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Um dia para a Física

Confira entrevista com Débora Menezes, presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF)

Quase um ano se passou desde que a física Débora Menezes, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tornou-se presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF) em julho de 2021. Primeira mulher eleita para o cargo em 55 anos de existência da sociedade, Débora tem enfrentado à frente da SBF os desafios da regulamentação da profissão de física(0), depois que a atividade foi reconhecida em 2018, e esteve na Câmara dos Deputados, em 18 de maio, para discutir o projeto de Lei que institui o “Dia do Físico”, os valores das bolsas de pós-graduação no país e a criação do Conselho Federal de Física. Formada em Física (bacharelado e licenciatura) pela Universidade de São Paulo (USP), ela teve uma trajetória científica movimentada, tanto no espaço quanto no tempo. Foi para a Universidade Oxford, na Inglaterra, fazer o doutorado e teve passagens por Portugal, Austrália e Espanha, em estágios de pós-doutorado. Quando voltou ao Brasil, no início da década de 90, deparou-se com a realidade da falta de emprego na sua área, prestou um dos poucos concursos que apareceram, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 1992, e, desde então, é professora dessa universidade, de onde foi pró-reitora de pesquisa (2008 e 2012). Débora fez parte do Comitê Gestor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) — Física Nuclear e Aplicações, da Comissão de Física Nuclear da International Union of Pure and Applied Physics (IUPAP), participou do Comitê Assessor de Física e Astronomia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Comissão de Física Nuclear e Aplicações da SBF e do Grupo de Trabalho sobre Questões de Gênero da SBF. A inclusão das mulheres nas ciências, inclusive, é um dos seus vários interesses acadêmicos, também não poderia ser diferente numa área tão excludente para as mulheres, como a Física. Entre 1901 e 2021, o prêmio Nobel de Física foi concedido a 219 pessoas, apenas quatro eram mulheres: Marie Curie (1903), Maria Goeppert-Mayer (1963), Donna Strickland (2018) e Andrea Ghez (2020). O isolamento não acontece apenas na esfera da pesquisa acadêmica, mas também na ocupação de posições de liderança profissional. De acordo com o relatório publicado pela Unesco (2022) sobre a participação das mulheres nas carreiras de ciências, tecnologias, engenharias e matemática na América Latina e Caribe, um dos obstáculos à liderança profissional de mulheres é a predominância do imaginário do masculino associado à competência e as práticas formais e informais de gênero. Para transformar essa realidade, Débora aposta na criação de modelos, por isso, decidiu se candidatar ao cargo de presidente da SBF, onde pretende modernizar e ampliar a comunicação da física com a sociedade como forma de combate à exclusão, notícias falsas e negacionismo. Divulgadora de ciências – Débora é “YouTuber” e “Tik Toker” — tem se dedicado pessoalmente ao canal do “Mulheres na Ciência”. Débora falou para a Ciência & Cultura sobre o que a Física tem para comemorar e o que tem a refletir e transformar, memórias da Física e sobre os tempos de infância, quando andava de skate no cemitério da Vila Mariana, na cidade de São Paulo.

 

O dia 19 de maio é uma data marcada para celebrar a Física como ciência, numa alusão ao “ano miraculoso” de Einstein, 1905. Qual a importância de instituir um dia para as profissionais físicas e físicos, no país?

O Dia do Físico, ou melhor, Dia da Física (referindo-nos à ciência) não tem apenas um propósito de comemoração, mas uma razão de ser na luta pela regulamentação da profissão, que aconteceu em 2018. Para quem está na vida acadêmica, pode não parecer tão importante, mas para quem atua no mercado de trabalho é fundamental. Ainda precisamos regulamentar a profissão, nos moldes do CREA, Conselho de Fisioterapia, de Medicina, etc. Para isso, precisam ser criados um conselho federal e os conselhos regionais de Física, particularmente importantes para as pessoas que atuam na física médica e para aquelas que inventam coisas. Por exemplo, quando alguém realiza um tratamento oncológico, a dose de radioisótopos que a paciente vai receber tem que ser determinada por uma profissional da física médica. Mas, na maioria dos hospitais, quem assina os laudos é a médica ou o médico. Existem vários acidentes no país por causa disso. Outro aspecto é que se uma física ou um físico fizer uma descoberta, algo comum na área de semicondutores e dispositivos quânticos, quem assina como responsável técnico é da área de engenharia.

