles os criadores de gado sul rio-grandenses e os comerciantes fluminenses na nova conjuntura oferecida pelo Vintismo.
Batalhas na terra e na água: a guerra pela independência do Brasil
Ao longo do ano de 1822, a possibilidade da independência do Brasil intensificava o debate político sobre o futuro da Cisplatina. A probabilidade de ruptura entre o Brasil e Portugal também trazia incertezas com respeito ao futuro da região. Afinal, o Congresso Cisplatino foi um pacto assinado entre a população oriental e o governo lusitano, parte ainda do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Assim, um intenso debate foi aberto com o intuito de projetar alternativas frente à possibilidade da quebra desses vínculos. Antes preocupados com a pacificação e aliados ao projeto lusitano, alguns membros da elite montevideana viram na oportunidade o momento para buscar a própria independência e passaram a trabalhar pela separação da região do Império do Brasil. Entre as alternativas estavam se aproximar de Buenos Aires, arregimentar o restante da população local e, através de órgãos políticos oficiais influir sobre as decisões do governo. Questionava-se, especialmente, a forma de condução e a validade do Congresso Cisplatino, o direito brasileiro de permanecer ocupando a província e os moldes dessa eventual aliança. O que possibilitou criar um espírito de contestação na cidade de Montevidéu. No entanto, o projeto perdeu força com as negativas dos dirigentes de Buenos Aires em se indispor diplomaticamente com o Brasil.
Por outro lado, ao longo de 1822, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) e até mesmo D. Pedro (1798-1834) buscavam, através de trocas de correspondências, construir uma aliança com Carlos Frederico Lecor e, deste modo, assegurar a presença da Cisplatina dentro do projeto político brasileiro. Negociações que ganhariam ainda mais força: no dia 27 de maio chegavam ao Rio de Janeiro os três representantes eleitos pela Cisplatina para compor as Cortes e estavam a caminho de Lisboa. Por ordem de Lecor, Lucas José Obes permaneceu na cidade e em uma série de encontros privados com Bonifácio e com D. Pedro buscou garantir a ligação da Cisplatina com o Império do Brasil, ainda não declarado independente.
A notícia da permanência de Obes no Rio de Janeiro e, sobretudo, as motivações da estadia caíram como uma bomba em Montevidéu. Um Conselho Militar emitiu uma proclamação afirmando que as ações na capital fluminense não passaram pela consulta das tropas em Montevidéu e que desconheciam os reais interesses do representante da província ao abandonar a comitiva que iria até Lisboa. Os Voluntários Reais que já haviam realizado um motim na virada de dezembro de 1821 para janeiro de 1822 foram novamente às ruas. Como presidente do Conselho Militar, Carlos Frederico Lecor aparecia como principal signatário da proclamação, seguido do novo vice, Álvaro da Costa (1789-1835). No entanto, o clima era de discordância entre os dois e de afastamento cada vez mais claro entre os comandantes militares favoráveis a Portugal e Lecor, próximo do projeto brasileiro.
No dia 10 de setembro de 1822, Carlos Frederico Lecor declarava sua adesão a D. Pedro e abandonava Montevidéu com direção a São José e, posteriormente, a Canelones onde foi organizado um acampamento que recebeu centenas de aliados que desertaram das fileiras portuguesas e políticos que mantinham apoio ao Brasil. Já em Montevidéu, conformava-se uma heterogênea aliança, composta por soldados portugueses, desejosos de retornar para a Europa, que recebiam o apoio de políticos montevideanos divididos entre aqueles que almejavam uma independência por completo e os que buscavam uma aliança com Buenos Aires.
