Ninguém em sã consciência afirmaria que o enfrentamento dos grandes desafios contemporâneos da humanidade (crise climática, degradação ambiental, desenvolvimento sustentável, fome, miséria e água potável, só para citar alguns) pode prescindir da educação, da ciência e da tecnologia. Essas três práticas sociais estão na base da construção das nossas sociedades. Seus resultados e processos tanto nos ajudaram a criar ou agravar esses desafios como estão no centro das estratégias para produzir soluções.
Nem sempre nos damos conta da presença da ciência, tecnologia e educação em nosso dia a dia. Isso porque as naturalizamos por estarem tão arraigadas em nosso cotidiano. Parece que a eletricidade das nossas casas, os aplicativos com que pedimos comida, os produtos de beleza e higiene que diariamente utilizamos, as redes sociais com que nos conectamos, o celular do qual é quase impossível se desligar e tudo mais da vida cotidiana, existem por forças outras que não a capacidade humana de ensinar e aprender, produzir conhecimentos científicos, criar o novo e dar aplicabilidade. Todavia, qualquer rápida análise desmascara essa aparência. O fato é que “as atividades econômicas, sociais, culturais e quaisquer outras atividades humanas tornaram-se dependentes de um enorme volume de conhecimento”[1], por isso a denominação de sociedades do conhecimento.
Essas práticas são constituintes da nossa realidade social, precisamos delas para enfrentar aos nossos mais graves problemas e para fazer funcionar, transformar, facilitar a rotina de nossas vidas. Por isso, como nação, não poderíamos nos dar ao luxo de não as priorizar ou de tratá-las sem a necessária articulação e sistematicidade. Porém, ambas as coisas acontecem no Brasil. Discutir o porquê demandaria análise mais densa do que é possível fazer nos limites desse artigo, mas ter consciência desse cenário nos ajuda a pensar nos elementos que podem elucidar a questão que está no título: Porque o Brasil precisa de um Sistema Nacional de Educação Superior, Ciência e Tecnologia?
A reflexão pode ser feita por muito vieses, vamos aqui destacar alguns aspectos ligados o ensino superior (ES). No Brasil, a atuação mais incisiva do estado para promover o ES se ligou ao surgimento das universidades públicas[i] no século XX e revelava a dinâmica dialética entre formação social brasileira e a universidade. As primeiras foram a Universidade do Rio de Janeiro, criada em 1920 e Universidade de São Paulo (USP) em 1934. Ambas tinham como pano de fundo de suas criações o desejo de modernização política e econômica das elites ilustradas, contrapondo-se ao tradicionalismo oligárquico. Tratava-se de promover a formação cultural e científica dos filhos da classe dirigente e professores para fazer frutificar mentalidade propícia ao cultivo de valores culturais e políticos vinculados ao ideário modernizante. A projeção de um país integrado à modernidade incluía a universidade como um de seus pilares de sustentação[2]. As políticas para a educação superior sempre estiveram associadas ao projeto de Nação que se buscava implantar. Por isso, a trajetória das universidades se entrelaça e caminha lado a lado com a construção político-econômica da sociedade.
No entanto, esse entrelaçar não assegura por si só que a universidade – e o ensino superior de modo geral – se vincule as necessidades da maioria. As forças em disputa por diferentes projetos de sociedade, se refletem nas muitas interpretações sobre a finalidade e os modelos de educação superior. As definições se constroem na luta política. No caso específico das universidades, sua maior ou menor vinculação à justiça social depende da profundidade de sua autonomia. Se destinadas a atender diretamente as demandas de mercado, elas deixam de estabelecer a relação mediada com toda sociedade para atender interesses específicos. Para Dias Sobrinho [3], “como bem público, a Universidade deve contribuir para o desenvolvimento econômico, mas com justiça social. Deve produzir conhecimentos científicos e tecnológicos, mas nunca negligenciar o interesse social”.
Podemos considerar que está consolidado na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), como espaço jurídico-formal, o que a sociedade brasileira espera da educação superior. Seu artigo 43 [4], preconiza como finalidades deste nível de ensino o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo; a formação nas diferentes áreas do conhecimento e colaboração com a formação contínua; o incentivo à investigação científica, visando ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia nacional, promoção à divulgação do conhecimento científico, técnico e cultural; o estímulo ao conhecimento dos problemas do mundo; a promoção à extensão à população; a atuação em favor da expansão e universalização da Educação Básica.
