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A saúde dos brasileiros e brasileiras

“O fortalecimento do SUS deve, portanto, ser encarado como prioridade do próximo governo”, afirmam Gulnar Azevedo e Silva, médica e professora titular do Instituto de Medicina Social da UERJ, e Eli Iola Gurgel Andrade, professora titular do Departamento de Medicina Preventiva e Social da UFMG

 

A Constituição Federal de 1988, de forma inédita na história brasileira, reconheceu que a saúde é um direito universal e que o Estado tem por dever prover e garantir este direito a todos, a partir de políticas sociais e econômicas. Assim nasceu o Sistema Único de Saúde (SUS) e sua implantação possibilitou o aumento do acesso à assistência à saúde para toda a população.

Desde a sua criação até os dias de hoje, o SUS tem enfrentado dificuldades em relação ao seu financiamento. Para se ter ideia, a primeira definição sobre a responsabilidade dos níveis federal, estadual e municipal no financiamento do SUS só ocorreu doze anos depois, no ano 2000, com a Emenda Constitucional n. 29 (EC-29). Enquanto isso, a oferta de serviços privados em saúde, seja no plano da assistência médica individual e familiar, os chamados “planos de saúde”, seja no segmento de serviços hospitalares e diagnóstico-terapêuticos apresentaram grande expansão. Os planos de saúde, por exemplo, puderam ter sua clientela ampliada à custa da renúncia fiscal que passou a permitir o desconto de despesas com saúde no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas. Por outro lado, os investimentos insuficientes para a estruturação da rede própria de serviços públicos do SUS, potencializou a dependência da compra de serviços privados pelo sistema público amplificando o mix público-privado que, desde os anos 1970, caracteriza o complexo médico industrial no país1. Hoje, avaliando-se do ponto de vista dos gastos globais em saúde, o Brasil gasta 9,6 % do PIBem saúde. Porém, à diferença de grande parte dos países que possuem sistemas universais de saúde, o gasto público equivalente a 3,8% do PIB brasileiro, é menor do que o gasto privado, estimado em 5,8% do PIB. A participação da esfera pública (federal, estados, municípios) com saúde no Brasil representa 39,6% dos gastos, contra 60,4% dos gastos privados.

Durante todo o período que o Brasil foi governado pelo presidente Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010) e da presidente Dilma Roussef (2011-2014; 2015-maio 2016), a política governamental priorizou o aumento do valor do salário mínimo e a formalização das relações trabalhistas. As políticas sociais estabelecidas tiveram foco importante na diminuição da pobreza com a expansão dos programas de transferência de renda. Esses anos, apesar de todas as limitações econômicas persistentes do setor público, foram marcados por uma priorização do desenvolvimento social que incidiu sobre a saúde, seja no fortalecimento da rede assistencial (com a ampliação das unidades de urgência e emergência), como também na retomada de estratégias para ampliação da produção doméstica de medicamentos e insumos, dentro das prioridades traçadas pelo SUS. Foram desenvolvidos programas que permitiram a expansão da oferta de ações nas áreas de saúde bucal, doenças crônicas e acesso a medicamentos. Ao mesmo tempo, a Estratégia de Saúde da Família, criada em 1994, foi bastante fortalecida e aperfeiçoada com a incorporação de equipes multiprofissionais incluindo agentes comunitários de saúde.

Foi durante o governo Dilma que foi criado o Programa Mais Médicos, que teve como finalidade prover médicos nas regiões mais pobres, remotas e periféricas do país. Os resultados evidentes apontaram a cobertura dos vazios assistenciais em comunidades carentes como as habitadas por indígenas, quilombolas e comunidades vivendo em periferias urbanas. Contudo, a contratação de médicos cubanos por acordo mediado pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS), foi alvo de dura oposição por parte de entidades médicas e o Programa foi desativado.