O ato marcava o início dos conflitos entre as tropas ligadas ao Brasil e os Voluntários Reais. O plano brasileiro era de cercar e sufocar os Voluntários Reais dentro das muralhas da cidade de Montevidéu. Para tanto, no dia 23 de janeiro de 1823 empreendeu-se o sítio da cidade, por terra e água. Na cidade, as tropas lusitanas bem organizadas mantinham a resistência. Sem forças e sem o recebimento de mais efetivos solicitados para empreender um bloqueio sistemático por água e terra, as tropas brasileiras buscavam sufocar financeiramente Montevidéu. As tropas dentro da cidade, também não tinham força suficiente para investir contra o inimigo e dar fim ao conflito. Portanto, a guerra foi marcada pela ausência de confrontos diretos e pelas escaramuças entre os envolvidos que sempre deixavam mortos e feridos nas tropas inimigas. Outra ferramenta largamente utilizada, nesse caso pelos dois lados, foi o incentivo a deserções e mudanças de lealdade. Ambos os lados prometiam vantagens financeiras e promoções para convencer os militares a abandonar as fileiras inimigas.
A situação ganharia novos contornos no segundo semestre de 1823. Em 11 de outubro de 1823 as embarcações brasileiras conseguem o bloqueio total de Montevidéu. Os Voluntários Reais vivenciavam um isolamento duplo. Primeiro por não conseguirem estabelecer contatos diretos ou frequentes com outros espaços fora das muralhas; e, em segundo lugar, pelo encerramento dos conflitos entre lusitanos e brasileiros em outras partes do Império fato que levou à ordem de retirada dos Voluntários Reais destes espaços por D. João. A mudança de regime em Portugal também estimulava o fim dos embates e o retorno para a Europa. Diante esta situação, Álvaro da Costa demonstrava o desgaste pelo conflito e acenava com a possibilidade de negociação. O fim das hostilidades é declarado em 30 de outubro. As negociações seguiram até o dia 18 de novembro.
“A autoridade máxima da Cisplatina, oficialmente, reconheceu a independência do Brasil, proclamando e jurando fidelidade ao “Emperador constitucional del Brasil”. A última província brasileira a fazê-lo.”
Em 28 de fevereiro de 1824 as tropas portuguesas embarcaram rumo à Europa. No dia 2 de março, Carlos Frederico Lecor e os soldados do Império do Brasil entravam definitivamente em Montevidéu. Os povoados, cidades e vilas da Cisplatina em sequência enviavam suas proclamações e exaltações a D. Pedro. Em seguida, a autoridade máxima da Cisplatina, oficialmente, reconheceu a independência do Brasil, proclamando e jurando fidelidade ao “Emperador constitucional del Brasil” em 6 de maio de 1824. A última província brasileira a fazê-lo.55
Figura 2. Por muito tempo a Cisplatina ficou de fora das narrativas hegemônicas sobre a independência do Brasil e sobre a nacionalidade uruguaia, mas a região é essencial para as análises do processo que tornaram o país independente e que deram origem ao Uruguai.
(“O Juramento dos 33 Orientais”, de Juan Manuel Blanes. Reprodução)
A Guerra da Cisplatina
O reconhecimento da independência do Brasil em 1824, em grande parte por representar interesses de grupos específicos e que ainda perderiam parte de sua influência não construiu uma unidade de interesses na Cisplatina. Pelo contrário, estas questões ganhariam ainda mais peso e só seriam resolvidas em um conflito armado de proporções ainda maiores, a Guerra da Cisplatina (1825-1828). De volta à capital e ao poder, Lecor ampliou a política de privilegiar os produtores sul-rio-grandenses e comerciantes brasileiros. Em especial, o general preocupou-se em retribuir os chefes militares que permaneceram ao seu lado, na mesma medida que perseguia os comerciantes que haviam financiado ou dado apoio aos movimentos de oposição ao Brasil durante a guerra de independência.
