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As celebrações da Independência: o que comemorar?

As crises atuais deixam a impressão de que não há o que comemorar, mas as conquistas de 200 anos provam que devemos sim celebrar nossa independência – e continuar lutando por ela

Em 2022, cerca de um mês antes do primeiro turno da votação para Presidência da República, o Brasil completará 200 anos de independência. As muitas crises que enfrentamos atualmente — econômica, social, ambiental, de saúde, da educação, de valores humanos — polarizam as discussões e deixam-nos a impressão de que não temos muito o que comemorar. O Brasil parece seguir aos trancos e barrancos,[1] como diria Darcy Ribeiro, com concentração elevada de renda, muita pobreza e volta da inflação de dois dígitos.

Ainda assim, como aponta Valdei Lopes de Araújo, temos várias conquistas da sociedade que precisam ser celebradas, defendidas e ampliadas nesses 200 anos de independência. Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Araújo explica que nossa história não é perfeita, mas também não é completamente formada por erros: “Uma abordagem crítica de nossa história enquanto estado independente não significa desconhecer todos os avanços sociais construídos nesses 200 anos. Cada época tem suas limitações, por vezes gigantescas, como no Império que foi escravista praticamente durante toda a sua existência”.

Ynaê Lopes dos Santos, professora no Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca que é fundamental compreender o caráter das lutas populares em favor da Independência: “existiram homens e mulheres escravizados, outros livres e libertos de diferentes regiões da colônia que se transformava em nação soberana, que lutaram para efetivar a Independência”. Pesquisadora na aérea de História da América, com ênfase em Escravidão Moderna e Relações Étnico-Raciais nas Américas, Santos ressalta que a independência do Brasil foi uma aposta de uma oligarquia para manter a escravidão — aposta que organizou a sociedade brasileira pelo menos até 1870, quando se começou a compreender que a escravidão enquanto instituição estava chegando ao fim.

O Grito do Ipiranga, que marca a nossa independência, foi dado em São Paulo, mas há quem aponte que a independência do Brasil começou e terminou na Bahia.[2]O processo se iniciou em 28 de janeiro, seis dias depois da chegada da corte portuguesa no Porto da Barra, em Salvador, quando o príncipe-regente Dom João de Bragança determinou a abertura dos portos brasileiros para as nações amigas de Portugal, pondo fim ao monopólio comercial português com o Brasil. As batalhas contra os portugueses na Bahia duraram mais de um ano e somente em 2 de julho de 1823 se deu a consolidação da Independência, quando os oficiais portugueses retiraram todas as suas tropas de Salvador. “Portanto, é fundamental que se analise o processo de Independência em suas várias dimensões e complexidades para desmontar a ideia tradicional e oficiosa de um Grito do Ipiranga que resolveu nossa independência com meia dúzia de pessoas”, enfatiza Santos.

1922: Arte, revoltas e estado de sítio

O ano do primeiro centenário foi o último no governo de Epitácio Pessoa, marcado por muitas revoltas no Rio de Janeiro (da Vila Militar, dos cadetes da Escola Militar de Realengo e dos oficiais do Forte de Copacabana). Começou com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, transcorrida em fevereiro, marca da virada das artes brasileiras do academicismo para o modernismo. E terminou com o Brasil em estado de sítio, decretado inicialmente por Epitácio Pessoa pelo prazo de trinta dias, e mantido por praticamente todo o mandato de Artur Bernardes, eleito em março de 1922.

Ainda assim, o Centenário da Independência foi comemorado com várias festividades e com uma grande exposição internacional, aberta ao público de 7 de setembro de 1922 a 24 de julho de 1923. Realizada no Rio de Janeiro, a Exposição do Centenário foi instalada em parte da área surgida com o desmonte do morro do Castelo iniciado em 1921 e tido como um obstáculo para a expansão urbana e para o combate às epidemias. O Brasil ocupou oito pavilhões e contou com exposições de treze países.[3] Na abertura, Epitácio Pessoa discursou pelo rádio, inaugurando a radiotransmissão oficial do país. Mas somente em abril de 1923, por um movimento de cientistas e intelectuais da recém-criada Academia Brasileira de Ciências (ABC) e com forte apoio do antropólogo Edgard Roquette-Pinto, nasceu a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, primeira no Brasil com objetivo de educar e divulgar ciência e cultura.

1972: Festas na ditadura

O Sesquicentenário da Independência foi comemorado no terceiro ano do governo do General Emílio Garrastazu Médici, período de grande popularidade do regime militar — e também o de maior violência. O Brasil havia conquistado o tricampeonato de futebol na Copa do Mundo de 1970, a rodovia Transamazônica, ainda inacabada, foi inaugurada em 27 de agosto de 1972 e a Ponte Presidente Costa e Silva, popularmente conhecida como Ponte Rio-Niterói, estava em construção.