 

Qual o papel da SBF para a física no Brasil?

A SBF tem uma estrutura razoavelmente enxuta que tem permitido desenvolver um trabalho muito bom e desempenhar um papel incrível junto à comunidade de físicas e físicos, ao longo das últimas décadas. Inclusive, um papel historicamente importante. A SBF defendeu físicas e físicos na época da ditadura militar. A SBF estimula a discussão acadêmica nas diversas áreas da pesquisa em Física e nesse intuito organiza eventos, anual ou bianualmente, dependendo da área do conhecimento. Os eventos da área de matéria condensada e estatística, por exemplo, recebem mais de oito mil pessoas. Visando a formação de novas(os) cientistas, a SBF assumiu a responsabilidade de organizar o exame unificado de ingresso na maioria das pós-graduações no país, além de motivar jovens adolescentes na Física através das Olimpíada Brasileira de Física (OBF) e da Olimpíada Brasileira de Física das Escolas Públicas (OBFEP). Mais recentemente, atuamos quanto à questão do projeto de lei que institui esse dia para a Física, importante para dar visibilidade no congresso ao trabalho que as físicas e os físicos fazem. No futuro, essa visibilidade pode auxiliar na regulamentação dos conselhos. A maioria dos físicos e físicas não conhece essa história, eu mesma comecei a me dar conta quando me envolvi no Grupo de Trabalho de Gênero da SBF.

 

Como esse dia da Física movimenta as reflexões sobre a área no país? O que a Física tem para celebrar e quais são as causas a serem levantadas?

É difícil fazer física sem adorar! Esse é um motivo para celebrar! Temos que celebrar o conhecimento das coisas, a percepção da física sobre o universo. Mesmo que essa percepção não seja profunda, ela é super legal. Para onde quer que eu olhe, eu enxergo a física. A física está lá fora, no céu que é azul, no por do sol alaranjado, dentro de casa, no microondas… Mas, temos que lutar pelas causas comuns das ciências, mais financiamento, reconhecimento de pós-graduandos. Uma bolsa de mestrado é um salário mínimo. Isso é uma vergonha! Temos de afastar os estereótipos, temos que defender a importância de investimento em pesquisa, brigar por uma educação de maior qualidade para as crianças. Precisamos motivar as crianças sobre ciências para que não se deixem levar por engodos como cura quântica, ou movimentos antivacina. Algo recente e que me entristece é ver mães com 3, 4, 5 crianças indo até o congresso para defenderem a educação em casa. Somos nós mulheres defendendo interesses alheios.

 

“Para onde quer que eu olhe, eu enxergo a física. A física está lá fora, no céu que é azul, no por do sol alaranjado, dentro de casa, no microondas.”

 

E quanto aos estereótipos de gênero na física? No Brasil, que práticas acadêmicas afastam as mulheres do ingresso nas carreiras acadêmicas, de permanecerem nelas e de ocuparem posições de liderança?

Acredito que a maior questão é a falta de modelos. Essa foi uma das razões pelas quais eu aceitei concorrer ao cargo de presidente da SBF. Antes, eu sempre falava sobre o efeito tesoura que não deixa que as mulheres ocuparem posições de liderança nas carreiras, mulheres reprimidas pelo discurso masculino. As mulheres que têm protagonismo são tachadas como chatas, mandonas, “de gênio difícil”, é uma longa lista de defeitos, sempre tem uma crítica associada. As pessoas mais próximas são as que menos dão reconhecimento, mas é um caminho que está sendo trilhado. Eu aceitei concorrer ao cargo na SBF para ocupar esse espaço, também para dar continuidade ao trabalho que já vinha sendo desenvolvido. Olhando para a comunidade da física, encontramos uma realidade que é pior que em muitas áreas. A maioria das pessoas na física, no país, é homem branco do sudeste. São poucas as pessoas negras, as mulheres… Isso não tem nada a ver com a realidade do país.

