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Justiça e inclusão social

A constituição brasileira estabelece a universalização da cidadania, porém a justiça está muito aquém da realização da democracia.

 

Medidas de inclusão existem porque indivíduos são excluídos do meio social e isto acontece desde a pré-história. Entre povos primitivos era comum certas tribos se desfazerem das crianças com deficiência, pois representavam um fardo para o grupo social em que viviam. No Brasil, ainda hoje, no início do século 21, o número de pessoas consideradas socialmente excluídas, ou seja, desprovidas dos direitos sociais básicos, tem aumentado muito e os programas públicos de transferência de renda não têm sido suficientes para frear o aumento da exclusão no país. Ainda que de forma desigual, tanto em termos de grupos identitários quanto às suas demandas e lutas por inclusão, os excluídos têm dificuldade de ter um emprego digno, salários justos e acesso a benefícios sociais, à saúde e à educação. Mas acima de tudo, os excluídos integram um grupo que não é reconhecido na sociedade, que muitas vezes nem percebe sua existência.

Márcia Regina Ribeiro Teixeira, promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia que atua na 1a. Promotoria de Direitos Humanos, afirma que quando se fala do “descompasso da cidadania como forma de exclusão social, estamos nos referindo àquele que não é considerado normal, que não corresponde ao que os ‘normais’ – com muitas aspas – idealizam o que deveria ser o outro”. E acrescenta: “nem sempre a pobreza anda em compasso com a exclusão”.

 

“No Brasil, ainda hoje, no início do século 21, o número de pessoas consideradas socialmente excluídas, ou seja, desprovidas dos direitos sociais básicos, tem aumentado muito e os programas públicos de transferência de renda não têm sido suficientes para frear o aumento da exclusão no país.”

 

Segundo Sarah Escorel, no livro Vidas ao léu: trajetórias de exclusão social, a origem contemporânea do termo exclusão social tem sido atribuída ao título do livro de René Lenoir, “Les exclus: un français sur dix” (“Os excluídos: um em cada dez franceses”), publicado em 1974: “ainda que o trabalho não trouxesse nenhuma elaboração teórica do conceito de exclusão social”. Escorel aponta, em seu livro, que “o fenômeno de exclusão consiste em que contingentes populacionais cada vez maiores são economicamente desnecessários e supérfluos… sua existência é disfuncional tanto em relação às mudanças tecno-estruturais da produção quanto em relação às propostas de ajuste e reforma do Estado … são inúteis e incômodos”.

 

Educação: ampliando e universalizando espaços para os excluídos

Um importante caminho para a inclusão social é ampliar o acesso à educação, pois permite equalizar oportunidades. Afinal, consta no Artigo 205 da Constituição de 1988 que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. (Figura 1)

Talvez o primeiro exemplo de lei brasileira que buscou ampliar espaços para categorias consideradas excluídas é a Lei 5.465, de 3/07/1968, que determinava que estabelecimentos de ensino médio agrícola e escolas superiores federais de Agricultura e Veterinária destinassem suas vagas a agricultores ou seus filhos, proprietários ou não de terras: 50% aos que residiam com suas famílias na zona rural e 30% aos que residiam em cidades ou vilas que não possuíam estabelecimentos de ensino médio. A “Lei do Boi”, como ficou conhecida, atendia aos interesses de grandes proprietários de terra, que eram criticados pela concentração fundiária e improdutividade de grandes regiões agrárias. Foi revogada em 1985, após pedido do então Ministro da Educação, Marco Maciel, com a alegação de ser um privilégio dado aos já privilegiados e às inúmeras fraudes que a lei permitia.


Figura 1. Pertencimento: 15 anos após aprovação da política de cotas para negros na UnB, inclusão racial é realidade na instituição. Foto: Beatriz Ferraz/Secom UnB.
(Fonte: https://noticias.unb.br/76-institucional/2319-aprovacao-das-cotas-raciais-na-unb-completa-15-anos)

 

Em 2000, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou uma lei que reservava metade das vagas das universidades estaduais para estudantes de escolas públicas. No ano seguinte, uma nova lei determinou que 40% dessas vagas tinham que ser destinadas a autodeclarados negros e pardos. No segundo semestre de 2004, quando negros e indígenas representavam 4,3% do total de alunos matriculados, a Universidade de Brasília (UnB) reservou 20% das vagas do vestibular para negros e 20 vagas para indígenas, por um período de 10 anos. Depois da UnB, várias universidades federais passaram a reservar vagas para estudantes de escolas públicas e candidatos negros, pardos e indígenas, mas cada instituição definia seu critério. A padronização do acesso às universidades federais surgiu apenas em 2012, com a chamada Lei de Cotas (Lei 12.7110), quando todas as instituições de ensino superior federais do país foram obrigadas a reservar parte de suas vagas para alunos de baixa renda oriundos de escolas públicas e para negros, pardos e índios.

Atualmente, dados coletados até dezembro de 2021 pelo Observatório de Ações Afirmativas na Pós-Graduação indicam que 1.531 programas de pós-graduação acadêmicos adotam algum tipo de ação afirmativa em seus processos de admissão de estudantes de mestrado e doutorado, o que representa 54,3% de todos os programas da amostra.

