Introdução
Apresento de forma sintética e programática os resultados de um intenso movimento político-acadêmico surgido nas últimas duas décadas – as cotas étnico-raciais e o Encontro de Saberes – que se configura como uma proposta sistemática de transformar o atual modelo de universidade estabelecido no Brasil em uma universidade aberta a novos saberes, sujeitos e epistemologias.
As universidades brasileiras foram fundadas no início do século XX, anos depois da fundação das primeiras universidades de muitos países hispano-americanos. Além de tardias, reproduziram integralmente o modelo humboldtiano de universidade moderna concebida para sociedades europeias brancas e transplantada para uma sociedade brasileira multiétnica e multirracial, porém profundamente marcada pela desigualdade socioeconômica e pelo racismo. Durante todo o século vinte, as populações negras, indígenas e dos demais povos tradicionais foram totalmente excluídas do ensino superior público. Além disso, as tradições de conhecimento, em todas as áreas – científicas, tecnológicas, humanísticas, artísticas e espirituais – preservadas e atualizadas pelas comunidades indígenas e afro-brasileiras não foram incluídas como referências teóricas ou metodológicas nos currículos dos cursos. E os mestres e mestras dessas tradições foram igualmente ignorados. Por este motivo, nosso ensino superior foi construído sob o signo de uma dupla exclusão: exclusão étnico-racial e exclusão epistêmica. Com a virada do milênio, felizmente, começamos a dar passos concretos para a realização de uma proposta integrada de refundação completa do modelo eurocêntrico e branco de universidade brasileira. Podemos construir agora um cenário em que ela seja capaz de incluir todos os grupos excluídos e com eles, todos os seus saberes excluídos. Com essa transformação, o novo modelo de universidade brasileira poderá colocar-se, finalmente, a serviço não apenas de uma elite social branca, mas de toda a sociedade brasileira, refletindo a ampla diversidade dos seus povos, classes e comunidades, e as suas respectivas tradições de conhecimento em toda a sua riqueza e complexidade. (Figura 1)
Figura 1. Durante todo o século vinte, as populações negras, indígenas e dos demais povos tradicionais foram totalmente excluídas do ensino superior público.
(Foto: Beto Monteiro/Secom UnB. Reprodução)
Cotas étnico-raciais
Dois movimentos de descolonização e transformação do espaço acadêmico surgiram na Universidade de Brasília (UnB) desde o início do milênio e daí se estenderam para as demais universidades brasileiras. O primeiro deles foi a luta pelas cotas para negros e indígenas, cujo debate iniciou-se em 1999 e sua aprovação em 2003. Após uma década de expansão das cotas por decisão autônoma das universidades, em 2012 foi sancionada a Lei 12.711 que tornou obrigatórias as cotas para negros e indígenas em todas as universidades federais.[i] Iniciou-se, então, um processo de dessegregação étnica e racial sem precedentes no nosso mundo acadêmico, com reflexos imediatos no combate ao racismo institucional e na demanda por cotas na pós-graduação (um movimento em plena ebulição) e na docência, campanha que se encontra ainda no início.[1, 2, 3]
“As tradições de conhecimento, em todas as áreas – científicas, tecnológicas, humanísticas, artísticas e espirituais – preservadas e atualizadas pelas comunidades indígenas e afro-brasileiras não foram incluídas nos currículos dos cursos.”
Se o plano de Metas para a Igualdade Étnica e Racial aprovado na UnB em 2003 concentrava-se nas cotas na graduação, necessitamos agora de um novo Plano de Metas que deverá incluir um conjunto o mais completo possível de ações afirmativas simultâneas e articuladas. Por um lado, há que garantir a efetiva implementação de cotas em todos os níveis: na graduação, na pós-graduação, na docência e na pesquisa; na permanência qualificada (material e simbólica), incluindo apoio psicopedagógico para os estudantes cotistas; nos cargos da gestão superior (diretores e pró-reitores) das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES); nos pareceristas, nas bolsas de pesquisa, nos Conselhos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e das Fundações de Apoio; nos projetos de Extensão; nos editais, incluindo temas direcionados para as comunidades indígenas e afro-brasileiras. Ou seja, negros, indígenas, quilombolas e pessoas das classes populares devem ocupar todos os espaços acadêmicos, e não apenas as aulas da graduação.