“Nem sempre nos damos conta da presença da ciência, tecnologia e educação em nosso dia a dia. Isso porque as naturalizamos por estarem tão arraigadas em nosso cotidiano.”
O cumprimento das finalidades só é possível na relação simbiótica entre o ES, a produção da ciência e sua aplicação para gerar tecnologia. Mas, fazer o conjunto complexo de instituições de ensino superior (IES) no Brasil – que envolve IES públicas federais e estaduais, privadas, confessionais, comunitárias, filantrópicas – dar concretude a formalidade da lei exige ação política integrada. Ou seja, exige coordenação, articulação, regulação e financiamento que atenda a diversidade das instituições e compreenda os diferentes contextos, papéis e alcance de cada uma. Exige, portanto, um sistema que trabalhe as muitas varáveis desse complexo e tenha relevância nas escolhas políticas. Pois é nesse ponto que se evidencia as correlações de forças e interesses. Embora esteja definido formalmente o que a sociedade espera do ES, sua concretização depende das escolhas políticas.
As escolhas feitas na última década do século XX e nas duas primeiras do século XXI parecem indicar no mínimo uma grande dubiedade. Por um lado, asseguraram que o ES fosse oferecido por organizações prestadoras de serviço que fazem da educação superior um negócio lucrativo para acionistas. Recentes pesquisas do Sou_Ciência [5] apontaram que as políticas direcionadas para o setor privado desde meados dos anos 1990 fazem com que tenhamos hoje um cenário de mercantilização e cartelização da educação superior por grandes grupos de capital negociado nas bolsas de valores. Para os pesquisadores, “parte importante do ensino superior mostra-se colonizado pelos interesses dos mercados e alheio aos propósitos de formação e de produção de conhecimento, ciência e tecnologia que beneficiem o desenvolvimento social, cultural e econômico do Brasil” [ii].
Alguns números do estudo deixam evidente essa afirmação; de cada 10 matrículas no ES em 2020, seis foram para os 10 maiores grupos privados. Embora o perfil dos alunos das IES públicas e privadas se equivalham – 50% de estudantes com renda menor de três salários-mínimos nas públicas 52% na privadas – a qualidade de formação é discrepante. Nas públicas federais seis em cada 10 estudantes saíram de curso com os conceitos mais altos do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), nas públicas estaduais esse número é de quatro a cada 10, mas nas privadas ele cai para um a cada 10 alunos (Figura 1).
Figura 1. Percentual de Estudantes em cursos com conceito Enade 4 ou 5
(Fonte: Sou_Ciência, 2022)
A discrepância e a distância em atender as finalidades da LDB ficam ainda maiores quando se considera a pós-graduação. É nesse nível do ES que se concentra a maior parte das pesquisas realizadas no país. Contudo o setor privado, que concentra 75,8% dos estudantes da graduação, se interessa muito pouco em participar desse esforço. “Isso significa que o interesse pelo lucro que sai da graduação é maior do que o interesse na ciência [iii]”.
Figura 2. Estudantes de Mestrado e Doutorado
(Fonte: Sou_Ciência,2022)
A qualidade do ensino de graduação está associada à construção do conhecimento e isso envolve a pesquisa. Não se trata de imaginar que todo o ES produzirá ciência e tecnologia de ponta, mas que a pesquisa estará presente institucionalmente nos ambientes de ensino superior em seus vários níveis. Precisamos de um Sistema de Educação Superior, Ciência e Tecnologia para não desprezar nenhum potencial, para impedir que parcela significativa dos nossos estudantes sejam formados sem cultivar o espírito investigativo e o pensamento reflexivo, para enfrentar o analfabetismo científico e gerar o desenvolvimento da ciência e da tecnologia nacional. Ainda mais, para fazer cumprir as expectativas da sociedade de modo que, na correlação de forças, o interesse de poucos, mas poderosos, não se sobreponha às diretrizes e aspirações difusas da sociedade.
Por outro lado, as políticas para o ES no mesmo período também ensejaram o crescimento e a democratização da universidade pública. Principalmente as federais entre 2007 a 2016, quando o governo desencadeou significativa expansão, interiorização, contratação de recursos humanos por meio do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) [iv]. O objetivo era ampliar do número de vagas, preferencialmente em cursos noturnos, para atender o aluno trabalhador ou em projetos pedagógicos para públicos específicos em vulnerabilidade social (quilombolas, indígenas, pequenos produtores rurais, etc.), além de promover crescimento e qualificação do corpo docente e atender a demanda histórica dos estudantes por recursos específicos para assistência estudantil (Plano Nacional de Assistência Estudantil – PNAES) [v].