O Engenheiro Agrônomo João Paulo da Silva é um dos muitos exemplos da importância das cotas raciais e de oriundos de escola pública. Nascido na cidade de São Paulo, filho de pais comerciários, Silva cursou o segundo grau no Centro Paula Souza, onde também fez o curso técnico em informática com ênfase em desenvolvimento de sistemas. Em 2009 ingressou no curso de Engenharia Agronômica, do Campus de Araras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), por Sistema de Cotas, pois em seu registro de nascimento consta que é pardo. Formou-se em 2014 e no ano seguinte ingressou no Programa de Pós-Graduação em Engenharia Agrícola da Universidade de Campinas (Unicamp), onde concluiu o Mestrado e está finalizando o Doutorado. “Não foi apenas meu esforço que me permitiu colher os frutos que venho colhendo ao longo da trajetória, mas também as relações estabelecidas com pessoas que me deram oportunidades quando enxergaram o potencial que eu tinha de contribuir”, afirma.

 

“A construção de uma sociedade justa, democrática e com igualdade efetiva exige que existam políticas públicas e leis que transformem os desiguais em iguais.”

 

Sandra Regina Ceccato Antonini, professora titular da UFSCar tem sido uma forte defensora da política de reserva de vagas nas universidades brasileiras e aponta um exemplo que ela costuma citar como exemplo de inclusão social: “tivemos uma aluna que entrou por reserva de vaga no curso noturno de Biologia do campus de Araras no mesmo ano que meu filho. A mãe dela é terceirizada no setor de limpeza do campus; é chefe do pessoal de limpeza, faz faxina em final de semana, inclusive foi minha faxineira por algum tempo. E eu sempre uso isso de exemplo – os dois, o meu filho e a filha da faxineira estudaram na mesma universidade pública de qualidade, cada um no seu curso, Ela foi muito bem durante o curso de Biologia, ingressou no Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Produção Vegetal e Bioprocessos Associados, comigo e com a Professora Márcia, terminou o Mestrado agora, e muito bem. E eu falo, eu ganho no mínimo 10 vezes mais do que a mãe dela ganha e os nossos filhos estudaram na mesma universidade. Isso pra mim é uma conquista que deveria ser mais valorizada porque isto é inclusão.”

 

Papel da Justiça na universalização de direitos básicos

A Constituição de 1988, em vigor no Brasil, estabelece em seu Título II os Direitos e Garantias Fundamentais de respeito à dignidade das pessoas, garantia das condições mínimas de vida e desenvolvimento do ser humano e o respeito à vida, à liberdade, à igualdade, para o pleno desenvolvimento de sua personalidade. Entretanto, a promotora Márcia Teixeira e a professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Ruthy Nadia Laniado, apontam no artigo “Justiça e Desigualdades: o descompasso da cidadania como forma de exclusão social” que, ainda que a constituição brasileira estabeleça a universalização da cidadania, a justiça está muito aquém da realização da democracia. E muito do que ela já fez e continua fazendo é atuar na defesa de grupos socialmente excluídos.

Márcia Teixeira aponta que “pessoas transexuais são excluídas socialmente pela sua aparência física, pela forma de falar; não conseguem emprego, têm problemas com seu registro de nascimento. Muitas vezes são pessoas pobres e são trans, ou seja, são violências sobrepostas”. Outro exemplo apontado pela Promotora Márcia é a população em situação de rua que “é barbaramente vulnerabilizada porque, além da pobreza, são estigmatizadas, são vistas como pessoas que estão na rua porque não gostam de trabalhar”. Para ela, o ponto mais importante foram as cotas raciais e no Ministério Público da Bahia recomendamos às universidades estaduais a criação de comissões para incluir vagas para pessoas transexuais e travestis, tal qual na universidade federal”.

A construção de uma sociedade justa, democrática e com igualdade efetiva exige que existam políticas públicas e leis que transformem os desiguais em iguais. No mundo contemporâneo, e no Brasil em particular, é necessário uma construção coletiva de generosidade e tolerância que respeite a diversidade que é um de nossas mais importantes características.

 

Capa. Um domingo na Avenida Paulista (SP): um homem “invisível” assiste a uma apresentação musical.
(Imagem por Leonor Assad)

ASSAD, Leonor. Justiça e inclusão social: a constituição brasileira estabelece a universalização da cidadania, porém a justiça está muito aquém da realização da democracia. Cienc. Cult. [online]. 2022, vol.74, n.4 [citado  2023-08-30], pp.01-04. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252022000400016&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0009-6725.  http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220070.
Leonor Assad

Leonor Assad

Leonor Assad é engenheira agrônoma, doutora em Ciência do Solo, especialista em divulgação científica, professora titular aposentada da Universidade Federal de São Carlos, e apaixonada por trabalhar e escrever sobre Ciência.
Leonor Assad é engenheira agrônoma, doutora em Ciência do Solo, especialista em divulgação científica, professora titular aposentada da Universidade Federal de São Carlos, e apaixonada por trabalhar e escrever sobre Ciência.
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