Aproveitando-se da efervescência dos movimentos contrários à dominação brasileira, Juan Antonio Lavalleja (1784-1853) junto de outros políticos e militares – os chamados “Cavalheiros Orientais” – no dia 19 de abril de 1825, desembarcou no rio Uruguai, com o objetivo de tomar posse da província Cisplatina. Em 14 de julho de 1825, se iniciou na vila de Florida um congresso e, posteriormente, no dia 25 de agosto, foi declarada a independência da Província Oriental. No primeiro momento, os governantes das Províncias Unidas do Rio da Prata não apoiaram estes movimentos, o principal temor se dava em relação a um novo conflito na região que poderia prejudicar os interesses dos comerciantes de Buenos Aires. Porém, com as pressões dos estancieiros, principalmente os saladeiristas que sofriam com a competição dos produtores de charque do sul do Brasil, o governo buenairense acaba cedendo, declara apoio e recebe os delegados orientais no Congresso Nacional das Províncias Unidas. Com um exército de dois mil homens as tropas orientais avançaram sobre o território, ao final de 1825 apenas Colônia do Sacramento, Maldonado e Montevidéu permaneciam sob o controle brasileiro.
Como resposta, o Império do Brasil proclama guerra às Províncias Unidas do Rio da Prata no dia 10 de dezembro de 1825. A declaração oficial respaldava-se nos mesmos argumentos da intervenção de 1817 e sinalizava a importância da província Cisplatina para a consolidação da grandeza do Império do Brasil, que tinha por suas fronteiras o rio Amazonas e o rio da Prata. Nos anos seguintes, os embates seguem em território oriental e nas águas do rio da Prata. Entre as principais batalhas estão a de Juncal, por água, no dia 9 de fevereiro de 1827 e a de Passo do Rosário ou Ituzaingó, por terra. Em ambas a vitória foi das Províncias Unidas do Rio da Prata, se sobrepondo às vantagens numéricas das tropas brasileiras.
Impossibilitados política e economicamente de manter as beligerâncias, o Império do Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata sinalizam para o fim da guerra. Nas Províncias Unidas os conflitos internos entre os representantes do projeto unitário e do projeto federal minavam as forças e os cofres dos líderes políticos que poderiam estar envolvidos no conflito externo. No Brasil, a crise financeira intensificada pela guerra e a postura de D. Pedro faziam crescer o descontentamento em relação à política imperial e diminuir a sua popularidade. As negociações de paz receberam forte apoio dos políticos da Grã-Bretanha na América insatisfeitos com os efeitos da guerra na sua política comercial no Prata.
Em agosto de 1828, os representantes da Grã- Bretanha, do Brasil e das Províncias Unidas se reuniram no Rio de Janeiro a fim de tratar dos últimos entraves para o fim oficial da Guerra da Cisplatina. No dia 27 de agosto, foi assinada a Convenção Preliminar de Paz. Pelo acordo, os líderes das Províncias Unidas do Rio da Prata e do Império do Brasil declaravam o seu interesse pela criação de um Estado independente onde se localizava a Província Cisplatina. Os dois envolvidos no conflito abandonariam a área que teria uma nova constituição e receberia todo o apoio necessário para a oficialização do novo Estado. Decidiu-se ainda que a navegação no rio da Prata e seus afluentes seria livre para todos os envolvidos na guerra por quinze anos e que a assinatura final do pacto seria no dia 4 de outubro do mesmo ano em Montevidéu. Este novo Estado recebeu, em 1830, o nome de República Oriental do Uruguai.
Conclusão
É importante frisar a importância da inserção da Cisplatina dentro das análises do processo de independência do Brasil. Durante muito tempo a Cisplatina não fez parte das narrativas hegemônicas sobre a independência do Brasil, especialmente por não constar nos atuais limiteis territoriais do país e sua dificuldade de inserção na narrativa tradicional de exceção pacífica brasileira frente à América espanhola. Este trabalho buscou contribuir com a crescente e importante produção sobre a província. Assim, a compreensão dos anos de 1821 até 1828 fornece subsídios para construir uma narrativa sobre a formação do Brasil a partir dos eventos no Prata. Uma narrativa mais complexa tendo em conta a dinâmica destes espaços e os efeitos das transformações liberais de Portugal e da emancipação brasileira neste território, sobretudo, na transferência de sua posse, geralmente tomada como natural e das disputas e arranjos políticos que deram origem a um novo país.