Encontro de Saberes e cotas epistêmicas
A discussão das cotas étnico-raciais logo suscitou o debate acerca de uma segunda demanda. Constatou-se que não seria satisfatório implementar ações afirmativas para a inclusão de jovens negros e indígenas sem, paralelamente, mudar o currículo eurocêntrico que se generalizou em todos os cursos e carreiras acadêmicas. Podemos denominar, então, de cotas epistêmicas o atual movimento do Encontro de Saberes, que promove a inclusão dos mestres e mestras dos nossos povos tradicionais – indígenas, quilombolas, as comunidades afro-brasileiras e as culturas populares tradicionais – como professores das universidades em matérias regulares, com a mesma dignidade dos docentes doutores. As cotas epistêmicas são um correlato, no campo do saber diverso e plural, da luta pelas cotas étnico-raciais.
Com a consolidação do Encontro de Saberes, passamos a operar com uma dupla inclusão: a dos jovens negros, indígenas e quilombolas para que tenham o direito às vagas no ensino superior público; e a inclusão dos mestres e mestras das comunidades dos cotistas – negros, indígenas, quilombolas – para que tenham o direito de ensinar os seus saberes tradicionais a todos os estudantes universitários. Ambos movimentos de inclusão configuram uma experiência histórica específica da academia no Brasil e são a partir deles (entre outras ações e iniciativas, obviamente) que podemos dialogar com movimentos e projetos descolonizadores desenvolvidos em outros países e continentes.
A partir da experiência inicial na UnB em 2010, o movimento do Encontro de Saberes já está presente em 18 universidades brasileiras com disciplinas oferecidas. Além da UnB, estão a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal do Cariri (UFCA), Universidade Estadual do Ceará (UECE), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal de Roraima (UFRR), Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Universidade Federal do Tocantins (UFT) e Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG). Fora do Brasil, o projeto já foi instalado na Pontifícia Universidade Javeriana de Bogotá e na Universidade da Música de Viena. Até agora já foram convidados mais de 220 mestres e mestras para atuar como docentes universitários, em parceria com 120 professores e professoras, cobrindo inúmeras áreas de saberes tradicionais (em geral marcados pela polimatia) em diálogo com os saberes acadêmicos, estes marcadamente disciplinares.[ii]
Para além do quadro amplo da diversidade das expressões culturais tradicionais, desde a primeira edição do Encontro de Saberes trouxemos mestres de arquitetura e engenharia indígena, mestres especialistas em reflorestamento, mestras da área da saúde como especialistas em plantas medicinais. Logo outras mestrias que extravasam as expressões culturais começaram a aparecer, como mateiros, marisqueiros, agroecólogos, mestres de pesca artesanal, de construção de barcos, artesãos do barro, da madeira, da palha, das sementes, e outros materiais, etc. Para o Encontro de Saberes, portanto, o conceito de mestre e mestra abarca os especialistas em toda a gama de saberes consolidados de todos os povos tradicionais (afro-brasileiros, indígenas e quilombolas) e de todas as agrupações das culturas populares tradicionais. Podemos dizer, com razoável segurança, que o diálogo interepistêmico é passível de ser iniciado na maioria das áreas de conhecimento acadêmico estabelecido: nas ciências, tecnologias, saúde e cura, cosmologias, oralitura, artes e espiritualidade. [4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13] (Figura 2)
Figura 2. Epistemes ocidentais, dos povos indígenas e afro-diaspóricas
(Imagem elaborada pelo autor do artigo)
Notório Saber
Uma vez iniciada a revolução epistêmica com a chegada dos mestres e mestras indígenas e afro-brasileiros para ensinar nas universidades, faz-se necessário mudanças institucionais para legitimar plenamente seu estatuto docente, visto que a maioria deles possui apenas a escola básica, ou em muitos casos nenhum letramento.
Um dos meios mais eficazes e efetivos de reconhecimento e contratação daqueles que não são portadores de diploma de mestrado e doutorado é a outorga do título de Notório Saber, quando um Conselho Universitário admite como docentes aqueles mestres tradicionais cujo saber seja equivalente ao de um doutor. Essa equivalência é atribuída após a avaliação de candidaturas, apresentação de um memorial, análogo ao que os professores apresentam em concursos de titularidade.[iii]
Em 2016, a UECE concedeu o título de Notório Saber a 58 mestres; em 2022, a UFMG concedeu outorga de Notório Saber a 12 mestres; e outras universidades, como a UFRGS, a UFRJ, a UNILAB, a UFSB, a UNILA, a UFPB e a UNIFESP já realizaram mudanças regimentais para titular os mestres dos seus cursos de Encontro de Saberes. O que está em marcha, com a institucionalização do Notório Saber para mestres e mestras, é uma ruptura profunda e definitiva com o modelo colonial de legitimação do saber acadêmico.[9]
“Não seria satisfatório implementar ações afirmativas para a inclusão de jovens negros e indígenas sem, paralelamente, mudar o currículo eurocêntrico que se generalizou em todos os cursos e carreiras acadêmicas.”