O número de programas de pós-graduação recomendados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) acompanhou a expansão. Em números absolutos, a universidade pública se mostrou determinante, garantindo inclusive que o crescimento ocorresse também nas regiões Norte e Nordeste, reduzindo assim as assimetrias regionais. As instituições públicas concentram hoje 81,6% das matrículas dos cursos de pós-graduação (Figura 2).
Investimentos na pesquisa e aumento da pós-graduação permitiram ao país dar um salto importante em duas décadas, passando da 23ª posição para a 13ª entre as nações que mais produzem ciência no mundo [6]. A maior parte desse conhecimento – em torno de 60% – foi gerada nas universidades públicas que concentram os laboratórios de pesquisa e possuem a “mais ampla e eficiente rede de Núcleos de Inovação Tecnológica, em apoio à verticalização e incorporação de tecnologia de ponta nas cadeias produtivas nacionais” [7].
“As forças em disputa por diferentes projetos de sociedade se refletem nas muitas interpretações sobre a finalidade e os modelos de educação superior.”
O novo patamar que alcançou a universidade pública na produção de conhecimento, somado a outros órgãos científicos, colocou pesquisa, inovação e tecnologia como estratégia importante para o aumento da produtividade e desenvolvimento socioeconômico. Para que esse esforço se revertesse em incremento econômico, foram estimuladas e subsidiadas as parcerias público-privadas de pesquisa, extensão e inovação. A intenção era atender as demandas crescentes do mercado por capacitação e produção de tecnologia focada nos interesses competitivos das empresas nacionais e estabelecer outras formas de incentivo e financiamento em pesquisa e desenvolvimento como os fundos setoriais. O efeito foi a aproximação entre universidade e o setor produtivo.
Essa aproximação fez com que o entendimento sobre relação entre ciência e mercado ganhasse novo sentido. Os estudos recentes rompem com a crença largamente estabelecida de que os avanços tecnológicos, seguindo um modelo linear, se originariam na pesquisa básica e acabariam, por dinâmicas diversas, sendo incorporados pelas empresas. Novas pesquisas demonstram que “a inovação e o desenvolvimento tecnológico emanam de um processo sustentável e durável de inter-relações dinâmicas e complexas entre a ciência e o mercado” [vi]. Ou seja, a inovação e o desenvolvimento tecnológico são produzidos e fomentados como resultados do mútuo aprendizado, da troca de conhecimento de cada campo e informação entre os agentes das instituições científicas e das empresas. Desse modo, o desenvolvimento tecnológico implicaria transformações em cada uma das instituições, flexibilizando fronteiras sem, contudo, descaracterizar suas naturezas específicas, experiências particulares e a orientação pelos seus próprios valores e interesses [8].
As escolhas políticas não foram importantes apenas para estimular a aproximação, mas elas o são também para estabelecer os marcos legais e definir os limites e mediações dessa relação. O Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação de 2016, fruto de muitos debates e negociações entre instituições públicas de pesquisa, setor produtivo e a classe política, foi o coroamento dessa aproximação. Na sua base estão os investimentos em ciência, tecnologia e inovação provenientes dos fundos setoriais e se completou com a lei 13.243/2016. A lei tornou possível para cientistas do setor público integrar equipes de pesquisa na iniciativa privada, que os laboratórios das universidades sejam utilizados pelo setor privado, mediante pagamento, para o desenvolvimento de novas tecnologias. Além de autorizar que a União use recursos públicos para apoiar empresas envolvidas em processos de inovação (Figura 3).
Figura 3. O Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação de 2016 facilitou a parceria a integração entre universidades e empresas.
