Como a ciência transformou o tratamento do diabetes e o papel pioneiro do Brasil na produção de insulina recombinante
Todos os dias, cerca de 7 milhões de brasileiros dependem de insulina para controlar os níveis de glicemia e evitar complicações graves do diabetes, uma condição que já foi considerada uma sentença de morte. Essa mudança dramática é resultado de avanços científicos iniciados há mais de um século e refinados ao longo das décadas. Entre esses avanços, destaca-se a insulina recombinante, um marco biotecnológico que não apenas melhorou a qualidade de vida de milhões de pessoas, mas também colocou o Brasil em uma posição relevante no cenário global de inovações em saúde.
“Este processo biotecnológico não apenas eliminou a dependência de insulina animal, mas também garantiu maior segurança e eficiência no tratamento.”
O diabetes é uma das doenças mais antigas documentadas, com registros que datam de 1552 a.C. Apesar de conhecido, seu tratamento permaneceu rudimentar até o início do século XX. O verdadeiro divisor de águas ocorreu em 1921, quando o cirurgião canadense Frederick Banting, junto ao estudante Charles Best, realizou experimentos com extratos pancreáticos em cães diabéticos, observando uma redução nos níveis de glicose no sangue. A pesquisa foi supervisionada por John Macleod e aperfeiçoada pelo bioquímico James Collip, que conseguiu purificar a insulina, tornando-a segura para uso humano.
Produção e avanços industriais
Em 1923, a insulina começou a ser fabricada em escala industrial nos Estados Unidos e Europa, utilizando pâncreas de animais como matéria-prima. No Brasil, essa revolução chegou mais tarde, com a criação da Biobrás Bioquímica do Brasil, em 1971, na cidade de Montes Claros (MG). Fundada pelo bioquímico Marcos dos Mares Guia, a empresa se tornou pioneira nacional na produção do hormônio. Inicialmente, eram necessários 80 kg de pâncreas suínos para produzir apenas 1 mg de insulina, mas parcerias estratégicas com multinacionais, como a Eli Lilly, e colaborações acadêmicas aceleraram o desenvolvimento tecnológico.

Figura 1. Insulina produzida e comercializada em 1920, advinda de pâncreas de animais abatidos.
(Foto: Eli Lilly & Co. Reprodução)
Na década de 1980, uma nova revolução transformou a indústria: a insulina humana recombinante, sintetizada por bactérias geneticamente modificadas. Este processo biotecnológico não apenas eliminou a dependência de insulina animal, mas também garantiu maior segurança e eficiência no tratamento. No Brasil, a Biobrás, em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), desenvolveu sua própria versão de insulina recombinante. Sob a liderança do biólogo molecular Spartaco Astolfi Filho e do microbiologista Josef Thiemann, o projeto culminou na obtenção de uma patente internacional em 2000 e no início da produção comercial em larga escala.

Figura 2. Spartaco Astolfi Filho
(Foto: Ufam. Reprodução)
O contexto brasileiro
O desenvolvimento da Biobrás foi favorecido pelo contexto político dos anos 1970, quando o Brasil vivia o chamado “milagre econômico” e adotava políticas de substituição de importações. Contudo, em 2001, a empresa foi vendida à multinacional dinamarquesa Novo Nordisk, marcando o fim de uma era de produção 100% nacional. Apesar disso, o legado permaneceu, com a criação de novas empresas e a promissora retomada da produção interna por organizações como a Biomm e a Bahiafarma.
“A transição para a insulina recombinante não apenas poupou a vida de milhares de animais, mas também trouxe melhorias significativas para os pacientes.”
A transição para a insulina recombinante não apenas poupou a vida de milhares de animais, mas também trouxe melhorias significativas para os pacientes. Por ser praticamente idêntica à insulina humana natural, reduziu consideravelmente os efeitos colaterais, proporcionando um tratamento mais eficaz e acessível.
O futuro da produção nacional
Nos últimos anos, iniciativas como a validação de uma fábrica da Biomm em Nova Lima (MG) e a parceria entre Bahiafarma e o fabricante ucraniano Indar renovaram a esperança na produção nacional. Essas ações visam não apenas reduzir a dependência de importações, mas também fortalecer a autonomia tecnológica e econômica do Brasil no setor de biotecnologia.