O SUS protagonizou uma grande expansão da cobertura da atenção primária, em especial pela Estratégia da Saúde da Família, que se transformou em porta de entrada nos mais de cinco mil municípios brasileiros, impactando a rede assistencial em vários aspectos.  A cobertura vacinal para várias doenças se manteve alta e o número de hospitalizações decorrentes de causas sensíveis de serem assistidas na atenção primária diminuiu3.

Políticas e programas implementados no período, como o combate à desnutrição, o controle do tabagismo e a política de controle do HIV/AIDS mostraram resultados satisfatórios. Houve declínio marcante na mortalidade infantil, sobretudo na região Nordeste. Queda também aconteceu nas taxas de mortalidade de crianças até cinco anos de idade e de mortalidade materna. Diminuiu a mortalidade por doenças preveníveis por vacinas, por diarreia, por doenças respiratórias e por doenças cardiovasculares4.

Inegavelmente avanços ocorreram. Não foram, contudo, suficientes para acabar com as desigualdades entre as regiões do país, mas deram início a um processo buscando caminhos para minimizá-las.

Em 2016, o agravamento da crise social e política marcado pelo impeachment da presidente Dilma e a ampliação de medidas neoliberais implementadas no governo Temer, remeteram o país à austeridade fiscal, reduzindo investimentos sociais e consequentemente atingindo fortemente o SUS. Com a aprovação da Emenda Constitucional no 95, em 2016, que congelou os gastos em saúde e educação por 20 anos, o histórico subfinanciamento do SUS passou à condição de desfinanciamento, trazendo consequências seríssimas para as condições de enfrentamento da crise sanitária que sobreveio em 2020, com a covid-19.

A partir de 2016, a estrutura tripartite do SUS que requer a ação conjunta entre as três esferas governamentais para cobrir a responsabilidade do Estado com a saúde foi gravemente abalada. A esfera federal, que na década de 1990, era responsável por 63% do financiamento do SUS, em 2020, compareceu com apenas 42 % das transferências.  Ou seja, estamos diante de uma trajetória de crescente desresponsabilização do governo federal com a sustentação do SUS.  A partir de 2019, tal tendência ficou evidente tanto na alteração do mecanismo de transferência dos recursos federais aos municípios5, quanto na nova forma de financiamento da ESF que rompe com o modelo que vinha sendo implementado6, impedindo o trabalho das equipes multiprofissionais e não considerando uma abordagem territorial e comunitária. Finalmente, em 2020, no enfrentamento da pandemia de covid-19 o Ministério da Saúde, enquanto autoridade central no comando do SUS, deu mostras fartas do empenho desagregador de suas ações e omissões.

O fortalecimento do SUS deve, portanto, ser encarado como prioridade do próximo governo e cabe à comunidade científica e à sociedade como um todo defenderem a vida e o direito universal à saúde como prevê a nossa Constituição.

 

Referências
  1. Cordeiro H. O Instituto de Medicina Social e a Luta pela Reforma Sanitária: Contribuição à História do SUS. PHYSIS. 2004;14(2):343-362.
  2. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Contas Satélite-Saúde 2010-2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101928_informativo.pdf
  3. Macinko J et al. Major expansion of primary care in Brazil linked to decline in unnecessary hospitalization. Health Affairs. 2010; 29(12):2149–60.
  4. Machado CV, Azevedo e Silva G. Political struggles for a universal health system in Brazil: successes and limits in the reduction of inequalities. Globalization and Health, 2019;15(Suppl 1):77.
  5. Ministério da Saúde. PORTARIA Nº 2.979/12/11/2019. Programa Previne Brasil. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2019/prt2979_13_11_2019.html
  6. Azevedo e Silva. Giovanella L. Camargo Jr K R. Brazil’s National Health Care System at Risk for Losing Its Universal Character. Am J Public Health. 2020;110(6):811-812.

 

Sobre as autoras:

Gulnar Azevedo e Silva é médica sanitarista e professora titular do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ)

Eli Iola Gurgel Andrade é professora titular do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

 

Jornal da Ciência

 

Capa: CDC | Unsplash.com
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