Outra questão são os estereótipos que carregamos desde a infância, que afastam as meninas das carreiras científicas. Por exemplo, na época do Império, quando se instituiu O dia do Professor, não havia previsão de que o ensino de matemática fosse para as mulheres. Elas não precisavam saber raciocínio abstrato. Isso era coisa de homem. Mas são degraus que nós estamos subindo e apesar de ser uma mudança lenta, as coisas estão mudando. As meninas agora se posicionam, reclamam mais, percebem quando existe assédio moral. Isso porque estamos divulgando mais, falando mais. Apesar do atual governo, isso vai continuar melhorando, apesar da reação de homens brancos que não querem reconhecer privilégios, ceder espaços. Difícil sair da posição de conforto.

 

Quais têm sido os desafios deste seu primeiro ano como presidente da SBF?

Tudo que fiz e ainda penso fazer na SBF é um ajuste na estrutura fina porque a sociedade já tem muitas conquistas. A principal deficiência que vejo é a comunicação, tanto do ponto de vista institucional como de comunicação com o público. Percebo que muitas pessoas, mesmo filiadas à SBF, não sabem o que ela faz, filiam-se apenas para participar de eventos. A SBF representa muito mais do que isso, é uma comunidade da física, mesmo porque sozinho ninguém vai a lugar nenhum. Eu pretendo ampliar a comunicação da SBF com pessoas dessa comunidade da física, de pesquisa e ensino de física, e delas com a sociedade. Precisamos ampliar o acesso das pessoas à informação tanto para se fazer entender pelas(os) próprias(os) filiadas(os) da SBF como para promover comunicação de melhor qualidade sobre assuntos de física e ensino de física.

 

Provavelmente, além de primeira presidente eleita da SBF, você também deve ser a primeira presidente YouTuber. Qual a importância da comunicação da física com a sociedade?

Sou “YouTuber” e “Tik Toker”, como diriam as minhas alunas. Eu tenho particularmente dedicado tempo a essa grande área da divulgação de ciências porque, desde que meu filho cresceu, estou numa fase da vida que me permite. Coordenei um museu de ciências aqui em Santa Catarina por dez anos e depois me envolvi com as redes sociais, trazidas até mim pelas minhas alunas. No entanto, nem toda (o) cientista pode fazer divulgação porque dão muita aula, escrevem projetos de pesquisa, participam de reuniões, etc. Principalmente as mulheres que têm filhos pequenos encontram mais obstáculos em termos de tempo para se dedicarem a essa atividade. Mas é importante que as(os) cientistas apoiem e disseminem o que se faz na academia. E esse apoio vem não apenas na forma de atuação como divulgadoras(es), mas as(os) cientistas que coordenam os editais de financiamento têm que forçar a barra para que verbas sejam destinadas para essa área. Infelizmente, a divulgação de ciências no Brasil não é valorizada. No meu canal no YouTube, por exemplo, não temos verbas, todas as pessoas que fazem parte da equipe atuam como voluntárias.

 

“A nossa responsabilidade como cientistas é grande e é necessário agir quando os assuntos se apresentam.”

 

A comunicação é importante para afastar, por exemplo, ideias negacionistas e a disseminação de notícias falsas, que alimentam uma crescente desconfiança das ciências, na sociedade. Qual a responsabilidade de cientistas das áreas da física quanto ao surgimento como quanto ao combate dessas ideias e práticas?

A nossa responsabilidade como cientistas é grande e é necessário agir quando os assuntos se apresentam. As ferramentas das redes sociais, por exemplo, são importantes para ocupar um espaço que está sendo dominado por coisas que não são verdadeiras. A postura das pessoas da física é duvidar. Duvidar é algo muito bom para nos protegermos das pseudociências porque elas estão correlacionadas às notícias falsas. A comunicação com a sociedade é algo que faltava um pouco na SBF, mas estou trabalhando para mudar o nosso site, de onde saem todas as notícias que vão para as redes sociais, etc. A SBF está melhorando a sua comunicação para ocupar esses espaços.