(Foto: Débora Brito/Agência Brasil)
Todavia, é preciso avançar mais, promovendo incentivos, articulação e arranjos institucionais sistêmicos entre os múltiplos agentes e fontes de financiamento capazes de potencializar para todas as regiões do país, valendo-se da capilaridade do ES, os efeitos das inovações como estratégia de enfrentamento das assimetrias. Esse é outro espaço em que o Sistema Nacional de Ensino Superior, Ciência e Tecnologia tem grande contribuição a dar. Porque não se pode transformar a universidade em fornecedoras de soluções tecnológicas para o mercado obter lucro, como queriam lideranças do Ministério da Educação no governo Bolsonaro. Isso destruiria seu o potencial crítico-criativo, sua autonomia científica e pedagógica e a relação mediada que ela estabelece com toda a sociedade. Mas, pensada no bojo de um sistema articulado e integrativo, a relação Universidade-Empresa intensifica ganhos sociais e tem potencial de instrumentalizar o país na produção soberana de ciência e tecnologia para superar a histórica dependência científica. Ao mesmo tempo, é no contexto de um sistema nacional que se pode construir as mediações que garantam que a natureza, interesses e valores singulares de cada ente institucional envolvido não se percam, ou sejam subtraídos. Fortalecendo, assim, estratégias e mecanismos que possibilitem cumprir a meta 14.13 do Plano Nacional de Educação (PNE) – “Aumentar qualitativa e quantitativamente o desempenho científico e tecnológico do país e a competitividade internacional da pesquisa brasileira, ampliando a cooperação científica com empresas, Instituições de Educação Superior (IES) e demais instituições científicas e tecnológicas (ICTs)”.
Pensar a educação superior, a ciência e a tecnologia como partes interdependentes de um sistema que promova, amplifique, articule os agentes e as ações e dê sustentabilidade a essas práticas sociais fundamentais da sociedade moderna exige, sem dúvida, superar uma de suas maiores ameaças: a falta de financiamento. Os cortes, as tentativas de diminuir a participação do orçamento público e os contingenciamentos dos fundos setoriais explicitam a ausência de prioridade. As políticas de investimentos para o setor não podem mais estar ao sabor das vertentes ideológicas dos grupos no poder. Como setor estratégico e bem público fundamental para o desenvolvimento socioeconômico e a qualidade de vida da população, suas necessidades de investimento precisam ser mensuradas e coordenadas considerando um sistema que compreenda sua complexidade e garantidas como política de estado em quantidade suficiente para o tamanho do desafio.
“Precisamos de um Sistema de Educação Superior, Ciência e Tecnologia para não desprezar nenhum potencial, para impedir que parcela significativa dos nossos estudantes sejam formados sem cultivar o espírito investigativo e o pensamento reflexivo, para enfrentar o analfabetismo científico e gerar o desenvolvimento da ciência e da tecnologia nacional.”
Quando aliado às demandas das camadas populares, esse desafio ganha significativa amplitude. A indissociabilidade universitária do ensino, pesquisa e extensão, a crescente pressão pela democratização do ES e da ciência, encabeçadas pelos movimentos sociais, colocaram na pauta a inclusão, a interculturalidade e a diversidade. Por meio da extensão, os movimentos sociais ampliaram o espaço para suas demandas no mundo acadêmico. A universidade foi chamada a dar respostas. Criação de cursos específicos para grupos vulneráveis, cotas na graduação e pós-graduação, ampliação de infraestruturas – hospitais, teatros, clínicas e outros – que envolviam o atendimento à população. Mas, esta foi apenas uma dimensão do processo de inclusão e diminuição das desigualdades. A universidade também se interiorizou, contribuindo para redução das assimetrias regionais, formação de recursos humanos e instalação de equipamentos científicos fora dos grandes centros e incremento da economia em municípios menos populosos. A lei de cotas [vii] e as políticas de ação afirmativa fizeram chegar à com mais intensidade universidade pública e ao universo da pós-graduação grupos sociais outrora excluídos. (Figura 4)
Figura 4. A partir do início dos anos 2000, a universidade iniciou o processo de inclusão e diminuição das desigualdades, e também se interiorizou, contribuindo para redução das assimetrias regionais.
(Foto: Ítalo Padilha / Agecom / UFSC)
“A universidade veste-se de povo” [viii], afirmou o coordenador nacional do Fórum de Pró-Reitores de Assuntos Comunitário e Estudantis na apresentação do estudo sobre o perfil socioeconômico e cultural dos estudantes de graduação. A universidade, originalmente desenhada para formar a elite, passou por uma considerável transformação do perfil de seus estudantes.
Aprofundar essa experiência promovendo efetiva decolonização da formação superior e produção do conhecimento científico, tornando-os socialmente referenciados em interface e diálogo com a educação básica e com outros saberes – como o tradicional – não é tarefa que possa ser feito por uma única instituição. Isso só pode ganhar materialidade histórica se projetado a partir de um sistema de amplo escopo que supere a fragmentação e promova a crítica conjunta do ES, da ciência e da tecnologia. Talvez esse seja o principal motivo, dentre tantos outros, pelo qual Brasil precisa do Sistema Nacional de Educação Superior, Ciência e Tecnologia.