Além de ministrarem disciplinas, cada vez mais vemos mestres e mestras atuando em grupos de pesquisa, participando de bancas, palestras, seminários e co-orientações. A proposta do projeto é baseada na construção de perspectivas transdisciplinares, o que não é corrente nas grades curriculares e nos procedimentos dos diversos cursos das nossas universidades eurocêntricas e de formato humboldtiano. A construção de cada encontro, em cada disciplina e atividade acadêmica, demanda um esforço do professor em romper com as suas fronteiras disciplinares de modo a construir uma interlocução produtiva com o mestre como seu parceiro de curso e com os estudantes. Os mestres e mestras que participam do projeto são, em geral, polímatos – detêm conhecimentos em diferentes áreas do saber – e atuam junto com professores parceiros que em geral detêm conhecimentos acadêmicos especializados em áreas com fronteiras bem demarcadas.
Com a expansão do movimento, cada edição do Encontro de Saberes coloca para os professores parceiros o desafio de construir a interface dos saberes tradicionais com algumas áreas dos conhecimentos acadêmicos. E o desafio posto à academia é superar o nível disciplinar e alcançar ou, ao menos, vislumbrar a perspectiva inter/transdisciplinar e polímata do mestre, que mesmo na condição de professor substituto ou visitante – portanto, temporário – coloca-se como referência para um rearranjo epistêmico do funcionamento do nosso ensino superior.[6] A polimatia dos mestres produzida pelo Encontro de Saberes pode ser um modelo para a consolidação de um paradigma transdisciplinar próprio das universidades brasileiras.[iv] [5] (Figura 3)
Figura 3. Transdisciplinaridade inspirada na polimatia dos mestres e mestras
(Imagem elaborada pelo autor do artigo)
Por exemplo, um mestre como Maniwa Kamayurá, que participou das primeiras edições do projeto na UnB, transita por diversas áreas do saber de um modo contínuo e integrado. Ele é um notório conhecedor do modo de construção das casas tradicionais xinguanas; mas não é apenas o que chamamos de arquiteto, pois além de projetá-la, ele constrói a maloca; e é, portanto, também um engenheiro. Quando ensinou na UnB, o seu professor parceiro foi da área de Arquitetura, mas poderia ter sido um professor da área de Engenharia. O mestre narra mitos que vinculam as casas xinguanas à cosmologia dos povos do Xingu – e, assim, seu módulo poderia ser desenvolvido com um professor parceiro da Literatura. Ele também desenha, tendo um inquestionável vínculo com as nossas Artes Visuais. Além disso, Maniwa é um reconhecido pajé, conhecedor de plantas e práticas de promoção da saúde e cura, o que o colocaria como docente da Faculdade de Saúde e ou do Departamento de Botânica. E ainda mais é um músico, com pleno domínio das flautas xinguanas. Sua polimatia se baseia no poder de dialogar com as diferentes áreas do nosso estilo fragmentado de conhecimento científico e artístico cultivado nas universidades; e desafia-nos concretamente ao exercício da reintegração ou religação dos saberes em uma perspectiva transdisciplinar. Articulando cotas étnico-raciais, cotas epistêmicas, Encontro de Saberes, Notório Saber, polimatia e transdisciplinaridade, podemos agora formular um modelo de refundação da universidade brasileira. (Figura 4)
Figura 4. Maniwa Kamayurá, arquiteto tradicional e pajé, representante dos povos indígenas do Alto Xingu, participou das primeiras edições do projeto Encontro de Saberes na UnB.
(Foto: Pedro França/MinC. Reprodução)
Rearranjos institucionais para o novo modelo de universidade
Uma universidade aberta a novos saberes, sujeitos e epistemologias deve passar, necessariamente, por um rearranjo radical do modelo humboldtiano vigente, o qual é funcional apenas para a reprodução do mesmo tipo de saber eurocêntrico, da mesma epistemologia de base cartesiana-galileana-newtoniana ainda predominante; e vocacionada para receber e formar apenas os mesmos sujeitos brancos de classe média ou alta a quem serviu durante todo o século passado. Colocado em termos descolonizadores gerais, esse modelo vigente pode ser descrito como monoepistêmico, monocultural, monolíngue e monorracial. Com a refundação institucional baseada na dupla inclusão (étnico-racial e epistêmica), poderemos chegar a um modelo original de universidade brasileira: multicultural, plurilingue, multiétnica, multirracial, omniinclusiva, transdisciplinar e pluriepistêmica.