 

Essa é a proposta do Veri Física da SBF, verificar as notícias falsas?

A proposta do Veri Física é falar coisas corretas com linguagem apropriada para chegar em estudantes e no público leigo de uma forma geral. Começamos na gestão anterior à minha com uma comissão formada por pessoas atuantes na divulgação de ciências, como o Marcelo Knobel, ex-reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As abordagens eram sempre no sentido de desfazer as notícias sobre cura quântica, coach quântico e outras enganações quânticas, em geral. Mas apesar disso, o modelo do Veri Física não funcionou muito bem. Conversei com o conselho e o Ricardo Galvão, da USP, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), resolveu assumir num formato diferente. No nosso primeiro Veri Física, falamos sobre dinossauros e matéria escura.

 

Nesse sentido, qual a importância da história para a formação de cientistas, pesquisadoras e pesquisadores das áreas da física e ensino de física e professoras e professores de física?

Conhecer história é sempre importante porque é uma forma de cometermos menos erros, ao menos, de não reproduzir erros passados. Podemos interpretar ou ler a interpretação de alguém. Isso é importante para a história da física, no Brasil. Na história das ciências no país, a física foi precursora de muitas coisas, o próprio modo como os departamentos foram criados, nas décadas de 40 e 50. A vinda de pesquisadores para o Brasil, como o Gleb Wataghin, Giuseppe Occhialini, a existência do próprio César Lattes. Essas personagens fundaram o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), foram atuantes na formação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) — O CNPQ financia pesquisa para todas as áreas, o que, infelizmente, não é um assunto discutido em nível acadêmico. Eu acho importantíssimas no curso de física (bacharelado e licenciatura) a epistemologia e a metodologia científica, que acabam sendo assuntos considerados menos importantes. Deveríamos ter mais cursos, micro cursos, ao longo da graduação de bacharelandos e licenciandos. Estamos no laboratório pesquisando, mas não refletimos sobre a nossa própria atividade.

 

“Estamos doando cérebros. Não conseguimos segurar pós-doutorandas(os) no país.”

 

Qual o momento mais marcante na história da física brasileira?

Ah! Eu fui aluna do Mário Schenberg, conheci o César Lattes, então, esses momentos marcantes para mim não são propriamente marcantes na história da física brasileira, mas tem um encontro afetivo com as minhas próprias memórias. Por exemplo, eu já fiz de tudo para me inscrever numa disciplina com o Schenberg e tem histórias muito legais. Diziam que ele tinha fotofobia, e ele, de fato, dormia durante as aulas. Dormia no meio de uma frase. Ficava um silêncio. Todo mundo observando. Ele acordava e prosseguia a aula exatamente de onde tinha parado. A prova oral era na casa dele. Eu já cheguei a encontrá-lo de pijama, em casa. Ele estava todo desgrenhado. Pedia licença para ir se arrumar, subia as escadas e voltava penteado, mas ainda de pijamas. Quanto ao César Lattes, eu também presenciei um momento peculiar de quando ele passou de sala em sala na faculdade convocando as pessoas para assistir uma palestra dele, convocou a imprensa, disse que iria demonstrar que o Einstein estava errado. Todo mundo saiu para assistir. Na primeira cadeira, tinha um professor famoso de Oxford, que eu encontrei anos depois. De repente, no meio da palestra e o Lattes: “Esqueci as minhas notas. Vou buscar e já volto!”. E nunca voltou. As pessoas consideradas geniais faziam o que elas queriam.

 

Qual o papel da SBF para fortalecer a profissão de professora e professor de física, estimulando, inclusive, a formação de novas (os) cientistas?