Figura 1. Parada militar no Rio de Janeiro comemorando os 150 anos da Independência do Brasil – a ditadura usou a data para exaltar o militarismo
(“Comemorações do 7 de setembro em 1972”. Foto: Acervo/Estadão)

 

As comemorações dos 150 anos da Independência foram marcadas por grandes eventos: Encontros Cívicos Nacionais;[4] filas para visitar os despojos de D. Pedro I; homenagens prestadas em alguns estados simultaneamente a D. Pedro I e ao ex-presidente Castelo Branco (na tentativa de colocar o Marechal ao lado do Imperador no Panteão dos heróis nacionais); jogos da Taça Independência com aplausos entusiasmados ao General Médici no Maracanã; e grande festa de encerramento das comemorações no dia 7 de setembro. Todos foram capazes de mobilizar importantes segmentos sociais.

Para Araújo, depois de 1972, muita coisa mudou na maneira como nós hoje queremos lidar com o legado da nacionalidade com o uso que a ditadura militar fez dos personagens históricos. O pesquisador destaca que um setor não pequeno da sociedade brasileira tenta ainda hoje usar a história nacional como uma camisa de força, com frases como “Brasil acima de tudo”, deixando evidente como a ideologia nacional ainda busca sufocar as diferenças.

2022: Mais que celebrar, devemos refletir

Andréa Slemian, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pondera que, mais que celebrar, devemos refletir sobre o que significam 200 anos de Independência do Brasil. Isto implica pensar o processo de independência, suas disputas, conflitos que hoje sabemos que existiram, e sobretudo, refletir sobre que unidade nacional, que sociedade se constrói desde então até hoje. Slemian acrescenta que isso significa também que não devemos atrelar todas as nossas características ao momento da Independência, mas a todo o processo histórico que se seguiu, e que foi inclusive atribuindo novos significados à mesma: “Recriamos mazelas de nosso passado colonial, como o escravismo, e novas formas de exclusão”, diz.

Figura 2. Protestos em São Paulo marcaram o dia 7 de setembro em 2021, marcando o rumo ao bicentenário da independência.
(“Comemorações do 7 de setembro em 2021”. Foto: Rede Brasil Atual)

 

Mas ainda temos o que celebrar. Araújo, presidente da Associação Nacional de História (ANPUH), destaca que no período republicano, e mais recentemente, construímos estruturas coletivas fundamentais, que são conquistas da sociedade brasileira e não de um partido ou de uma ideologia. Ele cita como exemplos o Sistema Único de Saúde (SUS), que durante a pandemia e contra um governo federal negacionista, foi capaz de dar respostas rápidas e atingir patamares de vacinação que muitos países desenvolvidos ainda não atingiram; os programas de renda básica como o Bolsa Família, admirados no mundo inteiro e sempre citados como política pública eficaz na redução da desigualdade e da miséria; e a rede de pesquisa pública, com uma comunidade pujante de pesquisadores e um sistema de periódicos e livros científicos de acesso gratuito, que também fazem inveja a muitos países desenvolvidos pelo seu caráter inclusivo e democrático.

Slemian inclui também as ações afirmativas, fundamentais na construção de uma sociedade mais justa: “as marcas de nossa desigualdade foram reiteradamente recriadas, inclusive após a Independência”. E salienta: “é importante notar que somos o país com o maior número de línguas faladas por menos pessoas e esse é um dos aspectos que devemos ter sempre em mente quando pensamos o que é o Brasil hoje, ou seja, essa imensa diversidade de povos que merece ter reconhecido o seu papel ativo na história de nosso país”.

 

Capa. O Monumento à Independência foi criado em 1922 como parte das comemorações do centenário da emancipação brasileira.
(“Monumento à Independência”. Reprodução)

Notas

 

[1] Ribeiro, D., 1985. Aos Trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu. Rio de Janeiro, Editora Guanabara Dois. https://www.academia.edu/4002202/Darcy_Ribeiro_Aos_Trancos_e_Barrancos

[2] Ribeiro, E. de M., 2012. Entre adesões e rupturas: projetos e identidades políticas na Bahia (1808-1824). Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador, 168 f.

[3] Argentina, Bélgica, Dinamarca, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Japão, México, Noruega, Portugal, Suécia e Tchecoslováquia, formada após a 1ª Guerra Mundial com territórios antes pertencentes ao Império Austro-Húngaro, e dividida em 1º de janeiro de 1993 em República Tcheca e Eslováquia.

[4] Os chamados Encontros Cívicos Nacionais aconteceram em muitas as cidades do país e consistiam na mobilização da população para, numa mesma hora, em praças públicas, escolas, hospitais e até penitenciárias ouvir a saudação e chamamento do presidente Médici e cultuar a bandeira entoando o Hino Nacional. [Cordeiro, J.M., 2012. Milagre, comemorações e consenso ditatorial no Brasil, 1972. Confluenze, 4 (2): 82-102. doi:10.6092/issn.2036-0967/3432.]

Leonor Assad

Leonor Assad

Leonor Assad é engenheira agrônoma, doutora em Ciência do Solo, especialista em divulgação científica, professora titular aposentada da Universidade Federal de São Carlos, e apaixonada por trabalhar e escrever sobre Ciência.
Leonor Assad é engenheira agrônoma, doutora em Ciência do Solo, especialista em divulgação científica, professora titular aposentada da Universidade Federal de São Carlos, e apaixonada por trabalhar e escrever sobre Ciência.
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