“A passagem de um padrão curricular monoepistêmico para um currículo pluriepistêmico será um processo a ser construído coletivamente por representantes de toda a diversidade étnico-racial e epistêmica do país.”
Eis algumas das transformações institucionais, políticas e epistêmicas necessárias para essa refundação geral:
- Multilinguismo. O ensino deve superar o monolinguismo secular do português como única língua acadêmica e incluir as línguas indígenas. A universidade deve refletir, baseada nas especificidades étnicas de cada região, a diversidade linguística do país e assumir-se como poliglota nacional, e não apenas internacional.
- Letramento e oralitura. O ensino deve alternar ou combinar conteúdos, abordagens, métodos e teorias advindas da tradição acadêmica letrada com os seus equivalentes das tradições orais.
- Os estudantes devem ser negros, brancos, indígenas e pertencentes às demais minorias e povos tradicionais, com todos os grupos representados na mesma proporção de sua presença demográfica no país.
- Os protocolos pedagógicos devem ser variados e sempre sensíveis à realidade de cada disciplina ou campo do saber. O Encontro de Saberes promove uma diversidade de novas pedagogias, baseadas na transmissão oral, porém distintas de acordo com os mestres e as mestras. A diversidade pedagógica combinada com a diversidade epistêmica (ambas influenciadas pela diversidade linguística) exigirá novos procedimentos de avaliação, que não serão mais homogêneos nem unificados.
- Os professores devem ser de dois tipos:
a) os portadores de diploma de doutorado que realizaram estudos formais em universidades ocidentalizadas – incluindo doutores negros e indígenas que se formaram segundo o padrão eurocêntrico estabelecido nos Programas de Pós-Graduação;
b) os mestres e mestras dos povos tradicionais, mesmo que não tenham diploma de ensino superior ou de qualquer nível escolar. Assim, a docência também deve refletir (como a discência) a diversidade étnica, racial e epistêmica da sociedade brasileira. - Não deve haver exclusão nem hierarquia prévia entre os saberes ensinados e pesquisados, seja por suas origens epistêmicas, étnicas, raciais, geográficas, por seu suporte oral ou escrito, ou por qualquer outra diferença.
- O currículo deve refletir a diversidade epistêmica completa da sociedade, em geral sensível à diversidade epistêmica da região onde a universidade está instalada. Em outros termos, a pretensão de conhecimento universal passa necessariamente pelo enraizamento desse conhecimento na região onde a universidade se encontra instalada.
- A autoridade relativa de cada saber será construída como resultado dos diálogos interepistêmicos construídos nesse ambiente radicalmente plural. O Encontro de Saberes se apresenta como uma referência para esses diálogos.
A passagem de um padrão curricular monoepistêmico para um currículo pluriepistêmico será um processo a ser construído coletivamente por representantes de toda a diversidade étnico-racial e epistêmica do país. Cada curso, faculdade, instituto e centro acadêmico organizará o novo currículo articulando de um modo viável e consistente os três troncos epistêmicos fundantes: o ocidental, o indígena e o afro-diaspórico. Por exemplo, a Faculdade de Arquitetura deverá compor um novo currículo que integre Arquitetura Ocidental, Arquitetura Indígena e Arquitetura Afro-Brasileira. A Faculdade de Saúde deverá integrar Saúde Ocidental, Saúde Indígena e Saúde Afro-Brasileira; e num grau mais abstrato de integração epistêmica, essa unidade acadêmica de Saúde deve integrar a fragmentação atual entre Medicina (ou Saúde), Psicologia e Botânica (para incorporar a ciência das plantas medicinais). Se a meta da universidade é colocar os saberes da saúde a serviço da sociedade, não faz sentido separar a busca do equilíbrio físico do equilíbrio psíquico e do equilíbrio espiritual. (Figura 5)
Figura 5. Modelo dos três troncos
(Imagem elaborada pelo autor do artigo)
Ilustramos brevemente esse novo modelo de uma universidade pluriepistêmica e transdisciplinar. Os três troncos são apresentados de uma forma esquemática, resumida e simplificada. Os diferentes espaços no interior do nó borromeano refletirão os novos arranjos transdisciplinares próprios de cada reformulação curricular. A episteme goetheana, por exemplo, variante das epistemologias do cosmos vivo, poderá localizar-se na intersecção central dos três troncos.[v] [4, 7] Por outro lado, os troncos indígenas e os troncos afro-diaspóricos ainda carecem de uma distinção mais precisa, e parte da tarefa da refundação será mapear com precisão a diversidade epistêmica indígena e afro-diaspórica no Brasil.[7]