Se não fortalecermos a parte de ensino, não teremos cientistas no futuro. Muita gente vai fazer física porque teve excelentes professores no colégio, temos que focar na formação das pessoas que vão dar aulas no fundamental e médio. Ainda há muito preconceito com relação a professores e professoras e é um dos desafios da SBF. Eu tenho tentando fortalecer as comissões para discutir o ensino de física, Comissão da Área de Pesquisa em Ensino de Física (CAPEF) e conselheiros que formam uma assessoria informal da SBF. São pessoas muito antenadas ligadas com diferentes aspectos do modo como a física está sendo ensinada na nova Base Nacional Curricular Comum, que prevê uma formação mais integral, mas menos focada em física. A SBF tem prestado atenção na BNCC, atraindo mais professores da rede pública para se associarem, o que ajuda a fortalecer a sociedade e a nossa área.

 

Segundo o censo da Educação Superior no país, mais de 1,5 milhão de estudantes frequentaram cursos de licenciatura no Brasil em 2017, o que representava então 19,3% do total de graduandas(os) na educação superior. O curso de licenciatura em física ocupava a 11 posição, com pouco mais de 28 mil ingressantes, 1,9% do total de matrículas. Como é avaliado o número de ingressos em cursos de licenciatura, especialmente, considerando os altos índices de evasão?

Infelizmente, a evasão tem várias causas. Difícil conseguir dados nesse caso, mas eu enxergo a falta de perspectiva de uma carreira melhor como um problema. A situação no mercado de trabalho é diferente para as pessoas que fazem licenciatura e bacharelado. A oferta é melhor para quem faz licenciatura, mas as condições de trabalho são precárias e a profissão se torna não atrativa. Uma pessoa que se forma em medicina, por exemplo, além de ter oferta de emprego, tem boas condições de trabalho, em geral, é valorizada. Eu estudei a evasão escolar da UFSC, quando estava atrás dos dados de gênero, mas me deparei com outra coisa que me surpreendeu ao tentar identificar as causas da evasão: o curso de Física é um trampolim social. Muitas pessoas gostariam de entrar na engenharia, mas não se sentem capacitadas. Elas ingressam no ensino superior no curso de Física, cursam os primeiros semestres e pulam para a engenharia. Desse modo, perdemos pessoas que poderiam atuar como físicas, mas vão contribuir com outras áreas.

 

Dentre as áreas de pesquisa em física, no país, quais são as que têm maior e menor reconhecimento e inserção internacional. Se existem disparidades por qual motivo elas acontecem?

É difícil avaliar porque todas as áreas da Física Brasileira têm inserção internacional. Tem aquelas que são muito grandes, em número de pessoas, como a física do estado sólido, então, tem mais indicadores apontando para a produtividade dessa área. Mais pessoas representam maior inserção internacional. Temos que olhar o conjunto de pessoas envolvidas no indicador. Na área de Física Nuclear, por exemplo, temos 150 pessoas. Tem também o fato de que as áreas teóricas acabam sendo mais atrativas, pois requerem menos recursos. As áreas de matéria condensada, dentre as experimentais, também reúnem um contingente maior de pesquisadoras e pesquisadores, enquanto para aquelas que trabalham com colisão de partículas, temos o envolvimento internacional, altos custos de pesquisa e investimento. No Brasil, temos competências instaladas em muitas áreas e formamos pessoas capacitadas.

 

Estamos vivendo um novo momento de fuga de cérebros?

Estamos doando cérebros. Não conseguimos segurar pós-doutorandas(os) no país. A bolsa é ridícula. Além disso, não tem bolsas suficientes, o mercado de trabalho é fraco, não tem emprego. Essa realidade se repete. Quando voltei para o Brasil vindo do doutorado em Oxford, na Inglaterra, nos anos 90, dei uma entrevista na época, e lembro que me perguntaram: “O que você vai fazer agora?” E eu disse: “Vou abrir uma loja de chocolates”. Não tinha emprego, eu tive muita dificuldade. Eram poucos os concursos, eu não tinha experiência para dar aulas e eu quase desisti. Cheguei a fazer concurso para dar aulas de matemática financeira, mas quando apareceu um concurso na UFSC, prestei e passei. Poderia ter sido mais uma física no mercado financeiro. O que é bom, sorte do mercado financeiro! Mas a Física não pode abrir mão de formar doutores. Além disso, as pessoas têm que ter condições para permanecerem no país. O investimento na formação dessas pessoas é todo brasileiro e a pessoa vai gerar frutos para a Alemanha, etc.

 

Quanto às questões emergentes sobre a ocupação humana no planeta, existe conexão entre a pesquisa, os métodos da física e a preservação da vida no nosso planeta?

A física é importantíssima nessa discussão. Os modelos ambientais de eventos extremos e mudanças climáticas envolvem equações diferenciais, etc. Ou seja, a linguagem da física entra na modelagem. Mas nessa questão não podemos esperar a linguagem evoluir, temos que agir. As áreas da física brasileira estão super conectadas com a questão ambiental. Na SBF, acabamos de criar uma comissão de meio-ambiente, que tem o professor Ricardo Galvão e o professor Paulo Artaxo, da USP, e da Universidade Federal do Mato Grosso, temos o professor Sérgio Vagner da Silveira. O Paulo Artaxo é um nome importante, ele faz parte do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e, grupo de pessoas que discutem as mudanças climáticas por meio dos modelos de Física, além de ser vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

 

O que na sua trajetória profissional te conduziu até aqui?

Eu aprendi em metodologia científica que a nossa perspectiva não pode ser vista como a verdade absoluta, acho que isso foi e é algo marcante. Desde pequena eu era muito curiosa, inquieta. Já chegaram a me impedir de ficar perto das minhas amigas inseparáveis, no colégio, porque eu estaria atrapalhando o desenvolvimento delas. Eu fazia tudo muito rápido, várias coisas ao mesmo tempo. Estudava inglês, dançava balé e andava de skate no cemitério, na Vila Mariana, em São Paulo. Quando comecei a andar de skate, caía, machucava. O chão era irregular, mas lá no cemitério era lisinho o chão. Eu chamava todo mundo para ir andar de skate no cemitério. Estudei num bom colégio e entrei na Física da USP sabendo integrar e derivar, o que me deixava livre para aproveitar a vida universitária de várias formas. Ia para piscina, para as áreas de lazer. Penso que ter entrado na UFSC foi muito importante na minha trajetória profissional, devo muita coisa para UFSC. Eu fui pró-reitora na UFSC ainda jovem. Se tivesse ficado em São Paulo isso não teria acontecido. A quantidade de alunos que orientei na UFSC, talvez, não teria orientado se tivesse ficado em São Paulo. Foram por volta de cinquenta pessoas de Iniciação Científica, quase quarenta de mestrado e doutorado. Eu agradeço à instituição pela carreira que eu tive.

 

E que dificuldades você enfrentou na sua trajetória?

O meu primeiro choque com a realidade que se apresenta de forma mais ostensiva para outras pessoas na física foi quando eu cheguei em Oxford e meu orientador me perguntou se eu era casada. Ele disse que Física em Oxford era muito difícil: “Vai fazer as disciplinas e volta para falar comigo daqui há um ano”. Eu não perdi tempo, falei com outras pessoas, outros orientadores, que também me faziam essa mesma pergunta: “Você é casada?”, “Quantos filhos você quer ter?”. Eu respondia: “Não sei. Eu não vim ter filho, eu vim fazer doutorado.” Essas perguntas não são muito comuns na vida dos homens, na academia, independente de serem casados.

Mas, enfim, durante aquele ano, eu publiquei um artigo e lá foi o meu orientador falar comigo para começarmos o trabalho. Não hesitei, disse para ele que estava muito ocupada: “Volte daqui há um ano!”.

 

Imagem de capa: Débora Menezes na Boca da Verdade, em Roma (Arquivo pessoal)
Victoria Flório

Victoria Flório

Victoria Flório é professora do Departamento de Química e Física da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e Pesquisadora Colaboradora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rio de Janeiro.
Victoria Flório é professora do Departamento de Química e Física da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e Pesquisadora Colaboradora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rio de Janeiro.
5 comments
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  3. Excelente artigo e fico entristecido de saber que apesar de divulgado no meio acadêmico poucos discentes reservaram minutos para ganhar anos de sabedoria.

    Marcio Thiebaut – Aluno Lic em Física – UFES 2022

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